quinta-feira, 4 de outubro de 2018

E se o rap fosse travesti?, por Lucas Xavier


BlasFêmea, artivismo e reinscrições identitárias na musicalidade periférica de Rosa Luz 


O rap, em sua epistemologia, consiste numa cultura de resistência contra a supremacia e opressão dos brancos. A travesti, em sua intersubjetividade, consiste numa identidade feminina que subverte o discurso do “gênero como reflexo do sexo”. O rap, a ferramenta do artivismo. A travesti, a voz da blasFêmea. Ambos, em suas peculiaridades e divergências, constituem o alvo na lógica da abjeção. Popularizado em 1970, o rythm and poetry (rap), consistia numa mescla entre poética e poesia, ritmado em narrativas longas – oriundas da tradição afro americana – circunscritas num processo reivindicatório de políticas humanitárias, que garantiriam a subsistência da população periférica estadunidense, em sua maioria migrantes afrolatinos e ameríndios, cuja as demandas imbuídas em sua pluralidade – étnica, racial, sexual e de gênero – ocasionaram movimentos artístico-politícos, tendo o rap como espada no artivismo. Em concomitância com esses movimentos, surge nesse contexto político e multicultural, os estudos queer, atentos às nuances identitárias, mas, sobretudo, às normas que os criam enquanto sujeitos da abjeção, isto é, corpos-identidades que subvertem a norma prevalecente, que não deveriam existir dentro de determinada matriz cultural, como pontua a filósofa norte-americana Judith Butler. Nessa conjuntura abjeta, intricada de política identitária e subversiva se sedimenta nos trópicos o artivismo, que unifica arte e ativismo — em especial dos corpos-identidades abjetas — na resistência e contra-hegemonia; no perspéctico latino americano, tal artivismo se personifica na travesti, a qual critica a marginalidade, abjeção e colonização grafadas em seu corpo-identidade através da arte periférica; assim sendo, reinscreve o status quo numa arte da periferia para o centro, visibilizando e emponderando corpos-identidades prepostos na lógica de abjeção. No EP Rosa Maria codinome Rosa Luz, a artista multimídia Rosa Luz faz reinscrições identitárias na musicalidade periférica. Ao se afirmar travesti e rainha afrolatina, ergue o rap como espada na luta contra o racismo e transfobia institucionais. Na primeira faixa, cujo título homônimo inicia seu manifesto, Rosa insere o rap num âmbito tradicional, ao mesclar ritmia e sons que se assemelham às percussões do maracatu pernambucano. Uma espécie de hibridismo, recheada pelas críticas a “normativa que um dia separou”. A proposta de Luz parece decolonial, ao expressar o colonialismo que construiu a desumanização dirigida aos subalternizados. Decolonizar seria entender a “mulher de peito e pau” em sua particularidades sexual e de gênero, a partir de proposições que colocam o gênero como constructo cultural e performativo, negligenciando uma heteronormatividade que insite em atribuir o masculino ao pênis e o feminino à vagina. Ao enfrentar e transformar as estruturas e instituições que têm como horizonte de suas práticas e relações sociais a racialização do mundo e a manutenção da colonialidade, visa criar um espaço “sem sargento, sem sargeta” no qual celas são queimadas e oportunidades criadas, com “liberdade para corpos marginalizados transcederem nessa porra de cidade”.
A língua de Luz é uma faca de dois gumes, tem o poder de incluir e denunciar; no De clandestina a puta, insere àrquetipos de matriz africana, a quem clama por proteção e força na luta, para si e para as “pretas”. Na imagem d’Oxum, orixá das águas doces, maternidade e beleza, constrói seu legado. Oxum venceu a guerra com um espelho, Rosa vencerá com o rap. Num limiar entre rap e prece, a composição situa o ouvinte na vivência trans e travesti, cujas feminilidades e corpos são institucionalmente direcionados à prostituição, pelo machismo e a misoginia – estruturas socias de ordem patriarcal na qual se objetifica e hiperssexualiza o feminino. Nessa circunstância, a rapper coloca o putafeminismo como uma proposta transversal do feminismo, suvertendo a lógica de opressão, na qual se incluem prostitutas como sujeitos potentes na luta pela equidade de gênero. O alvitre de Rosa, ao contrário do que se pensa, não deslegitima a lógica de opressão intriseca à prostituição, mas ressignifica o papel da prostituta, inserida enquanto persona do feminismo. Se o track que titula o álbum se apresenta como híbrido por retratar o rap sob o viés popular, a Afrotrapfunk se condiciona enquanto polifonia e polissemia musical, ao englobar tecno, punk e rap, ressaltando uma interculturalidade poética e ritmada, a tratar do feminino e, sobretudo, de mulheridades “negras, travestis, transsexuais, gordas, magras, diversidade”. A musicalidade que empondera femininos. O grito das blasFêmeas. A mesma polifonia se reinscreve em Periferia mas sob uma ótica de localidade, em parceria com Preto, Mic Dias, Natigresa, Prethaís, Pérolatina e Debrete, a sonora narra poetizações acerca do âmbito periférico, implicando em múltiplas visões de um mesmo local. Das entraves que normatizam feminino e masculino, Rosa Luz atenta ao falocentrismo ao afirmar “pinto de macho não é o centro do mundo”. Teorizada por Freud e perpetuada por Lacan, a lógica falocêntrica consiste num processo disciplinador e/ou heteronormativo que visa docilizar corpos pela ausência do falo, colocando tais corporeidades abaixo do “sexo biológico masculino”. Luz, em acordância com os propostos queer, em especial os de Butler, critica a colonização dos corpos sem falo, isto é, cuja relação sexo-gênero-desejo perpassam essa lógica falocentrista. Partindo disso, a rainha afrolatina junto ao seu Clã das mina preta–quebrada, rememora os processos colonizadores que violentaram e submeteram mulheres à escravidão sexual. A música, ao relembrar dessas violências critica sua perpetuação, convidando as mulheres, em suas multiplicidades, a denunciar o abuso. Luta pela equidade, segurança e resistência; pilares que prenunciam Bandida, finalizando o EP, mas não o manifesto da “preta, travesti, gatinha” cujas rimas e denúncias grafadas em seu corpo-identidade se trasmutam no cuspe que escorre sobre o rosto racista. Rosa Luz reescreve a história, o papel da mulher no rap e nos direciona para uma futura revolução, não somente musical, mas principalmente, travesti.

