sexta-feira, 31 de agosto de 2007

"Faça a coisa certa" por Pedro Neves


“Acorde! Acorde, acorde, acorde!” É o grito inicial de Faça a coisa certa, a incendiária obra prima de Spike Lee. Mais que a saudação matinal do DJ Mr. Señor Love Daddy aos ouvintes da rádio WE LOVE, as palavras são uma exortação de Spike apontada diretamente aos espectadores do filme. Nas duas horas seguintes, uma multidão de personagens coloridos vai desfilar na tela impondo, com doses equilibradas de humor e agressividade, questionamentos acerca das contradições inextricáveis e conflitos inevitáveis de uma sociedade multicultural.
A película se passa durante o dia mais quente do verão, quando o sol implacável torna os ânimos dos moradores de uma rua do bairro de Bedford-Stuyvesant, no Brooklyn, ainda mais acirrados. O personagem central é Mookie, entregador de pizza negro interpretado pelo próprio Spike Lee. Ele trabalha para Sal, ítalo-americano que, junto com seus dois filhos, Pino e Vito, comanda, há vinte anos, a Sal´s Famous Pizzeria. Ao redor de Mookie circulam diversos personagens: sua namorada porto-riquenha, Tina, com quem tem um filho; sua irmã, a voz da consciência a convencê-lo a cuidar de suas responsabilidades e tomar um rumo na vida; Mãe Irmã, a anciã do bairro; o Prefeito, mendigo alcóolatra que ninguém leva a sério.
Em uma cidade multi-racial como Nova York, minorias diversas parecem ter mais voz e visibilidade. Em um bairro como o Brooklyn, então, conhecido por seu grande contingente de negros e latinos, a própia classificação desses grupos étnicos como “minoria” entre brancos parece se inverter. Mas Faça a coisa certa vai além dessas aparências. A presença de policiais brancos vigiando o bairro é uma demonstração da desconfiança e do medo, combatidos pela repressão, que a sociedade tem do que é diferente.
Os habitantes de Bed-Stuy em geral não parecem muito interessados em política. A maioria se preocupa com seus póprios problemas, a começar por Mookie, que só quer seu salário para poder sustentar o filho. Mas existem algumas pessoas empenhadas em mudar a mentalidade conformada dos seus vizinhos. Smiley, um deficiente mental, vende fotos de Martin Luther King e Malcolm X, enquanto tenta falar sobre a luta contra a desigualdade racial; Radio Raheem, um jovem grandão e taciturno, anda pelo bairro com um aparelho de som gigantesco que sempre toca a música Fight the power, do grupo de rap Public Enemy, e discursa sobre a eterna luta do Amor contra o Ódio. A pouca eficácia dessas ações demonstrativas são evidenciadas pelo filme: os dois são vistos pelos moradores da rua como personagens excêntricos, simpáticos, mas sem muita conseqüência ou importância.
A estratégia discursiva que termina por causar o trágico final de Faça a coisa certa também é considerada, inicialmente, inútil. Ela é proposta por outro personagem exótico que ninguém leva a sério, Buggin’Out. Ele tenta organizar um boicote a Sal´s Famous Pizzeria até que sejam colocadas fotos de negros na “parede da fama”. Sal não aceita sua exigência – ele próprio é uma minoria dentro dos Estados Unidos, e só põe fotografias de ítalo-americanos com Robert De Niro e Frank Sinatra em seu restaurante. Os negros do bairro, acostumados a comer na pizzaria e não se importando com as fotografias da parede, ignoram o boicote de Buggin’Out. Apenas Radio Raheem (que havia discutido com Sal mais cedo por ter entrado com seu rádio no volume máximo na pizzaria sem se importar com o incômodo que ele podia gerar aos outros clientes) apoiou a manifestação. Quando a pizzaria está para fechar os dois entram e afirmam que não sairão até que fotos de afro-descendentes sejam postas na “parede da fama”. Perdendo a paciência, Sal destrói o som de Radio Raheem, e os dois partem para a agressão física. A briga vai para a rua e causa comoção. Logo uma multidão se forma ao redor dos contendores, e a polícia chega para apartá-los. Na confusão, um policial estrangula e mata Radio Raheem. Buggin’Out é preso sob protestos: “Vocês estão me levando para a cadeia, mas não estão levando Vito ou Pino ou Sal! Vocês não podem matar todos nós!”
Revoltado, Mookie joga uma lata de lixo na janela da pizzaria, e a multidão que assistia passivamente passa a agir. Sal’s Famous é depredada e incendiada; quando os bombeiros chegam para apagar o fogo, são agredidos pelo grupo. Smiley aproveita a baderna para colar na “parede da fama” a foto de Martin e Malcolm.
O filme termina com o balanço geral do dia seguinte: a pizzaria arruinada, Sal inconsolável (ele havia construído a pizzaria com as próprias mãos e estava lá há 25 anos), Mookie querendo o seu salário. Ele vai cobrá-lo de Sal e, depois de uma discussão na qual cada um expõe seus pontos de vista sobre a noite anterior – Mookie se justifica afirmando que a vida de Radio Raheem valia mais que uma janela – eles se reconciliam.
Spike Lee não tem medo de expor os preconceitos da sociedade em suas múltiplas formas. Pino trabalhou a vida inteira na mesma esquina do Brooklyn, mas detesta o lugar e os negros “como uma doença”. Buggin’Out luta contra o racismo, mas expõe o seu próprio quando manda um ciclista branco que sujou o seu sapato voltar para Massachussets. Uma das cenas mais marcantes do filme é a seqüência de insultos chocantes e hilários distribuídos por representantes de diversas etnias contra outros grupos étnicos: italianos xingam negros, que xingam brancos, que xingam latinos, que xingam coreanos, que xingam judeus.
Não há vilões e mocinhos; cada personagem é repleto de ambiguidades, cada um sofre do preconceito que carrega. A película termina com duas citações: uma de Martin Luther King condenando a violência sob qualquer circunstância e outra de Malcolm X afirmando que o uso da violência para defesa é mais que justo, é inteligente. Fica para o espectador decidir qual das duas é a correta, assim como julgar se Mookie fez ou não a coisa certa ao jogar a lata de lixo na janela da Sal’s Famous. Spike Lee entende que na vida real não existe um limite definido entre “certo” e “errado”, e se recusa a fornecer respostas fáceis e falaciosas para os problemas de uma sociedade multicultural.

