sábado, 4 de janeiro de 2014

"A Mosca: O Grotesco como Reflexão", por Jefferson Gabriel

Os conceitos de arte e belo estiveram ligados entre si na história da arte por entre os séculos, criando uma ligação tão forte a essas palavras  que mesmo ainda na contemporaneidade é possível que muitos as associem como espécies de sinônimos. Contudo, com o decorrer do tempo, foi se tornando mais comum o questionamento do belo, sua hegemonia e sua relação com aquilo que é artístico.  A partir daí, correntes surgiram afim de aumentar as possibilidades de pensamento para aquilo que é considerado arte. Uma dessas correntes segue por uma linha que dispara praticamente oposta àquilo que era “belo”: o gênero “gore”, que aborda o  grotesco.
Seguindo mais especificamente para o cinema, custou (e ainda custa, em alguns casos) muito para que o público em geral consiga associar o grotesco como algo além da pura exibição de horrores visuais. Um dos clássicos do gênero, “A Mosca” (The Fly, 1986) de David Cronenberg, adaptado de “A Mosca de Cabeça Branca” (1958),  é um desses exemplos. No filme, temos o cientista Seth Brundle (Jeff Goldblum) que, após um bom tempo isolado em sua casa/laboratório, conseguiu criar uma máquina que, segundo ele, “vai mudar o mundo e a vida humana como conhecemos”. Sua invenção se revela altamente efetiva como o primeiro teletransportador já criado. Ao mostrar o funcionamento de sua invenção para a jornalista Veronica Quaife (Geena Davis), ela logo se deslumbra com a possibilidade de uma matéria, o que acaba resultando num relacionamento entre ela e Seth. Os dois concordam que depois de conseguir solucionar um problema referente ao teletransporte de seres vivos, serão realizadas filmagens e entrevistas para compor uma reportagem referente aos experimentos. Após conseguir avanços em sua pesquisa, Seth decide de maneira inconsequente que chegou a hora de realizar o tão sonhado teletransporte com humanos, testando em ninguém menos que ele próprio. O que ele não esperava era que, durante o evento, uma pequena mosca acabasse  entrando na máquina junto com ele. Desse momento em diante, a vida do cientista começa a se alterar drasticamente.
Cronenberg dá ao personagem de Jeff Goldblum um teor bastante cruel de realidade psicológica. Conforme Brundle vê o tempo passar, menos homem ele vê em si e mais vê o seu lado “mosca” (ou monstro) despertar por conta da fusão a nível de DNA provocada pelo teletransporte.  O protagonista enxerga seus instintos e desejos mais obscuros tomarem conta de si contra sua vontade. Sua namorada,  Veronica, inicialmente comove-se com seu estado, mas seu sentimento logo se converte em medo das ações de Seth. O que o diretor nos mostra é a perda da humanidade e a decadência do personagem sendo refletida em sua pele, seu corpo e ações, fazendo-o em certos momentos do filme se questionar até que ponto ele ainda é humano. Em sua cegueira perante a situação, Seth se define como algo superior a um simples humano, uma evolução: ele se diz agora “Brundlemosca” (Brundlefly).
As cenas exibidas são extremamente marcantes, principalmente por conta da maquiagem que nos faz sentir extrema repulsa a cada etapa passada por Brundle. O grande ponto disso é que justamente essa repulsa que sentimos e o exagero exposto na tela que faz com que o filme funcione da maneira como foi proposto. Sendo assim, o “grotesco” presente na obra se torna uma ferramenta que adiciona um valor reflexivo a todas as transformações que os personagens passam, seja interna ou externa. Quando ele se define como superior e se autonomeia “Brundlefly”, é justamente seu corpo humano aniquilado de modo bizarro que nos denuncia que na realidade aquilo nada mais é que uma tentativa de fuga do personagem perante o caminho sem volta  em que se encontra. Na cena final, após uma série de eventos, é possível captar a essência desse instante não  por conta do choro da personagem de Geena Davis, mas pelo próprio sofrimento de Seth ao arrastar seu corpo decadente em direção a uma arma e colocá-la apontada para sua cabeça. Sem a presença do gore nesse instante, sem o asco que a cena transmite por seu exagero e horror, não seria possível sentir o quão perturbador de inúmeras maneiras é a situação dos personagens. O gore então se revela mais do que uma mera dose de agonia. Através da repulsa, é possível ir além do horror. É possível sentir.


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