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Que se refere à cidade, por Letícia Barbosa


Em tempos de especulação imobiliária, ocupações em escolas, incêndios em prédios abandonados, Ocupe Estelita e Geju, creio que ter em dois dos principais equipamentos culturais da cidade exposições de arte que pensam o espaço urbano não é por acaso.
Além do tema tão político e nunca antes tão atual, as duas exposições apresentam, além de fotografias, videoarte, instalações e obras interativas, plataformas estetizadas para as obras. Esses suportes brincam com o tradicional espaço dos museus e galerias, ajudam a passar a mensagem da exposição e dinamizam o momento da visitação — mexendo com a visão, tato e audição do visitante.
A primeira parte do circuito foi na Caixa Cultural do Recife, localizada no cerne do centro histórico e cultural da cidade. O espaço está apresentando desde março a 2ª Mostra Bienal Caixa de Novos Artistas, que busca dar visibilidade a artistas emergentes e vai circular por oito capitais do país. Ao todo foram 616 inscritos e 30 escolhidos. As 37 obras selecionadas desses artistas podem ser conferidas até o dia 27 deste mês.
A mostra é dividida em temas que falam sobre campo, cidade, corpo e questões político sociais. Chamo atenção para as sessões de Espaço Natural e Espaço Construído e como a montagem da exposição contribuiu para dar força às obras.
Ao entrar na Caixa nos deparamos com um tipo de labirinto, todas as peças são dispostas em grandes trapézios brancos que circundam o salão principal do centro cultural e parecem simular a confusão de prédios das grandes cidades. O texto de curadoria e as fotos dos artistas são projetados em algumas dessas estruturas com efeitos que lembram as propostas do futurismo e da poesia concreta.
Nas obras é notável a ressignificação crítica que cada artista fez do seu lugar de origem. Há um exercício de imersão, reexame e catarse de questões como pobreza, raça, etnia, Direitos Humanos, meio ambiente, tempo, identidade, entre outros temas.
Neste primeiro momento da exposição, as obras do Espaço Natural e do Espaço Construído são colocadas lado a lado, frente a frente, uma contra a outra. Uma clara provocação que emula as disputas entre o lado de dentro e o de fora, o público e o privado, o natural e o artificial, o eu e o outro, o que é meu e o que é seu. O efeito da contraposição dessas peças é tocante, incomoda e faz refletir.
A curadoria da mostra foi aberta e sensível ao escolher obras que texturizam essas dicotomias a partir da transformação de materiais banais do dia a dia em arte. Assim, em meio a gravuras, colagens, desenhos, vídeos e fotos nos deparamos também com instalações feitas com estruturas metálicas, argila, concreto armado, areia, pedras, vergalhão e carvão.
A segunda exposição visitada se chama ExistenCidades e está alocada no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (MAMAM) até 29 de julho. A mostra também trata da problemática da urbanização e se apropria de materiais sucateados para dar suporte a narrativa proposta.
Beto Figueiroa é o artista que assina as 13 fotografias expostas em andaimes de construção. Grandes, coloridas e impressas em formato de lambe-lambe, as imagens mostram paisagens naturais ermas, objetos abandonados, trilhas, ruas, animais e pessoas centrados em sua rotina ou solitude. Novamente o cinza da cidade disputa espaço com o verde natural.
A reflexão sobre alteridade, políticas públicas e cidadania são latentes e agravadas pela sensação que os andaimes dão de se estar em um lugar em construção. Atravessar a mostra ExistenCidades é se embrenhar pelas brechas de lugares esquecido ou até desconhecidos, sempre com o cuidado de olhar bem por onde pisa, pois está tudo em obras, inacabado. O MAMAM se transformou em uma pequena maquete do nosso país em “desenvolvimento”.
A imersão do visitante se completa com o som de uma videoarte que ecoa por todo o salão da exposição. Produzida pelo músico Jr. Black, o vídeo é um timelapse mostrando prédios durante a noite com uma voz masculina de fundo narrando cinco textos, escritos em primeira pessoa, que contam histórias inventadas para os personagens das fotografias.
Ao final dessa aventura penso que ter artistas que fazem política com materiais artísticos clássicos e não clássicos e, em movimento reverso, fazem da arte uma forma didática e poética de apreender questões políticas, remete a outros tempos, talvez tão sombrios quanto o atual, em que a arte era o último suspiro, o manifesto derradeiro.
As mostras, além de expressar uma estética, correspondem a certa cobrança moral atual de imprimir mensagens e reflexões. Aproveitando essa onda, deve-se atentar para a sobrevivência dessas janelas de ar fresco perante o caos, ocupá-las para que resistam e acima de tudo democratizar esses espaços para que a experiência e o debate não morram em círculos restritos. Pois, diante dos retrocessos que vislumbramos, viradas políticas dignas de telenovela e das eleições que estão por vir, visitar exposições desse tipo pode ser revigorante, inspirador e em certo ponto necessário.

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

"Blonde", por Lúcio Souza





Praticamente toda a arte nasce das experiências do artista, mas Blonde (2016), do californiano Frank Ocean, traz a bagagem de vida do cantor quase que de forma palpável. Embora nascido na costa oeste, Ocean, aos cinco anos de idade, se mudou com a família para a cidade de Nova Orleans, no sul dos Estados Unidos, um local marcado pelas culturas europeias, latino-americanas e, principalmente, afro-americanas, além de ser conhecida como um dos berços e principais polos do Jazz e do Rythm and Blues (R&B). É nesse ambiente de uma negritude tão presente na cultura que Frank é criado.

De origem humilde, ele passou parte de sua juventude trabalhando, fazendo “bicos” para os vizinhos, tudo para custear alguns instantes dentro de um estúdio. Entretanto, com a passagem do furacão Katrina em 2005, os estúdios de sua cidade foram destruídos, levando-o a ter de se mudar temporariamente para Los Angeles a fim de concluir seu trabalho, e é nesse meio-tempo que Ocean faz contatos, dentre eles Tyler, the creator e seu grupo de hip-hop alternativo OFWGKTA.

Blonde (Boys Don’t Cry) é o seu segundo álbum de estúdio com 17 faixas que versam sobre negritude, desigualdades sociais e também sobre desilusões amorosas.

Ocean abre o álbum com Nikes, cantando com a voz distorcida e uma base de R&B sobre ganância. A faixa começa com uma crítica social falando da ganância em relação ao dinheiro, para num momento posterior falar sobre drogas e, por fim, sobre o valor que o próprio Frank teria para a pessoa para a qual ele está se declarando.