"Representações: Escolas de samba" por Marcílio Lopes


A escola de samba é uma das grandes representações da identidade brasileira. Criada a partir do samba, que é brasileiro, a escola de samba tem um grande peso no processo de formação de um símbolo para o samba. Uma escola de samba é caracterizada como um grupo heterogêneo, uma coletividade onde os seus participantes, geograficamente próximos ou não da escola, reúnem os mesmos valores musicais. O símbolo ‘escola de samba’ é de importância fundamental na identidade dos sambistas. Eles possuem e legitimam laços internos de união através do samba. Esse símbolo permite que as pessoas tenham práticas sociais e culturais únicas em relação ao resto da população. Isso se refere não ao contexto privado, mas ao público, não no contexto privado, mas ao público, nas ocasiões em que estão todos juntos e reunidos.
A escola de samba se constitui como um depositário simbólico das tradições e de todo o valor que o samba possui. Formou-se uma agremiação que reúne todos, os representa e os define. O símbolo escola de samba é muito forte para um sambista. Surgiu juntamente com a consolidação do samba como a grande música representativa do Rio de Janeiro e do Brasil, nos anos 20 e 30. Ou seja, surgiu pouco tempo depois das primeiras gravações de sambas. Com isso, virou referência, pois os músicos nasceram dentro delas. Quando não se formam nesse meio, invariavelmente o adotam, e escolhem uma escola para participar e fazer parte.
Por exemplo, Cartola era da Mangueira, pois era do morro da Mangueira, além de ser um dos fundadores da escola. Já Martinho da Vila, como o próprio nome diz, é da Vila Isabel. Paulinho da Viola é da Portela. Cabe ressaltar que, no caso desses dois últimos sambistas, eles não nasceram ‘da Vila Isabel’ ou ‘da Portela’. Eles se integraram às suas escolas. Ou seja, a escolheram. Integraram-se ao símbolo que é a escola de samba e introduziram este símbolo nas suas vidas. Mart’nália, filha de Martinho da Vila, é da Vila Isabel certamente devido à influência familiar, embora ela pudesse se identificar livremente com qualquer outra escola.
O exemplo das escolas de sambas do grupo especial de Rio de Janeiro é determinante para as escolas dos grupos de acesso, e também para a de outras cidades. Todos os modelos, inovações e estilos de escola de samba foram ‘adotados’ e absorvidos pelas outras escolas do Rio de Janeiro e de outros lugares, como de São Paulo. Isso mostra que o que se faz nas escolas do Rio de Janeiro rapidamente se espalha, como se fosse praticamente uma regra.
É importante salientar que a própria existência de escolas de samba em diversas cidades do Brasil e do mundo demonstra que essas regiões imitaram e importaram uma cultura e um costume nascidos e desenvolvidos originalmente apenas no Rio de Janeiro. Porém, na medida em que outras cidades criaram escolas de samba, apesar de ser uma forma de representação não originária do local, as mesmas passam a representar simbolicamente os valores de seus integrantes.
A escola de samba funciona atualmente apenas como um dispositivo simbólico, em que os sambistas ainda a têm como uma referência. Mesmo os que não concordam com a situação em que se encontram as escolas de samba, acabam desfilam pelo valor sentimental, pelo ‘coração’, pela tradição, e não mais porque estão ligados à escola, ou porque nela eles se encontrariam para cantar e fazer sambas. Os sambistas - todo sambista é ‘sambista verdadeiro’, pois, não sendo verdadeiro, não poderia receber a denominação de sambista – desfilam e falam de suas escolas na maior parte das vezes pelo que ela já foi um dia ou pelo pouco que ainda é hoje, no que diz respeito a fazer sambas e a ser um ‘celeiro’ de sambistas, e não a ganhar ou perder carnavais.
Os sambistas que representam o espírito da ‘escola de samba’ tornam-se minoria durante os desfiles. Não apenas numericamente, mas também no sentido de valor. Por exemplo, as velhas guardas, na maioria das escolas, são colocadas na parte final dos desfiles. Não que desfilar fechando desfiles de escolas de samba seja sinal de desprestígio por si só. Porém, há lugares mais vitais para a boa fluidez e o correto sentido de um desfile, como, por exemplo, no início, e perto da bateria. Velhas guardas representam a própria formação e início das escolas, além da manutenção e continuidade da tradição. É a razão dela existir, dos jovens continuarem nela, e serem sambistas. É devido ao exemplo e à marca que os sambistas de uma escola deixam e, claro, ao fato de ser da comunidade, mas não só por isso, que uma pessoa se sente parte de uma escola.
Dessa maneira, o samba e os sambistas, a essência da escola, viram minoria, e se encontra sufocada por aqueles que mandam nas escolas, que definem os rumos e os que acabam sempre freqüentando, enfim, são pessoas que se profissionalizam nessas funções e que já observam a escola de samba da maneira como ela é retratada atualmente: uma instituição que se destina apenas a competir em um desfile no carnaval.
