Os conceitos de arte e belo estiveram ligados entre si na
história da arte por entre os séculos, criando uma ligação tão forte a essas
palavras que mesmo ainda na
contemporaneidade é possível que muitos as associem como espécies de sinônimos.
Contudo, com o decorrer do tempo, foi se tornando mais comum o questionamento
do belo, sua hegemonia e sua relação com aquilo que é artístico. A partir daí, correntes surgiram afim de
aumentar as possibilidades de pensamento para aquilo que é considerado arte.
Uma dessas correntes segue por uma linha que dispara praticamente oposta àquilo
que era “belo”: o gênero “gore”, que
aborda o grotesco.
Seguindo mais especificamente para o cinema, custou (e ainda
custa, em alguns casos) muito para que o público em geral consiga associar o
grotesco como algo além da pura exibição de horrores visuais. Um dos clássicos
do gênero, “A Mosca” (The Fly, 1986)
de David Cronenberg, adaptado de “A Mosca de Cabeça Branca” (1958), é um desses exemplos. No filme, temos o
cientista Seth Brundle (Jeff Goldblum) que, após um bom tempo isolado em sua
casa/laboratório, conseguiu criar uma máquina que, segundo ele, “vai mudar o
mundo e a vida humana como conhecemos”. Sua invenção se revela altamente
efetiva como o primeiro teletransportador já criado. Ao mostrar o funcionamento
de sua invenção para a jornalista Veronica Quaife (Geena Davis), ela logo se
deslumbra com a possibilidade de uma matéria, o que acaba resultando num
relacionamento entre ela e Seth. Os dois concordam que depois de conseguir
solucionar um problema referente ao teletransporte de seres vivos, serão
realizadas filmagens e entrevistas para compor uma reportagem referente aos
experimentos. Após conseguir avanços em sua pesquisa, Seth decide de maneira
inconsequente que chegou a hora de realizar o tão sonhado teletransporte com
humanos, testando em ninguém menos que ele próprio. O que ele não esperava era
que, durante o evento, uma pequena mosca acabasse entrando na máquina junto com ele. Desse
momento em diante, a vida do cientista começa a se alterar drasticamente.
Cronenberg dá ao personagem de Jeff Goldblum um teor
bastante cruel de realidade psicológica. Conforme Brundle vê o tempo passar,
menos homem ele vê em si e mais vê o seu lado “mosca” (ou monstro) despertar
por conta da fusão a nível de DNA provocada pelo teletransporte. O protagonista enxerga seus instintos e
desejos mais obscuros tomarem conta de si contra sua vontade. Sua
namorada, Veronica, inicialmente
comove-se com seu estado, mas seu sentimento logo se converte em medo das ações
de Seth. O que o diretor nos mostra é a perda da humanidade e a decadência do
personagem sendo refletida em sua pele, seu corpo e ações, fazendo-o em certos
momentos do filme se questionar até que ponto ele ainda é humano. Em sua cegueira
perante a situação, Seth se define como algo superior a um simples humano, uma
evolução: ele se diz agora “Brundlemosca” (Brundlefly).
As cenas exibidas são extremamente marcantes, principalmente
por conta da maquiagem que nos faz sentir extrema repulsa a cada etapa passada
por Brundle. O grande ponto disso é que justamente essa repulsa que sentimos e
o exagero exposto na tela que faz com que o filme funcione da maneira como foi
proposto. Sendo assim, o “grotesco” presente na obra se torna uma ferramenta que
adiciona um valor reflexivo a todas as transformações que os personagens
passam, seja interna ou externa. Quando ele se define como superior e se
autonomeia “Brundlefly”, é justamente seu corpo humano aniquilado de modo
bizarro que nos denuncia que na realidade aquilo nada mais é que uma tentativa
de fuga do personagem perante o caminho sem volta em que se encontra. Na cena final, após uma
série de eventos, é possível captar a essência desse instante não por conta do choro da personagem de Geena
Davis, mas pelo próprio sofrimento de Seth ao arrastar seu corpo decadente em
direção a uma arma e colocá-la apontada para sua cabeça. Sem a presença do gore nesse instante, sem o asco que a
cena transmite por seu exagero e horror, não seria possível sentir o quão
perturbador de inúmeras maneiras é a situação dos personagens. O gore então se revela mais do que uma
mera dose de agonia. Através da repulsa, é possível ir além do horror. É
possível sentir.
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