O último refrão de Nikes termina com os seguintes dizeres:
I'll mean something to you
You got a roommate he'll hear what we do
It's only awkward if you're fucking him too”

Esse trecho se conecta com a faixa seguinte, Ivy, para falar da traição sofrida pelo cantor, que assumiu em 2012, por meio de uma carta aberta no seu tumblr, que seu primeiro amor e decepção amorosa foi com um homem. No documento, o cantor ainda agradeceu o responsável por partir o seu coração, pois isso deu material para produzir tais músicas.

Em “Ivy”, ele começa falando que parecia estar sonhando quando conheceu e se apaixonou por um determinado alguém. Essa sensação de estar sonhando pode ser interpretada como a ilusão de Ocean em não perceber que estava sendo traído. Apesar da traição, a música deixa a entender que ainda há algum sentimento de afeto pelo traidor. Esse resquício de amor é demonstrado em Pink+white, uma canção inteira sobre saudade, sobre a experiências com esse alguém de quem está a se afastar.

Essa primeira sequência de músicas é dotada de uma certa narrativa sobre amor, traição e desilusão, mas não somente isso. Frank Ocean fala de uma relação homoafetiva, ele abre um espaço importantíssimo para a comunidade LGBTQ no meio hip-hop, um ambiente que é tão fortemente atravessado pelo machismo.

Be Yourself, a canção de número 4, abre um novo bloco na narrativa do disco. Ela versa, muito provavelmente, sobre o breve período do cantor na faculdade. A faixa é somente uma ligação de telefone da mãe do eu lírico falando sobre ser você mesmo e sobre vício em drogas, exceto pelas que tenham sido passadas por recomendação médica. Be Yourself é sobre aceitação de si mesmo e sobre como estamos sempre performando de diferentes maneiras em meios sociais distintos a fim de nos sentirmos incluídos.

Logo em seguida, também falando sobre drogas, vem Solo, uma das músicas mais importantes do álbum. Ela também fala de solidão e talvez da tentativa do eu lírico de preencher o vazio deixado após sofrer a traição com drogas. Há uma dualidade na palavra “solo”, que muitas vezes na música e pronunciada quase que como “so low”, que podemos traduzir como sóbrio, daí pode se pensar que Ocean está a todo momento tentando se manter “alto” (drogado) para compensar a solidão.

Após toda a intensidade de Solo, vem Skyline To, uma canção subestimada que muitos dizem ser parada e chata. Mas a faixa é justamente sobre a passagem do tempo. As primeiras linhas deixam claro que eu lírico ainda lida com as dores da traição passada. Essa faixa está posicionada justamente entre as duas mais importantes de todo o álbum e serve de conexão entre elas.

Por que logo depois vem Self Control, o momento mais importante do álbum junto com Solo. A canção é um grande lamento pelo término de um ou mais relacionamentos, não se sabe precisar a quem Ocean está se referindo, mas uma coisa é certa, Frank aqui está perdendo seu autocontrole e implora para ainda ter um espaço no coração da pessoa amada. Este também é um dos momentos em que podemos testemunhar a potência vocal do cantor, que muitas vezes é mascarada pelo constante uso de sintetizadores e efeitos de voz.

Good Guy, 8° faixa, abre a questão da homossexualidade de Frank num meio tão marcado por estereótipos de masculinidade como o hip-hop. A canção começa falando de um encontro cego num bar gay, no qual o eu lírico se decepciona, já que eu seu par não se parece nada com o que ele aparentava ser através de mensagens. Ele esperava, ao mesmo tempo, encontrar um novo amor, mas seu parceiro está somente em busca de uma noite de sexo. E aí a canção muda para um diálogo entre o eu lírico e um amigo falando sobre se relacionarem com mulheres. Enquanto esse amigo hétero se mostra frustrado por ter o coração quebrado pelas mulheres, o eu lírico fala, após um longo período de pausa em desconforto, “Sim, eu não tenho mais vadias”.

Nights é a faixa que marca exatamente o meio do álbum. Com 5:07 minutos de duração, a faixa, que começa falando sobre a tristeza e fracassos do dia a dia, muda completamente de ritmo aos 3:30, o exato momento em que o álbum chega aos seus 30 minutos. Entrando, aqui, num clima mais melancólico.

Solo (reprise), é faixa de número dez e a primeira após a virada dos 30 minutos em Nights. A canção também fala de sobriedade, tal qual sua contrapartida no início do álbum, mas desta vez se trata de um rap agressivo, um torrente de palavras despejando toda a raiva acumulada ao longo de todo esse período de melancolia.

E então vem Pretty Sweet, também com um rap agressivo, desta vez falando sobre autodestruição e com algumas referências religiosas (“This is the blood, the body, the life right now”). A canção é talvez a revolta do cantor em ter passado tanto tempo do armário. A música é uma cacofonia paranoica e agressiva, é um grande conflito de ideias, é um apelo por aceitação (To the fathers of the Earth be kind). Em discussões no Reddit alguns apontam que toda essa paranoia é causada pelo uso de drogas, que, ao invés de trazerem um estado de torpor, intensificam a tempestade de sentimentos. A música se encerra em um momento de calma, com um coro de crianças

Em 12° vem Facebook Story, uma canção que talvez conte como Frank descobriu ter sido traído. Esse é mais um diálogo na voz de outra pessoa, dessa vez falando de uma garota que disse estar sendo traída por não ter sido aceita no Facebook pelo seu amado, ao passo que este alega que está com ela pessoalmente todos os dias.Close To You é uma das faixas mais curtas e talvez a que menos teve significância para mim. A letra aparente falar dos vestígios que ainda mantém o eu lírico preso ao seu amor passado

A última parte do álbum é a mais confusa de toda a obra. White Ferrari, Siegfried e Godspeed giram em torno da aceitação do término do relacionamento.White Ferrari é sobre a percepção de como o relacionamento foi morrendo, e de como Ocean pensava que manter a relação em seus princípios primários (sexo), poderia sustentá-la. Ao mesmo tempo em que a relação está presa num mesmo nível, sem progressão, e o parceiro dele enfrenta uma insegurança que o impede se entregar.

Siegfried é o encontro com esse amor que se foi e que agora está vivendo uma nova vida. Frank se questiona logo de início se deveria enveredar numa vida mais pacata, constituir família. Para depois vir numa das últimas estrofes afirmando seu estilo de vida e se negando a mudar:

Spin this flammable paper on the film's that my life
High flights, inhale the vapor, exhale once and think twice
Eat some shrooms, maybe have a good cry, about you
See some colors, light hangglide off the moon

Godspeed é um complemento dessa aceitação. Ocean, aqui, deixa seu amor ir, mas também fala que sempre vai amar este alguém.