Os negros, frequentemente, também se apresentam minoritariamente no carnaval. Muitas vezes, achá-los no desfile no meio da multidão é uma tarefa complicada. Contudo, o que é encontrado com grande facilidade são as personalidades – pessoas famosas – que aparecem apenas na hora do desfile para aproveitar a exposição atingida. A escola de samba é intensamente vista e mostrada durante os dias de carnaval. Porém, o que tem destaque na imprensa são as ‘beldades’ e ‘estrelas’ que “arrebentaram a Sapucaí”. As ‘musas do carnaval’ não são mais as passistas que realmente são da escola e de seu bairro, mas sim as estrelas que estão em maior ascendência na televisão.
Essa situação passa pela auto-representação que a escola tem de si mesma. Ou melhor, uma representação que foi criada, pois é a maneira como seus dirigentes gostam para promover as escolas. Trazer modelos, atrizes, ou pessoas que estão famosas por qualquer que seja o motivo, para serem rainhas de bateria e destaques em carros alegóricos, entre outras coisas. Essa estratégia é alimentada pelos dois lados - as escolas e a mídia - e se torna um círculo vicioso, pois o que é mostrado na imprensa sobre as escolas, praticamente são apenas as ‘musas’, enquanto que os próprios dirigentes chamam a imprensa pra ver as suas ‘musas’. Ou seja, a própria escola - a diretoria, especificamente - alimenta essa representação midiática das escolas de samba.
Muitos dos que estão nesse meio, e que possuem consciência do sentido de uma escola de samba, não podem lutar contra um ‘establishment’, uma espécie de sistema hegemônico que molda os desfiles atuais e define como uma escola de samba deve ser, o que deve fazer para conseguir dinheiro para desfilar, como deve fazer seus carros, suas fantasias, suas alas, de que maneira deve apresentar sua bateria e seu samba, enfim, os elementos principais do desfile. Diante disso, muitas escolas se vêem obrigadas a abandonar tradições para tentar se enquadrar às exigências dos jurados e da Liga Independente das Escolas de Samba, o órgão que organiza as etapas do carnaval.
As escolas mais recentes, ou as de pouca representatividade, apresentam maior suscetibilidade à influência do processo homogeneizador. O fato delas não possuírem os elementos e os princípios básicos de como se formaram as escolas de samba. Elas não possuem características fortes o bastante para resistirem, ou simplesmente, não possuem marcas próprias, que seriam a base de sua criação. Porém, isso é algo que nem as escolas tradicionais conseguem evitar.
No ano de 2005, duas tradições foram quebradas, e, curiosamente, em sentidos opostos, em relação às baterias de duas escolas. Também curiosamente, essas baterias são duas das consideradas melhores. A Mocidade Independente de Padre Miguel, famosa desde a década de 60 pela sua bateria e por suas paradinhas, teve muitas notas baixas nesse quesito nos anos anteriores. Essa marca é tão forte na agremiação, que, quando ela começou a ficar famosa, era conhecida como “a bateria que tem uma escola”, pois o que fez a mocidade virar uma grande escola foi de fato a sua bateria. O samba “Salve a Mocidade”, cantado por Elza Soares, mostra a reputação da bateria: “Padre Miguel é a capital da escola de samba que toca melhor no carnaval. Lá vem a bateria da Mocidade Independente, não existe mais quente!”.
As paradinhas da Mocidade foram as que ‘instituíram’, ao longo do tempo, a quase ‘obrigação’ que as baterias atualmente têm em apresentar paradinhas, e das mais diversas maneiras. Isso pelo simples fato de ter que apresentá-las, não importando se elas são ou não convenientes ao respectivo samba e ao estilo que a bateria toca em uma determinada escola. Ela sempre desfilou com a bateria realizando paradinhas e, na busca por ‘agradar’ o gosto dos jurados, rompeu com sua tradição e desfilou sem a sua grande característica. A bateria percorreu a avenida completamente ‘reta’, ou seja, sem realizar paradinhas. Essa é uma tentativa de se adequar ao ‘sistema’, de se adaptar à homogeneização e, como isso, até mesmo de sobreviver no grupo principal do carnaval. Porém, não surtiu efeito e a escola não conseguiu receber notas altas.
Já a Mangueira, que também vinha recebendo notas baixas nos anos anteriores, tem como uma das suas características marcantes o fato de sua bateria sempre passar ‘reta’ na avenida. A escola nunca tinha feito paradinhas. Em 2005, quebrou a sua tradição, e as apresentou, mas também não conseguiu notas boas por parte dos jurados. Não houve uma boa receptividade e adaptação, principalmente pro parte de seus integrantes. Essas características são de fato marcas culturais dessas escolas, e trocá-las ou mudá-las acarreta uma descaracterização. No ano seguinte, as duas voltaram a apresentar na bateria as suas características marcantes. Essa cultura é tão forte nessas escolas, na Mocidade, de fazer paradinhas, e na Mangueira, de nunca fazê-las, que elas conseguiram resistir à essa homogeneização, e mostram o grande simbolismo e identidade que essas características trazem às respectivas escolas.
O desfile em si é apenas uma conseqüência do que seria uma agremiação com vários sambistas, com uma comunidade que realmente lutasse por ela e pelo samba, e que, no período carnavalesco, todos desfilassem cantando um samba que representasse o estilo de seus compositores, mostrando a sua dança, sambando e evoluindo graças a essa música, e, a partir disso, fazendo uma grande festa. Contudo, houve uma inversão de valores. O efeito tomou o lugar da causa, e o desfile carnavalesco passou a ser o grande cerne de uma escola, e a razão dela existir. O efeito - o desfile - passou a ser praticamente sinônimo de escola de samba, e não mais o ‘samba’ em si. Esse passou a ser um mero detalhe na realidade das escolas de samba. O que passou a caracterizar as agremiações é praticamente apenas o desfile de carnaval. Por exemplo, entre ter um samba ‘ruim’ e ter alegorias ‘ruins’, as escolas preferem a primeira opção.
