sábado, 30 de abril de 2011

Trinta dias de abacaxi, por Maria Cecília Shamá





Amores Expressos (1994) possui dois filmes em um. Ou melhor, quatro histórias, quatro formas de amar, quatro expirações, quatro pessoas diferentes em sua projeção e várias cidades e países configurando o mundo asiático e paralelo de Wong Kar-Wai. A primeira parte quase não possui ligação exata com a segunda, isso é claro, se você levar em conta o fato de que nada possui ligação direta na vida. Melhor dizendo: mesmo que pareça haver dois Amores Expressos em um, ainda fica a variável constante da efemeridade das paixões e existências expressas.

Assistir ao filme de Kar-Wai me remeteu à experiência de ler Fragmentos de um Discurso Amoroso, de Roland Barthes; como se visse na minha frente a desconstrução do sujeito que ama, passível de ser deixado de lado pelos sentimentos dos outros e de sua própria volatilidade, batendo de frente ao caos urbano. Assim como Barthes projeta em sua literatura, a projeção fílmica presente fragmenta cada pedaço de história, fetiche, cor, sonhos californianos e coca-cola como se olhando através de um prisma que rebate tudo de volta. Pois as mesmas pessoas que lhe atraem são aquelas que lhe repelem, a cidade que convida aos prazeres é a mesma que pune e a câmera lenta dos ângulos do diretor que nos dão a particularidade da identificação generalizada de uma obra cinematográfica, nos aproxima e distancia no ato cinéfilo de coexistir através dos minutos de uma projeção cinematográfica. A cidade se constrói em nós, ao mesmo tempo em que permanece intacta. No hibridismo característico de Hong-Kong.

Na primeira parte do longa vemos o policial He Zhiwu (Takeshi Kaneshiro, de O Clã das Adagas Voadoras) percorrendo as ruas de sua cidade, ao mesmo tempo que narra sua história de amor. Ou o fracasso da mesma. Usando de puro fetichismo, vemos o policial submeter à longevidade de sua paixão ao número de trinta latas de abacaxi. Trinta dias. Um mês. Ela possui trinta dias para ser esquecida, para se comprovar que assim como a validade das latas, o amor também acaba de forma capitalista. O fetiche de medir o bem de consumo, numa espécie de fixação oral ao comer quantos abacaxis ele sequer agüenta mais, na necessidade de se comprometer em degustar o amor aos tropeços e o abacaxi à falta de estômago. Mercadoria por mercadoria, fetiche da mercadoria, fetiche do amor, a necessidade de criarmos paixões transitórias para preencher os dias, as validades, as temporalidades.

Não é a toa que He Zhiwu narra para nós seu fascínio pela mulher desconhecida, pois ela representa a possibilidade, tal como um novo empreendimento sentimental. O desconhecido atrai, numa figura feminina representada por uma peruca loura e óculos escuros. Claramente, Zhiwu nos diz em quanto tempo irá se apaixonar pela desconhecida. Sempre o tempo, e sempre a resolução de não se ficar sozinho. De não conseguir não manter um relacionamento, mesmo que de início puramente voyerístico com o outro. Nesse ponto a banalidade de sua profissão de policial entra em conflito com o trabalho exercido pela mulher de peruca loura (Brigitte Lin), traficante de drogas.

Mais um crescimento involuntário de Amores Expressos: o tráfico é retratado como caos social em segundo plano, pois o filme centraliza sua personagem como uma mulher cansada do que faz, rígida, como lhe é pedido profissionalmente, mas solitária por também ser humana. Vemos os produtos importados abarrotados que revende, os trabalhadores por ela explorados, as drogas que marginaliza a sociedade, o mundo do Tio Sam invadindo a exótica China, e mesmo assim; a cidade corpo vivo, cabeça pensante, inerente, em nós, aos hábitos, às profissões, aos comportamentos, à solidão. Impassível. Organismo vivo mutante.


Na parte seguinte ouvimos o tempo inteiro a canção California Dreamin' do The Mamas and the Papas grudando em nossa cabeça e na da atendente da lanchonete (Valerie Chow). Essa lanchonete também é ponto de encontro entre os dois policiais do filme, mas não entre si, e sim entre eles e o local.

O segundo policial do filme (Tony Leung , de Amor à Flor da Pele e Felizes Juntos) leva uma existência rotineira, comum, em analogia perfeita ao fast food em que come quase todos os dias. A coca-cola pisca quase como um néon oitentista naquele cenário cinza das ruas e colorido das lanchonetes e residências. Numa espécie de romantismo nostálgico, a garçonete muda a casa do policial aos poucos, e só quando ele a pega no flagra, é que se dá conta das mudanças territoriais e sentimentais dentro dele. Sua própria Amélie Poulain asiática, com o corte de cabelo excêntrico e o poder de salvar o tédio de seu dono impotente. E de repente, novamente, a possibilidade.

Pois quando a garçonete vira aeromoça e vive seu próprio sonho californiano, ao sabor do refrigerante ianque universal, os fragmentos amorosos se unem, assim como os seres atuantes. Não que não nos adaptemos à transitoriedade das pessoas, mas é com o amor que se vai que nos ressentimos. Os amores incertos não magoam por terem validade e sim por seu percurso errante. Lamentamos as relações possíveis que não saem do campo da ilusão, transgredindo a noção de realidade. Mesmo que enquanto expressos em amores, pessoas e fast food, os amores se tornam ambíguos e perpétuos em sua vulnerabilidade temporal. Expressos na Hong Kong de Wong Kar-wai e em nós. E aonde ele e seus personagens nos quiserem levar.

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