I let go of my claim on you, it's a free world
You look down on where you came from sometimes
But you'll have this place to call home, always

Futura Free, com pouco mais de 9 minutos encerra o álbum. A faixa compila tudo que foi dito ao longo do álbum. Fala de seu sucesso enquanto artista, se refere à mãe e também ao amor que se foi. Mas, devido a sua extensão, a canção mais difícil de toda a obra, é difícil perceber todas as camadas colocadas por Ocean.

Com 17 faixas o álbum é um tanto difícil de ser consumido, é preciso tempo para digeri-lo, principalmente por causa do uso excessivo de sintetização e efeitos na voz, o que pode, em alguns momentos, ser irritante, e até mesmo monótono. Blonde é um álbum difícil, mas isso é uma de suas melhores qualidades. Frank Ocean traz inúmeras referências artísticas, históricas e culturais em suas músicas, falando com maestria de questões ligadas à família, sexualidade, abuso de drogas e o fim de um amor. É uma obra para ser ouvida com carinho e paciência, da mesma maneira que se constrói uma relação amorosa.

terça-feira, 25 de setembro de 2018

"Batuk Freak", por Manuela Andrade



Batuk Freak é o nome do primeiro álbum lançado pela rapper curitibana Karoline dos Santos Oliveira, popularmente conhecida como Karol Conká. Karol começou sua carreira por volta de 2004, mas só obteve alguma notoriedade, a nível nacional, por volta de 2011 quando lançou alguns videoclipes de faixas que viriam a compor seu primeiro CD anos mais tarde. Sua presença tornou-se mais forte na cena hip-hop quando se juntou a nomes como Projota e Luiz Melodia em participações conhecidas como feat, em 2012.
Mulher, negra, vinda da periferia numa adolescência com poder aquisitivo limitado, o rap esteve presente desde muito cedo na vida de Karol. Quando ganhou seu primeiro festival aos 16 anos decidiu investir na carreira, vendo no estilo musical uma maneira de não perder sua identidade, ganhar dinheiro e lutar pelo que sempre acreditou: igualdade, seja racial ou de gênero. O álbum surge num momento complicado no rap nacional, quando o que vendia e fazia sucesso eram os MCs majoritariamente brancos, de classe média, fazendo um som que vendia em festas caras, levando letras vazias, cheias de machismo e outros preconceitos, em sua maioria reproduzindo um estilo de rap vendido pela indústria fonográfica americana, mas que, além disso, fugia completamente do rap old school brasileiro, que sempre buscava politizar, conscientizar e abrir os olhos da população para as injustiças sociais presentes nas periferias. Desse modo, a inserção do seu trabalho foi de uma cautela e estudo muito precisos, tanto que o resultado foi o sucesso nacional da artista.
Deixando de lado o contexto em que o disco foi lançado e já abordando sua produção, é inegável o preparo de toda a equipe envolvida nos trabalhos — da área técnica a de marketing — pois foram cerca de quatro anos do início da criação até seu lançamento, trazendo  no produto final um misto de rap, ritmos africanos, pop e emboladas, com apelo para públicos de diferentes nichos. O álbum foi lançado para colocar a artista no hype, em evidência na mídia, e cada elemento presente no Batuk Freak salienta isso.
Com produção de Nave, já conhecido por produzir rappers como Marcelo D2 e Emicida, os beats possuem uma ampla variação na construção dos samples, criando um mix de culturas num único som, essa característica acaba por ser evidenciado no título do álbum Batuk. A intenção do disco não é politizar, como fizera sabotage nos anos 2000 ou Emicida (sucesso contemporâneo ao Batuk Freak) — pelo menos, não a grosso modo —, o produto final acaba por se encaixar no rap feito para dançar, para festa, mesmo que tenha um pouco de sua militância — trazida de maneira branda, um tanto quanto festiva. Isso acontece para que o Batuk não deixe de atingir o público que mais consumia rap em meados de 2013, um público de certo modo elitizado, que frequentava festivais. Os beats são para dançar e mesmo que em “Gandaia” ela afirme “desbancando as piriguetes que mal sabem rebolar”, quem passou a consumir o hit, também, foram elas, as piriguetes ou, no caso, outras mulheres. Neste ponto se dá uma das contradições mais fortes do álbum, afinal, Karol se colocou na mídia como feminista e assim sendo, um dos seus “deveres” é não incitar a competição feminina, mas o faz para cair nas graças do público.
A narrativa do CD pode ser lida como metáforas, mas não possui uma ordem cronológica, não é necessariamente uma história — mesmo que a primeira faixa, “Corre, Corre Erê”, refira-se a crianças. O disco começa com um pedido, quase uma súplica de que as crianças corram, se movimentem, façam as coisas começarem a mudar em sua realidade na periferia. Ao passo de ser um pedido, é também como se a cantora pudesse se ver criança e pedir para ela mesma que continue correndo, se dedicando. Na sequência ela adentra num pensamento de luxo na favela, descaracteriza a ideia de periferia pobre e sofrida, afirmando que o luxo nasceu para o gueto, para o preto e reafirmando que é possível vencer as dificuldades encontradas na vida periférica. Mesmo cantando sobre a possibilidade de sucesso saindo de áreas pobres, Karol Conká não omite as dificuldades, salientando que o esforço para vencer tem que ser redobrado. “Vô lá” é o mais perto que ela chega de um discurso forte, característica esperada de quem tem poder e lugar de fala na cena rap nacional, e é neste ponto que, reforço, se concentra a maior parte da contradição entre seu trabalho e sua colocação na mídia.
Após as três primeiras faixas, o disco se resume a frases de efeito encaixadas com ideias e ideais que se assemelham aos de uma luta, talvez, feminista de mulheres vindas de classes econômicas favorecidas que necessitam muito mais de “Gandaia” do que de conquistas a direitos básicos. Claro que toda e qualquer mulher tem que ser livre, se divertir, rebolar, curtir o lado festivo da vida, mas restringir um espaço tão importante de representatividade a uma atividade sexual regada a orgasmos, por exemplo, é seguir omitindo o acesso do povo periférico, em especial às mulheres — a quem poderia ser direcionado seu disco — às discussões primordiais para uma verdadeira transformação intelectual ou, simplesmente, ao empoderamento que a artista tanto repete na frente das câmeras.
Com uma produção instrumental tão plural e digna de reconhecimento, o Batuk Freak é uma contradição discursiva, mas carrega consigo uma fidelidade ao título que, talvez, muitos álbuns não consigam alcançar.