Como o desfile de carnaval é uma competição, o que recebe nota alta, por qualquer motivo, é copiado; e o que recebe nota baixa, é excluído ou reduzido. Até a década de 50, os enredos exaltavam a pátria Eram os chamados enredos capa-e-espada, com personagens e acontecimentos da história oficial, como Tiradentes, a Batalha do Riachuelo, Tuiuti, entre outros. A partir da década de 60, o Salgueiro inovou ao apresentar temas negros, como Quilombo dos Palmares, em 1960, e Chica da Silva, em 1963. Ganhou vários carnavais, e a temática mais diversa, de maneira natural, foi absorvida pelas outras escolas. Em 1976, o carnavalesco Joãozinho Trinta colocou pessoas em cima dos carros alegóricos da Beija-flor. Ganhou o carnaval, não apenas por esse motivo em especial, mas, a partir disso, acabou instituindo uma prática que chegou a ser proibida no carnaval de 1982, e que permanece até hoje. Outro exemplo de como as escolas rapidamente absorvem elementos de outras agremiações, ainda no campo estético, é o recente caso do carnavalesco Paulo Barros, que, a partir de 2004, levou ao extremo a opção que virou ‘regra’: de levar pessoas em cima dos carros alegóricos. Ele fez carros com construções e coreografias utilizando dezenas de pessoas, e colocando, no carnaval de 2007, uma parte da bateria da Viradouro em cima dos carros alegóricos. Características suas já começam a ser sutilmente, ou ‘descaradamente’ copiadas e adaptadas em outras escolas.
No aspecto musical, o mais fundamental da festa, a descaracterização é tão forte que gerou, a partir da década de 80, um fenômeno chamado de marcheamento. Principalmente nessa década, houve uma aceleração no andamento e no estilo das músicas, o que posteriormente comprometeu a própria estrutura rítmica das composições, com muitas não sendo em ritmo de samba, apesar de serem executadas ao som de uma bateria, que dá um ritmo de samba, mas que não tem a capacidade de transformar qualquer melodia em samba. Alguns desses ‘sambas de enredo’, como o caso de “Festa Profana”, da União da Ilha, em 1989, tornaram-se clássicos. Para ressaltar que esse é um fenômeno que se tornou hegemônico, mas que tem as suas exceções, no mesmo ano, a Imperatriz Leolpoldinense veio com o samba “Liberdade! Liberdade! Abra as Asas sobre nós!”, que se tornou bastante conhecido. Ou por exemplo, em 2003, quando a mesma Imperatriz veio com um samba de enredo bastante descaracterizado, enquanto que a Mangueira e a Unidos da Tijuca foram para a avenida com sambas que são realmente sambas, ou seja, com melodias que estão estruturadas em ritmo de samba.
Paralelo a esse fenômeno, ocorre outro, relativo ainda aos sambas do carnaval, e que ocorre independente do marcheamento ou não do samba. É a pasteurização dos sambas de enredo, em que eles se tornam muito parecidos, tanto melodicamente, quanto nas letras. O que demonstra que a estereotipização é encampada pelos compositores das escolas, que, em sua maioria, permanecem no óbvio ao fazer os sambas. Em sua maioria, os compositores que participam das disputas para escolha do samba – e que tem dinheiro para tal – não são sambistas no sentido de fazerem sambas regularmente, durante o ano inteiro. Eles fazem apenas um samba por ano: o samba de enredo com que disputarão o concurso interno da escola. Isso por si só é um fator que explica como fica cada vez mais restrito o universo musical do samba de enredo, sem ter muito contato com o próprio samba em si. Samba de enredo não é subgênero, nem estilo de samba. É apenas uma categorização, um samba como outro qualquer, cuja letra conta uma história, ou seja, um enredo. Por exemplo, o samba “Mestre-Sala dos Mares”, de João Bosco, é um samba de enredo. Não é de carnaval, nem de alguma escola, mas é um samba de enredo.
A descaracterização do samba de enredo existe independentemente dele ser executada pela bateria de forma lenta ou rápida. Há o argumento de que a escola tem que passar no tempo certo, e que, com uma composição lenta, tornaria impossível a passagem da escola sem ultrapassar o tempo, dado o atual tamanho e dimensão delas. Contudo, mostra-se equivocado quando são analisados alguns exemplos de escolas que nunca tiveram problema algum, e inclusive ganhando, mesmo indo pra avenida com sambas, digamos, sem descaracterização, não importando se foram executados ou não com andamento acelerado. É o exemplo da Beija-flor, em 2004 e 2005. A escola veio com samba e bateria cadenciada, e ganhou o carnaval.
As próprias escolas já se alertaram sobre as mudanças ocorridas nelas, através dos próprios enredos. O Império Serrano, em 1982, veio com o enredo “Bum Bum Paticumbum Prugurundum”, sobre a história das escolas de samba, e falou do crescente processo de comercialização das mesmas: “Super Escolas de Samba S/A, super alegorias, escondendo gente bamba, que covardia!”. A São Clemente, em 1990, trouxe o enredo “E o samba sambou”, criticando o modelo de escola de samba que já imperava na época. A letra diz:

