
Amores Expressos (1994) possui dois filmes em um. Ou melhor, quatro histórias, quatro formas de amar, quatro expirações, quatro pessoas diferentes em sua projeção e várias cidades e países configurando o mundo asiático e paralelo de Wong Kar-Wai. A primeira parte quase não possui ligação exata com a segunda, isso é claro, se você levar em conta o fato de que nada possui ligação direta na vida. Melhor dizendo: mesmo que pareça haver dois Amores Expressos em um, ainda fica a variável constante da efemeridade das paixões e existências expressas.
Assistir ao filme de Kar-Wai me remeteu à experiência de ler Fragmentos de um Discurso Amoroso, de Roland Barthes; como se visse na minha frente a desconstrução do sujeito que ama, passível de ser deixado de lado pelos sentimentos dos outros e de sua própria volatilidade, batendo de frente ao caos urbano. Assim como Barthes projeta em sua literatura, a projeção fílmica presente fragmenta cada pedaço de história, fetiche, cor, sonhos californianos e coca-cola como se olhando através de um prisma que rebate tudo de volta. Pois as mesmas pessoas que lhe atraem são aquelas que lhe repelem, a cidade que convida aos prazeres é a mesma que pune e a câmera lenta dos ângulos do diretor que nos dão a particularidade da identificação generalizada de uma obra cinematográfica, nos aproxima e distancia no ato cinéfilo de coexistir através dos minutos de uma projeção cinematográfica. A cidade se constrói em nós, ao mesmo tempo em que permanece intacta. No hibridismo característico de Hong-Kong.
Na primeira parte do longa vemos o policial He Zhiwu (Takeshi Kaneshiro, de O Clã das Adagas Voadoras) percorrendo as ruas de sua cidade, ao mesmo tempo que narra sua história de amor. Ou o fracasso da mesma. Usando de puro fetichismo, vemos o policial submeter à longevidade de sua paixão ao número de trinta latas de abacaxi. Trinta dias. Um mês. Ela possui trinta dias para ser esquecida, para se comprovar que assim como a validade das latas, o amor também acaba de forma capitalista. O fetiche de medir o bem de consumo, numa espécie de fixação oral ao comer quantos abacaxis ele sequer agüenta mais, na necessidade de se comprometer em degustar o amor aos tropeços e o abacaxi à falta de estômago. Mercadoria por mercadoria, fetiche da mercadoria, fetiche do amor, a necessidade de criarmos paixões transitórias para preencher os dias, as validades, as temporalidades.
Não é a toa que He Zhiwu narra para nós seu fascínio pela mulher desconhecida, pois ela representa a possibilidade, tal como um novo empreendimento sentimental. O desconhecido atrai, numa figura feminina representada por uma peruca loura e óculos escuros. Claramente, Zhiwu nos diz em quanto tempo irá se apaixonar pela desconhecida. Sempre o tempo, e sempre a resolução de não se ficar sozinho. De não conseguir não manter um relacionamento, mesmo que de início puramente voyerístico com o outro. Nesse ponto a banalidade de sua profissão de policial entra em conflito com o trabalho exercido pela mulher de peruca loura (Brigitte Lin), traficante de drogas.
Mais um crescimento involuntário de Amores Expressos: o tráfico é retratado como caos social em segundo plano, pois o filme centraliza sua personagem como uma mulher cansada do que faz, rígida, como lhe é pedido profissionalmente, mas solitária por também ser humana. Vemos os produtos importados abarrotados que revende, os trabalhadores por ela explorados, as drogas que marginaliza a sociedade, o mundo do Tio Sam invadindo a exótica China, e mesmo assim; a cidade corpo vivo, cabeça pensante, inerente, em nós, aos hábitos, às profissões, aos comportamentos, à solidão. Impassível. Organismo vivo mutante.
Na parte seguinte ouvimos o tempo inteiro a canção California Dreamin' do The Mamas and the Papas grudando em nossa cabeça e na da atendente da lanchonete (Valerie Chow). Essa lanchonete também é ponto de encontro entre os dois policiais do filme, mas não entre si, e sim entre eles e o local.
O segundo policial do filme (Tony Leung , de Amor à Flor da Pele e Felizes Juntos) leva uma existência rotineira, comum, em analogia perfeita ao fast food em que come quase todos os dias. A coca-cola pisca quase como um néon oitentista naquele cenário cinza das ruas e colorido das lanchonetes e residências. Numa espécie de romantismo nostálgico, a garçonete muda a casa do policial aos poucos, e só quando ele a pega no flagra, é que se dá conta das mudanças territoriais e sentimentais dentro dele. Sua própria Amélie Poulain asiática, com o corte de cabelo excêntrico e o poder de salvar o tédio de seu dono impotente. E de repente, novamente, a possibilidade.
Pois quando a garçonete vira aeromoça e vive seu próprio sonho californiano, ao sabor do refrigerante ianque universal, os fragmentos amorosos se unem, assim como os seres atuantes. Não que não nos adaptemos à transitoriedade das pessoas, mas é com o amor que se vai que nos ressentimos. Os amores incertos não magoam por terem validade e sim por seu percurso errante. Lamentamos as relações possíveis que não saem do campo da ilusão, transgredindo a noção de realidade. Mesmo que enquanto expressos em amores, pessoas e fast food, os amores se tornam ambíguos e perpétuos em sua vulnerabilidade temporal. Expressos na Hong Kong de Wong Kar-wai e em nós. E aonde ele e seus personagens nos quiserem levar.
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