domingo, 10 de agosto de 2014

"A Noviça Rebelde", por Edson Venicio Mendonça da Silva



  “As Colinas estão vivas com o som da música” estre trecho da canção homônima do filme The Sound Of Music, no Brasil, A Noviça Rebelde, que é apresentada já no inicio do longa dirigido por Robert Wise (West Side Story, 1961) já apresenta o quão alegre e sublime será a produção estrelada pela encantadora Julie Andrews e Christopher Plummer.
  O longa conta a história de Maria, uma noviça que, considerada dispersa e não conseguindo seguir as regras do serviço religioso, foi encaminhada para trabalhar como governanta do Capitão Georg Von Trap e cuidar dos seus sete filhos, que tinham perdido a mãe recentemente e desde então são educadas pelo pai com forte rigor militar. Ela trás a música para a vida das crianças, que não tinham mais o carinho do pai, transformando o clima rígido e melancólico do lugar num lugar alegre e feliz. Maria acaba de apaixonando pelo Capitão, que estava comprometido com Elsa, uma baronesa de Viena.
  As belas locações contribuem para a incrível fotografia repleta de imagens campestres, montanhas e os arredores da mansão do capitão. As lindas canções interpretadas por Julie e compostas por Richard Rodgers e Oscar Hammerstein também contribuíram para que o filme se tornasse um clássico a ultrapassar gerações e continuar encantando milhões de telespectadores.
  A Noviça Rebelde tem em sua bagagem um Oscar de melhor filme, diretor, montagem, som e trilha sonora em 1966, além do Globo de Ouro de melhor atriz, Prêmio Eddie de melhor montagem, indicado ao BAFTA como melhor atriz britânica (Julie Andrews) e eleito por várias revistas especializadas não apenas como um dos melhores musicais, mas como um dos melhores filmes já produzidos.
  As canções e a bela história do filme mostram, por fim, a importância da família, da educação e, principalmente, da união. É nas colinas onde tudo começa e termina: “Eu vou para as colinas quando meu coração estiver solitário. Eu sei que vou ouvir o que eu ouvi antes. Meu coração será abençoado com o som da música e eu vou cantar mais uma vez.”






Referências

·         http://www.adorocinema.com/filmes/filme-238/ - Acessado em 17 de maio de 2014.
·         http://pt.wikipedia.org/wiki/The_Sound_of_Music - Acessado em 17 de maio de 2014.

·         http://letras.mus.br/sound-of-music/1029115/ - Acessado em 17 de maio de 2014.

"Cantando na Chuva", por Thaynam Lázaro



            Em geral os estudos de gêneros cinematográficos são pontuados por filmes que de alguma forma contribuíram para a criação, ou modificação, de um determinado formato fílmico, seja por alguma pitada de originalidade que o destacou dos demais, ou por algo o fez ser único de alguma forma. Cantando na Chuva, musical lançado em 1952, protagonizado por Geny Kelly, Donald O’Connor e Debbie Reynolds, é um desses filmes canônicos da historia do cinema, considerado por muitos o melhor musical que Hollywood já produziu, o filme reúne astros consagrados e cria cenas para nos encantar com seus grandes talentos.
            Se o filme é o melhor de seu gênero ou não, isso é algo inteiramente subjetivo, afinal Hollywood também produziu inúmeros outros musicais que marcaram e redefiniram o gênero. Porém, é inegável que na memoria coletiva o filme dirigido por Stanley Donen e Gene Kelly seja um dos mais lembrados quando o assunto é musical. Ao contrario das outras produções feitas na época, o roteiro de Cantando na Chuva foi criado para compilar músicas que já haviam sido compostas anteriormente, a única canção feita especialmente para o filme é a Moses Suposes, performada com maestria por Kelly e O’Connor. Após a seleção das canções (algumas já consagradas e utilizadas em outros filmes, como a própria canção-titulo), os roteiristas escolheram situa-lo numa época bastante peculiar na historia do cinema: a transição do cinema mudo para o cinema falado. E é aí onde Cantando na Chuva começa a se destacar dos demais, o filme é uma grande homenagem ao cinema e ao passado do gênero musical, a trama mostra este momento de forma leve, brincalhona, satiriza os astros do cinema e seus artifícios, nos mostra o que Hollywood faz de melhor: criar verdadeiros sonhos do entretenimento.
            A trama gira em torno de Don Lockwood (Gene Kelly), astro do cinema que durante a era de ouro dos filmes mudos em Hollywood faz par romântico com a atriz Lina Lamont (Jean Hegen) em todos os filmes que protagoniza, eles também fingem ser um casal da vida real, porém a relação deles é puro artificio, uma das grandes mentiras que o cinema utiliza para envolver as plateias.  É quando Don conhece Kathy Selden, garota que diz não se encantar mais ao ver seus filmes, por que para ela quem já viu um, já viu todos, que o astro tem o primeiro encontro com aquilo que é novo: uma garota que não se encanta com seus velhos truques e acima de tudo, uma garota que tem voz própria, que não o vê simplesmente como um rosto expressivo, mas que o trata como igual. E como o novo parece ser apaixonante!
A personagem Lina Lamont aqui funciona como um exemplo de como o cinema da época operava, era engessado em sua forma, dependente das expressões fundamentais dos atores, mas quando visto aos olhos contemporâneos podia se tornar algo comicamente trágico e até meio burro em seu discurso. Já Kathy Selden é um anúncio do que está por vir, algo excitante, desafiador, multifacetado, talentoso em todas as formas e, acima de tudo, mais mágico como nunca. E é esta energia alegre, feliz e excitante que faz de Cantando na Chuva um filme único, que nos mostra que não importa o que venha a acontecer, o show deve sempre continuar.  

Don Lockwood se apaixona rapidamente por Kathy e é ela que o convence a entrar de vez no ramo dos filmes falados, e a se expressar de forma completa, utilizando todos os seus talentos como artista. E que talento! Gene Kelly e seus companheiros de filme nos entregam performances apaixonantes e únicas. Cenas que são lembradas até hoje como os pontos máximos da era de ouro dos musicais de Hollywood, quando sonhos e realidade se fundiam para nos encantar e nos encher de alegria e esperança.