“Vejam só! O jeito que o samba ficou... E sambou! Nosso povão ficou fora da jogada, nem lugar na arquibancada ele tem mais pra ficar. Abram espaço nesta pista, e por favor, não insistam em saber quem vem aí! O mestre-sala foi parar em outra escola, carregado por “cartolas” do poder de quem dá mais. E o puxador vendeu seu passe novamente. Quem diria, minha gente? Vejam o que o dinheiro faz! É fantástico! Virou Hollywood isso aqui. Luzes, câmeras e som! Mil artistas na Sapucaí! Mas o show tem que continuar, e muita gente ainda pode faturar: “Rambositores”: mente artificial. Hoje o samba é dirigido com sabor comercial. Carnavalescos e destaques vaidosos, Dirigentes poderosos criam tanta confusão. E o samba vai perdendo a tradição! Que saudade da Praça Onze e dos grandes carnavais! Antigo reduto de bambas, onde todos curtiam o verdadeiro samba”.

Candeia, compositor portelense, juntamente com outros sambistas, como Paulinho da Viola, Martinho da Vila, e Elton Medeiros, criou, em 1975, o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Samba Quilombo, que desfilava, mas não participava da disputa do carnaval. O objetivo era ser uma resistência contra a descaracterização do sentido cultural e das tradições das escolas de samba. Em texto, uma espécie de manifesto de fundação da escola Quilombo diz:

Respeito mitos e tradições (...) Não admito moldes! As forças contrárias são muitas, não faz mal... (...) Ninguém pode imperar. Teoria deixa de lado, dou vazão à riqueza de um modo ideal. (...) Não sou radical, pretendo apenas salvaguardar o que resta de uma cultura. Gritei bem alto explicando a um sistema que cala vozes importantes e permite que outras totalmente alheias falem quando bem entenderem... (...) Não almejo glórias, faço questão de não virar academia, tampouco palácio. Quero sair pelas ruas do subúrbio com minhas baianas rendadas sambando sem parar... Com minha comissão de frente digna de respeito... Intimamente ligados as minhas origens, artistas plásticos, figurinistas, coreógrafos, departamento culturais profissionais... (...)

O Quilombo, em sua criação, buscava mostrar a visão de que, quando o samba e a escola se submetem a diversas influências externas, a escola de samba deixa de representar a cultura do povo. Essa possibilidade da escola deixar de lado, ou mesmo, se afastar de seu referencial, ou seja, daquilo que permitiu a sua existência, a tornaria incapaz de representar plenamente sua base, no caso, o samba. É uma contradição o fato de algo que foi criado como um símbolo em si, e que tem na simbologia a sua identidade e grande razão de ser, não reunir mais elementos que possam legitimá-la enquanto representante dessa cultura. O que não quer dizer que ela não possa mais representar, ou que tenha perdido sua significação, mas, obviamente, dessa maneira, a escola não está representando plenamente a sua origem.
Essa situação das escolas de samba é um sistema que foi se instalando aos poucos e virou regra. Fazer um desfile com samba ‘de verdade’ se torna atualmente uma ousadia que poucos têm coragem de embarcar. “Nadar contra a maré” sempre é complicado. Isso exige, no mínimo, familiaridade e sintonia com o samba, e, sobretudo, consciência para contornar uma situação delicada, pois essa identidade da escola de samba, mesmo estando descaracterizada, continua sendo uma tradição forte e representativa para o samba.

Referências Bibliográficas:

LOPES, Nei. Partido alto: Samba de bamba. Rio de Janeiro, Pallas, 2005.

CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Lumiar, 1996.

HISTÓRIA DO SAMBA. Editora Globo. Rio de Janeiro, 1998. 40 fascículos.

ENTREVISTA. Fernando Pamplona. Disponível em: http://www.obatuque.com/
baluartes_da_midia/fernando_pamplona/fernando_pamplona.htm

PROJETO DO SESC VALORIZA A CULTURA DE MADUREIRA E ADJACÊNCIAS. Disponível em: http://www.portelaweb.com.br/solciapublitex/exibe.ph p?selec1=novpor&selec2=&selec3=20070522001.

"Amores Expressos" por Pedro Neves



O desejo de fugir é uma constante nos filmes de Wong Kar-Wai. Seus personagens nunca estão satisfeitos com o lugar que a vida escolheu para colocá-los. O paraíso sempre parece estar bem longe, seja em Foz do Iguaçu, seja no ano de 2046. No caso de Faye, a garçonete de Amores Expressos, a felicidade encontra-se na Califórnia. Faye nunca foi à Califórnia. Não tem amigos ou parentes lá. Na verdade, tudo que Faye conhece em relação ao ensolarado estado americano está na canção California Dreaming, de The Mamas & The Papas, que ela escuta obsessivamente na lanchonete onde trabalha. A história de Faye é um retrato delicado do poder da cultura pop de atravessar barreiras linguísticas e provocar desejos e sensações em pessoas que vivem em realidades completamente diferentes, em lados opostos do planeta.
Amores Expressos se passa na cidade de Hong Kong, a mais multicultural da China. Quando o filme foi feito, em 1994, a região ainda era território inglês – apesar de 95% da população ser de origem chinesa. Os habitantes de Hong Kong vivem em uma realidade bem diferente da do restante do país. A economia é ultraliberal, os costumes são globalizados, a educação segue modelos ocidentais.
É essa imagem, de uma Hong Kong cosmopolita e movimentada, que o filme exibe e glorifica. Seus habitantes estão à deriva em uma metrópole caótica e hipercolorida, cheia de sinais luminosos de neon, bares e lanchonetes 24 horas. Uma dessas lanchonetes serve como o ponto de encontro dos personagens e das duas histórias contadas. Ela serve, aparentemente, comidas típicas de Hong Kong, mas os policiais que protagonizam as histórias sentem-se igualmente bem comendo Big Macs ou abacaxis enlatados.
Em meio a essa multiplicidade de culturas, o contato com o estrangeiro é inevitável. E em Amores Expressos ele se dá de diversas formas: a traficante negocia com árabes, a namorada do policial 663, uma aeromoça, viaja ao redor do mundo e Faye sonha com a Califórnia-clichê vendida pelas canções americanas. Em uma cultura globalizada, o que vem de fora penetra o espaço físico e, talvez mais significativamente, o imaginário, para o bem e para o mal.
As músicas ouvidas pelos personagens mostram as encruzilhadas culturais em que se encontram: além de California Dreaming, há uma versão em cantonês (cantada, inclusive, pela própria atriz Faye Wong) para Dreams, da banda irlandesa Cranberries. A música nos filmes de Kar-Wai é sempre indissociável dos personagens, e suas referências são as mais variadas possíveis: pop internacional, cantopop (o pop de Hong Kong, cantado em cantonês), tango, boleros, standards da música americana, ópera.
As influências visuais do cineasta também provêm dos mais variados estilos, épocas e nacionalidades. A linguagem publicitária está presente na artificialidade das imagens, que se utilizam ostensivamente de câmera lenta, monocromia e música para criar sensações. Homenagens ao cinema vão da personagem de Brigitte Lin, uma femme fatale de peruca loura, à nouvelle vague e aos primeiros filmes de Godard, com suas câmeras instáveis e reflexões em off. Em muitos momentos a película lembra um videoclipe, devido à edição rápida, os efeitos visuais e a presença recorrente da música.
Fica claro ao espectador de Amores Expressos a penetração da cultura ocidental em Hong Kong, e o seu papel na formação de Wong Kar-Wai. Mas o sucesso do filme no mundo inteiro e o prestígio conquistado pelo diretor provam que esse é um caminho de mão-dupla. Kar-Wai é considerado um dos maiores cineastas da atualidade, e é cultuado por fãs ao redor do globo. O cinema chinês ganha cada vez mais adeptos no Ocidente, atraindo tanto o público interessado nos blockbusters de artes marciais quanto os cinéfilos que fazem fila para assistir aos lançamentos de películas autorais. As culturas orientais já fazem parte do dia-a-dia de qualquer cidade minimamente sofisticada da Europa e da América há anos. Culinária, produtos importados, filosofias, religiões, terapias e atividades esportivas, além de bens simbólicos como programas de TV, quadrinhos, livros e filmes vindos de países orientais são largamente consumidos por cidadãos comuns do oeste do mundo.
Amores Expressos é um filme “multicultural” em diversos níveis. A história apresenta aspectos que misturam o particular e o universal, a estética da qual a película se compõe é uma amálgama de influências nacionais e internacionais e a recepção do filme mundialmente revela muito sobre a globalização cultural nos dias de hoje. É uma experiência rica para os sentidos e a para a mente.