"O cantor de Jazz", por Rebecca Cirya


O cantor de Jazz (The Jazz Singer, Alan Crosland, 1927) foi um filme produzido pela Warner Bros, é considerado o primeiro filme falado da história do cinema, na verdade, o termo mais apropriado seria o primeiro filme sonorizado, pois ele tem pouquíssimas cenas onde são proferidas frases pelo ator Al Jolson. Ele foi realizado com a tecnologia vitaphone que possibilitou a sincronização de imagens e sons, o diálogo e a música eram impressos na película.
Uma das frases mais lembradas do filme é : "Espere um minuto, espere um minuto. Você ainda não ouviu nada”, de acordo com alguns críticos essa frase é uma metáfora para o nascimento da fala no cinema. Uma frase verdadeira não apenas para a diegese, mas para cinematografia, sabemos que depois de O Cantor de Jazz os espectadores ouviram cada vez mais e até hoje não pararam de ouvir.
O filme é um marco na história do cinema e muitas vezes é lembrado apenas pela sua inovação técnica, algumas pessoas acham seu roteiro maçante, mas o cantor de jazz também é muito importante pelo tema que aborda e pelo contexto social no qual está inserido. A narrativa é centrada  na história de Jack Rabinowitz filho de um Judeu que é orador e cantor da sinagoga em que participa. Todo homem da família Rabinowitz deve ser cantor das reuniões religiosas, pois recebeu um dom de Deus, é uma tradição familiar que já ocorre há cinco gerações . Porém o jovem Jack tem outro sonho, ele almeja ser um cantor burlesco, cantar músicas populares como o jazz e ser famoso. A partir dessa oposição de interesses (seguir seus sonhos ou a tradição familiar) o filme se desenvolve mostrando a discriminação que o jazz sofria na década de 20.
 O Jazz presente no filme representa muito mais que um estilo musical, é uma música que tem sinônimo de liberdade, que quebra com os valores e convenções sociais estabelecidas, é um estilo que está à frente do seu tempo. O enredo do filme pode ser interpretado como um separação entre as convenções antigas representadas pelas música e cultura judaica e o novo mundo, o desconhecido e inovador representado pelo jazz de Al Jolson. Muito pertinente é comparar a narrativa com o próprio filme, na diegese e fora dela o tema é ruptura. Historicamente O Canto de Jazz foi um divisor de águas entre o cinema mudo e o sonoro.
 Essa obra de Crosland já mostra as características e convenções de um novo gênero cinematográfico, o musical. Suas técnicas narrativas ainda trazem vestígios do filme mudo,ou seja, ele é acompanhado por intertítulos, mas a questão está na música que é o grande centro da  narrativa, assim como, os números musicais cantados e dançados por Al Jolson que seriam muito comuns na década seguinte. Além disso as músicas interpretadas no filme foram músicas populares e incentivaram os estúdios a investirem nas trilhas sonoras, evidenciando uma novo período do cinema. Desde então a música seria um produto de lucro e de fácil comercialização para os estúdios e gravadoras.
A questão do blackface é outro importante aspecto que chama atenção no filme. A estereotipagem dos negros pelos brancos teve origem nos shows de minstrel no século XIX e continuou se propagando pelas demais formas de artes como os shows de vaudeville, da Broadway e também no cinema. O personagem de Al Jolson revela esse preconceito racial da sociedade americana  e dos estúdios cinematográficos que não contratavam negros. Quando Jack está nos palcos ele representa um cantor negro e por isso ele pinta a cara de preto, deixando a parte perto da boca sem tinta para que os lábios fiquem mais grossos (uma forma altamente caricata de representar o negro, mas muito comum nas primeiras décadas do cinema). O momento onde fica mais evidenciado o blackface é na cena que Al Jolson canta Mammy.

Todas essas considerações tornam esse filme memorável. O Cantor de Jazz merece ser lembrado por suas inovações técnicas, mas também, por ser um marco na inserção de musicas populares nos filmes, pelo retrato impregnado de uma sociedade tradicionalista e arcaica, e por ser uma parte da história do jazz, ser um ponta pé para sua ascensão nas próximas décadas. O primogênito do gênero musical.

“The Rocky Horror Picture Show: A subversão que precisou ser subvertida”, por Cesar Castanha


Depois da crise criativa que atingiu o Cinema Musical na transição da década 1950 para a de 1960, quatro rotas de fuga foram traçadas para o gênero: a associação com a animação e o cinema infantil de forma geral, tal como Mary Poppins (Robert Stevenson, 1964), O Calhambeque Mágico (Ken Hughes, 1968), A Fantástica Fábrica de Chocolate (Mel Stuart, 1971); com a indústria fonográfica, como os filmes de Elvis Presley, dos Beatles, do The Who e Pink Floyd, para ficar apenas no rock; como experimentação para a nova onda de cinema autoral — Jacques Demy, Francis Ford Coppola, Rainer Werner Fassbinder, Carlos Saura; e, finalmente, com o teatro musical inglês e americano.

Esses novos caminhos, aqui tão cuidadosamente segregados, podiam se cruzar das mais diversas formas. Não há como, por exemplo, desassociar Grease (Randal Kleiser, 1978), um sucesso da Broadway, da indústria fonográfica quando sua protagonista, Olivia Newton-John, venderia apenas 3 anos depois 2 milhões de cópias do single Let’s Get Physical. Ainda assim, o musical hollywoodiano perdeu e até hoje não recuperou o caráter autoral que sustentava quando era guiado pela criatividade imagética de Vincente Minnelli e Stanley Donen. Pelo contrário, ele tem rejeitado, nas suas adaptações, a identidade de autor que consolidou várias peças na Broadway.

Há exceções. Bob Fosse, diretor de teatro musical, soube como ninguém traduzir a linguagem deste para o Cinema com obras-primas como Cabaret e All That Jazz. E, mais recentemente, Tom Hooper, rejeitado pela Cinefilia, contrapôs na sua adaptação de Les Misérables o conservadorismo da temática e da abordagem do compositor e letrista Andrew Lloyd Webber com uma busca por intimismo rara no cinema contemporâneo.

O anarquismo proposto por Stephen Sondheim em Sweeney Todd, no entanto, foi limado pela plasticidade e pelo fetichismo visual de Tim Burton. E o hilariante e subversivo The Rocky Horror Show ganhou uma muito comportada adaptação cinematográfica.