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

"Faça a coisa certa" por Andréa Aquino


“Tanto a produção quanto a recepção do filme são envolvidos por interesses ideológicos, não importa quão insistentemente isso possa ser negado” (TURNER, 1997, p. 143)[1]. Esse pensamento guiará toda a minha análise de Do the right thing (1989), filme de Spike Lee. E não poderia ser diferente a abordagem de um filme que se propõe a expor as tensões raciais nos Estados Unidos realistamente, imersas em atitudes simples do cotidiano, como comer uma pizza ou ouvir música.


O filme de Spike Lee, porém, não pode ser lido, de forma excessivamente simplificadora, apenas como uma defesa aos afroamericanos frente as constantes preconceitos e violações de direitos. Durante toda a narrativa, podemos perceber como alguns personagens negros podem se transformar de oprimidos em opressores, desrespeitando outras minorias presentes no bairro, como os orientais (representados como donos de um mini-mercado). Ao final, o espectador fica com a semente da dúvida no peito: e, afinal, o que é a coisa certa? O filme é uma profusão de significados, ideologias, contradições, “um campo de batalha de posições concorrentes e geralmente contraditórias” (Ibidem, p. 143). E se todo filme apresenta contradições (o que pode ser feito através da simplória divisão “mocinho x bandido”), Do the right thing dá um passo além: não escolhe um “lado” em seu desfecho[2].

Obviamente, também esses meus comentários são ideológicos: de alguma forma, eles mostram o que acredito ser “a coisa certa”. Considero um dos grandes pontos do filme a possibilidade da dúvida, como em um final aberto. Mas dessa possibilidade, porém, retirarei a ideologia que me convém, na qual acredito. A partir de elementos do filme, bordarei dois tema principais: a construção da identidade negra e a violência como discurso.


Identidade negra

Em uma parede, perto da pizzaria de Sal[3], está pintada a bandeira Pan-Africana, criada em 1920 e símbolo da Universal Negro Improvement Association and African Communities League (UNIA). Suas cores (vermelho, preto e verde) representam, respectivamente:
→ o sangue que une todos com ancestrais africanos; o sangue derramado pela liberdade;
→ toda a nação[4] negra (ainda que não um estado-nação);
→ as riquezas naturais da África ou um símbolo ligando a emancipação negra e a luta pela libertação irlandesa.

A bandeira e os discursos dos personagens de Do the right thing deixam claras as formas de construção de uma comunidade simbólica, imaginada. O discurso da negritude se assemelha ao usado para as identidades nacionais.

... a nação não é apenas uma identidade política mas algo que produz sentidos – um sistema de representação cultural. As pessoas não são apenas cidadãos/ãs legais de uma nação; elas participam da idéia da nação... (HALL, 1997, p.53)

As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre “a nação”, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas. (Ibidem, p. 55) [grifos do autor]

Para analisar as formas como o discurso da negritude se apresenta no filme, utilizarei, então, as observações feitas por HALL (1997) sobre a formação das identidades nacionais.

Vamos nos deter, inicialmente, ao expressivo diálogo em que Mookie, interpretado pelo próprio Spike Lee, conversa com Pino, um ítalo-americano racista, sobre ícones negros.

Mookie: Who’s your favorite basketball player.
Pino: Magic Johnson
M: Who’s your favorite movie star?
P: Eddie Murphy
M: Who’s your favorite rock star? Prince. (...) Pino, fuck you, fuck your fuckin' pizza, and fuck Frank Sinatra.
P: Yeah? Well fuck you, too, and fuck Michael Jackson.

Ainda nesse diálogo, Pino ridiculariza o dizer se um líder negro, o ministro Farrakhan. O líder falava do dia em que os negros voltariam ao seu passado de glória. Pino pergunta a Mookie que passado seria esse. Ele responde: a civilização nasceu com os negros[5].

Outra fala bastante significativa é a do locutor da rádio local, o Mister Senor Love Daddy. Em um dos momentos do filme, ele cita, de uma só vez, dezenas de artistas negros.

Locutor: Boogie Down Productions, Rob Base, Dana Dayne, Marley Marle, Ola Tunji, Chuck D, Ray Charles, EP MD, Eu Alberta, Hunter Run DMC Stetsosonic, Sugar Bear, John Coltrane…

Tanto a fala do locutor quanto o diálogo anteriormente citado são exemplos de uma narrativa de identificação através da cultura de massa.

Como membros de tal “comunidade imaginada”, nos vemos, no olho e na mente, como compartilhando dessa narrativa. Ela dá significado e importância à nossa monótona existência, conectando nossas vidas cotidianas com um destino nacional que preexiste a nós e continua existindo após nossa morte (HALL, 1997, p. 56-57)[6].


Além disso, na enumeração das estrelas negras, recorre-se a uma idéia de continuidade, tirando cada artista de seu contexto histórico, político e estético para incluí-lo, indiscriminadamente, a idéia de negritude. No diálogo entre Mookie e Pino, há igualmente um ideal de continuidade, dessa vez representado por uma volta de um passado glorioso, como se os elementos essenciais do caráter negro permanecessem imutáveis através da história. Podemos localizar, também, uma espécie de mito fundacional (as raízes africanas, a imigração forçada para a América) baseado na identificação de um povo original (os africanos).