É perigoso falar do que é conservador e do que é subversão em The Rocky Horror Picture Show (Jim Sharman, 1975). A história, uma paródia da ficção-científica B americana, pode ser interessante e impressionável  se deixarmos de lado algumas considerações a meu ver cruciais para a leitura do filme. A primeira delas é que o filme, esteticamente, não vai além de uma super-produção teatral filmada. Sua encenação, incluindo coreografias e as mais diversas construções de cena, é linear, raramente há contraplanos, como se os personagens estivessem num palco, e nós, na plateia.  A outra questão, muito vinculada à primeira, é a de que, se formos entender a subversão como uma manifestação estética tanto quanto temática, os filmes satirizados por The Rocky Horror Picture Show são mais subversivos que a sua homenagem irônica. Basta lembrar da engenhosidade criativa de Plano 9 do Espaço Sideral (Edward D. Wood Jr., 1959) .

Seria um terrível erro, porém, fechar uma análise de The Rocky Horror Picture Show sem compreender o filme como o objeto de culto e adoração que se tornou. Espontaneamente, surgiram nas sessões agora tradicionais do filme em Nova York, Los Angeles e São Francisco um caráter de absurda interatividade, com parte da plateia, fantasiada, dançando na frente da tela e o cinema inteiro fazendo observações coletivas e preenchendo lacunas nos diálogos do filme. Quando Janet sai com o jornal sobre a cabeça para se proteger da chuva, ouve-se “Buy an umbrella, you cheap bitch” ou, quando o mordomo abre o caixão na sala de estar e revela um esqueleto, “Is it your mother, Riff-Raff?”.

É curioso como, ao proclamar o grito, a desordem e a fantasia como performance, os fãs de The Rocky Horror Picture Show reforçaram a temática do filme, de rejeição à hipócrita moral yuppie e de liberdade de ação. Brad e Janet, um jovem casal de classe média, são combatidos ideologicamente pelos acontecimentos e demais personagens do filme. A narrativa transforma em desejo os seus medos e preconceitos.

E essa diversão do público, que subverte o ato de ver um filme, pode também ter dado a The Rocky Horror Picture Show a subversão que este tanto procura. Se o filme evita contraplanos é porque neles se esconde sua ensandecida plateia, que insiste em quebrar a quarta parede ela mesma, possibilitando uma interferência e transformação na antes comportada mise-en-scene

"Celebração da nostalgia", Guilherme Cavalcante


Diante de tantas transformações sociais e ideológicas que marcaram a década de 60, era de se esperar que o musical americano, calcado em sua fórmula conservadora de entretenimento familiar, fosse perdendo fôlego entre o público. Por outro lado, a época já sinalizava o ideal contemporâneo que se manifestou entre as artes, surgindo assim obras que incorporavam uma abordagem estética nostálgica. Filmes como Grease de 1978, evidenciavam essa referência à década de 50 com a imagem de John Travolta vestindo jaqueta de couro assim como Marlon Brando ou James Dean eram vistos no auge de suas carreiras e juventude. Grease lançou na indústria a cantora e atriz Olivia Newton-John, que em 1980 protagonizou outro sucesso musical chamado Xanadu.

Em Xanadu, ela interpreta Kira, uma das sete deusas filhas de Zeus, que tem como objetivo estimular nas pessoas a ambição de realizarem seus sonhos. Seu alvo é o artista Sonny Malone (Michael Beck), que se encontra entediado com seu trabalho de reproduzir em pinturas capas de discos de bandas. Kira aparece para Sonny como uma divindade e o deixa desorientado com sua beleza e suas aparições misteriosas. Sonny acaba conhecendo por acaso Danny McGuire, interpretado por Gene Kelly, astro dos musicais clássicos da década de 40, um empresário aposentado que vê em Sonny a chance de uma parceria que os tire desse estado de inércia. Kira os inspira a abrirem juntos a discoteca que dá nome ao filme, enquanto ela e Sonny formam um casal apaixonado que desafiará as regras dos deuses, o que criará um obstáculo em seu relacionamento.

O filme, apesar da narrativa calcada no clichê romântico, reúne aspectos interessantes que merecem destaque. O primeiro é enxergar o filme como uma ode nostálgica ao gênero musical, bastante evidenciado pela presença de Gene Kelly e seu singular personagem que em vários momentos da narrativa manifesta seu saudosismo para com a década de 40. Para os que vivenciaram a década de 80, o filme é um espetáculo kitsch com uma explosão em cores neon, tão própria à década, além das músicas que se tornaram hits. Xanadu, por sinal, é um perfeito exemplar de como o cinema mainstream estava próximo à indústria fonográfica, responsável pelo modelo de publicidade que ganhou força com o lançamento das trilhas sonoras dos filmes em formato físico. Um fato curioso sobre essa questão é que a trilha sonora teve excelente desempenho nas paradas da Billboard, apesar do fracasso de público e crítica do filme.


Dirigido por Robert Greenwald, ainda antecipa uma “estética MTV”, com seus números muito semelhantes ao que seria popularizado pelos videoclipes que passaram a ser produzidos no começo daquela década e incorporando um flerte com o cinema de animação. Xanadu é o lugar de encontro de gerações e de celebração, um lugar à prova de tédio que leva aqueles que lá se encontram a atingirem o nível máximo de escapismo, é uma reverência ao poder do musical de transportar as pessoas para uma dimensão lúdica, e é aí onde está seu valor simbólico.

"O Picolino, o diálogo que se dá na dança", por Aline Soares e Silva


O Picolino (Top Hat, 1935) pode ser enquadrado como uma das melhores imersões que se pode fazer, em se tratando de musicais. O filme, dirigido por Mark Sandrich, apresenta com leveza e humor o desenrolar de uma trama amorosa que se dá entre um dos casais que mais se destacam no gênero musical, seja pela sensibilidade com que dançam ou pela intimidade que adquiriram ao largo das parcerias que fizeram, Fred Astaire e Ginger Rogers são um dos elementos chave que fazem com que o Picolino seja tão memorável.

Seus personagens, Jerry Travers (Astaire) e Dale Tremont (Rogers), estão hospedados num mesmo hotel, em Londres, e iniciam seu flerte de maneira não muito amigável. Ao passo que Dale fica aborrecida, porém encantada, com Jerry, ele passa a ter olhos apenas para a moça e não resiste em conquistá-la.

Com um roteiro frágil de comédia, ainda que arquitetado e planejado em cima de conflitos que dão agilidade à trama e ao desencadeiam a confusão amorosa que é o grande plote da narrativa: Dale acredita que Jerry Travers é na verdade Horace Hardwick (Edward Everett Horton), marido de sua amiga Madge Hardwick (Helen Broderick).

E se o engano é a chave para toda boa comédia, ‘O Picolino’ não faz por menos. A resolução para esse desarranjo de identidades é amarrado até quase o desfecho do filme e fica a cargo do mordomo Bates (Eric Blore), a personificação nesse enredo do criado bobo e trapalhão da nova comédia grega.

O romance é o elemento que acompanhará todo o ritmo e o desenrolar de toda a intriga presente no filme. À medida que as personagens vão se apaixonando, aumenta também a intensidade e a intimidade com que dançam, a primeira cena em que se detecta o flerte mútuo “Isn’t this a lovely day”, dá a impressão de que o diálogo falado e até mesmo a música se tornam secundários, para em determinado momento serem substituídos apenas pela coreografia, na qual os corpos da dupla Asteire e Rogers desenvolvem no espectador um sentimento de pura contemplação ao amor que transborda a cada passo e sapateado.

Todavia, ao se avaliar a obra como um todo, percebe-se que a coreografia não é a única responsável pelo encantamento. Junto às composições de Irving Berlin adquirem outro significado, se posicionam como um arranjo harmonioso e decisivo para a construção da narrativa, atingindo talvez seu ápice com a composição que, possivelmente, pode ser considerada a mais marcante de todo o musical: “Cheek to cheek”. A música, além de ter sido posteriormente interpretada por Ella Fitzgerald e Louis Armstrong, foi incorporada a outros filmes de destaque na história do cinema, tais como ‘À espera de um milagre’ e ‘A rosa Púrpura do Cairo’.


Por fim, é possível enquadrar “O Picolino”, na categoria de filmes em que não se toma uma parte pelo todo, onde não se elege como determinante a coreografia, ou o figurino, o cenário ou as canções isoladamente. Todos esses elementos se arquitetam e constroem um musical encantador, que realmente te atrai e te faz torcer para que dê tudo certo no final, porque, como bem diz Jerry Travers, “all is fair in love and war and this is a revolution”.

"Mamma Mia: um sonho produzido em músicas", por Marina Didier


Com a famosa música I Have a Dream, o filme musical Mamma Mia fecha as cortinas, ou melhor, passa os créditos finais da produção do projeto que foi às telonas em 2008. Originalmente uma peça musical de mesmo nome, a adaptação para os cinemas foi dirigida por Phyllida Lloyd e escrito por Benny Andersson e Björn Ulvaeus, os dois últimos vale destacar como grandes ícones da música pop da década de 70, ao lado é claro de  Anni-Frid "Frida" Lyngstad e Agnetha Fältskog, eles formavam o quarteto ABBA.

A peça na qual o filme foi baseado havia sido criada uma década antes por Catherine Johnson para figurar em conjunto com músicas do grupo ABBA aos moldes de uma opereta, ainda mais simples e mainstream. Interpretada nos palcos de West End, em Londres, e na Broadway, em New York. O sucesso de bilheteria foi tanto que a gravação para película era questão de tempo e planejamento. O enredo simples e as músicas com marcações de fácil memorização, características do pop e da disco music fizeram um enorme sucesso nos palcos, embora não sejam seguidores dos modelos tradicionais de musicais da década de 30 e 60. A produção faz uso de uma batida mais jovem agregada às músicas vibrantes e dançantes, como Voulez-Vous e Dancing Queen.

Cada cena apresentada ao longo do filme mostra claramente a marcação de “atos”, episódios acompanhados de letras que fazem o espectador acreditar que está presenciando um autêntico concerto musical. Isso porque as músicas em evidência se tornam quase ou mais importantes que o contexto em si. Foi um casamento construído para o sucesso nos palcos. Entretanto o estranhamento que o público teve ao assistir nas telas Maryl Streep, Pierce Brosnan, Julie Walters, Colin Firth, foi grande, pois a expectativa para as canções era maior do que para as atuações, que entre os citados é o dom genuíno. Com exceção de Amanda Seyfried, que interpretou belissimamente Sophie, filha de Donna (Maryl Streep), o elenco deixou a desejar nos momentos de soltar a voz.
             
 A história tem seu foco narrativo na dúvida de Sophie, que busca incansavelmente descobrir que é o seu pai biológico. Donna, mãe de Sophie, viveu durante a juventude três romances, com homens de personalidades bastante diferentes, quase que simultaneamente, com diferença de dias de um caso para o outro. Quando Sophie descobre o diário da mãe e lê sobre os três possíveis pais biológicos, ela decide convidá-los para a ilha onde vivem, na qual o seu casamento com Sky irá ser celebrado. Sophie sonha com o pai levando-a ao altar e por isso envia os convites para Bill Anderson, Harry Bright e Sam Carmichael.

Uma das características que o musical tenta provar paralelamente à narrativa principal é a da emancipação feminina e independência ou ausência de necessidade de um homem para suprir certas lacunas na vida de uma mulher, de uma mãe solteira e, inclusive, empreendedora. Contudo, o tom suave e ligeiramente engraçado que certas cenas como a de Donna na “casa das cabras” tentando consertar e remendar seus problemas enquanto espiona três dos seus antigos amantes, chega a ser uma prova de que no íntimo ela deseja ter algum companheiro.

Outras duas figuras que chamam atenção pelas personalidades independentes ao longo do filme são as amigas de Donna, não menos autossuficientes que ela própria, vivem sem homens e estão na carreira dos 50 anos. Tanya está saindo do seu terceiro divórcio e mostra que não deixa de aproveitar a vida e as vaidades que seus ex-maridos lhe renderam. Rosie, “loba solitária”, é escritora e nunca foi casada, declara que não almeja tal compromisso.
                    
A força feminina é reforçada na cena da música, quase hino, Dancing Queen, quando as três amigas Donna, Tanya e Rosie, além de várias gregas que vivem na ilha, começam a percorrer os caminhos tomando conta de todos os lugares, saindo das cozinhas e das obrigações cotidianas de “donas de casa” para ganharem o mundo.
           
O empoderamento feminino também é construído na relação mãe e filha de Donna e Sophie. Difícil pelo temperamento aventureiro da filha e de preocupação da mãe, o relacionamento é apresentado de maneira genuína e bela na cena em que Sophie se arruma para seu casamento. Donna vem acalentar a criança que enxerga na filha e então recria um momento nostálgico e terno com a música Slipping Through my Fingers.
         
No final, a convivência com os três namorados da mãe faz com que Sophie aceite cada um deles como parte dela e o casamento não acontece, pois ela percebe que esse sonho era na verdade uma projeção do desejo de Donna, que acaba casando com o homem por quem ela sempre foi apaixonada, Sam.
O último momento do filme fecha como começou, como um ciclo de sonhos, I Have a Dream fecha as cortinas do cinema.