As culturas nacionais são tentadas, algumas vezes, a se voltar para o passado, a recuar defensivamente para aquele “tempo perdido”, quando a nação era “grande”; são tentadas a restaurar identidades passadas (Ibidem, p. 61).


HALL (1997) ressalta ainda que, muitas vezes, esse retorno ao passado oculta uma mobilização para expulsar os outros, que ameaçam a identidade da nação – um retorno à lógica do Apartheid. Essa, por exemplo, parece ser a forma como o personagem Chatonildo afirma sua negritude. Quando ele resolve comprar briga com um branco que pisa em seu sapato, diz: “Who told you to buy a brownstone on my block, in my neighborhood, on my side of the street? Yo, what you wanna live in a Black neighborhood for, anyway?”. Esse tipo de atitude gera conseqüências trágicas numa sociedade culturalmente heterogênea, como o quarteirão no qual se passa o filme.

Antes, porém, de falarmos mais sobre o uso da violência como estratégia, é necessário perceber que as identidades tanto nacionais quanto das minorias

... são atravessadas por profundas divisões e diferenças internas, sendo “unificadas” apenas através dos exercícios de diferentes formas de poder cultural. (...) As nações modernas são, todas, híbridos culturais. (Ibidem, p. 67).


Assim, a comunidade negra do filme apresenta diversas subculturas que entram em conflito não só com os orientais, brancos ou ítalo-americanos, mas também entre si.

A violência como discurso

PAIVA (2005) chama de “comunidade negativa” aquela “em que a ritualização do ser em comum funda-se em práticas violentas de exclusão visceral de um outro alheio ao núcleo grupal” (p. 21). Os indícios desse tipo de comunidade no quarteirão são percebidos em vários pequenos momentos de tensão: Radio Raheem deixa o seu rádio no último volume, incomodando a (quase) todos por onde passa; os grupo de jovens discute com o “Prefeito” do quarteirão, um senhor de idade avançada; o Prefeito bate-boca com a Mother-sister, uma espécie de mãe-de-todos do bairro...

Nas primeiras partes do filme, a violência do cotidiano transparece em intermináveis (e irritantes) gritarias, com viés cômico. No desfecho da história, porém, as pequenas agressões têm como conseqüência última a morte de Radio Raheem e a destruição da Pizzaria de Sal.

A comunidade negra que, até então, encontrava-se dispersa, com a morte de “um dos seus” torna-se uma minoria “passional”, “adotando posturas violentas e marcadamente terroristas” (Ibidem, p. 18). Podemos perceber, então, que entre as formas identificadas por Hall para mobilizar uma identidade em comum também está a violência, tanto como gatilho para a formação de uma comunidade imaginária como quanto estratégia de relacionamento com o outro. E não qualquer tipo de violência, mas especialmente a espetacular: quebrar vidros, mesas, colocar fogo na pizzaria.

Essa é a “a coisa certa”? Creio que não. Como PAIVA (2005), penso que o caminho a se trilhar é o da aceitação radical do outro e que

Apesar de a forma social estar marcada pela violência, os grupos minoritários podem [eu diria devem] optar por adotar formas de ação capazes de fazer frente à crueldade institucionalizada e generalizada com processos sociais inclusivos que priorizem a existência harmônica entre os cidadão. (p. 21-22)

Isso é possível? Talvez. Até porque o final está em aberto.


BIBLIOGRAFIA

AFRO-AMERICAN flags. Disponível em: <>. Acesso em: 19 set 2007.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A Ed., 1997.

LOUIS Farrakhan. Disponível em: . Acesso em: 16 ago 2007.

MEMORABLE quotes for Do the right thing. Disponível em: . Acesso em: 19 set 2007.

PAIVA, Raquel. Mídia e política de minorias. In: Comunicação e cultura de minorias. São Paulo: Paulus, 2005. p. 15-25.

PAN-AFRICAN flag. Disponível em: . Acesso em: 19 set 2007.

PICCARDI, Tatiana. A construção do sentido em textos empresariais institucionais: Confronto de vozes e ideologia. Disponível em: . Acesso em: 16 ago 2007.

TURNER, Graeme. Cinema, cultura e ideologia. In: Cinema como prática social. Tradução de Mauro Silva. São Paulo: Summus, 1997. p.128-154.
[1] “(...) ideologia, para efeito deste estudo, é o conjunto de idéias e crenças gerais pelas quais os homens, em determinada sociedade e tempo histórico, criam, explicam, justificam e impõem suas ações (com maior ou menor grau de imposição) em todos os níveis das relações sociais, inclusive os mais corriqueiros“ (PICCARDI, 1999, p. 43)
[2] A diversidade de interpretações possíveis, provavelmente, deve ser uma das causas para Do the right thing ser um dos poucos filmes a apresentar 100% de aprovação dos críticos no site Rotten Tomatoes (www.rottentomatoes.com). Como ressalta TURNER (1997), “os problemas formais que podemos discernir num filme com freqüência são atribuíveis à intransigência da oposição ideológica” (p. 145)
[3] Personagem ítalo-americano.
[4] Para efeito desse trabalho, utilizo o termo nação com sentido de comunidade.
[5] Segundo a Wikipedia, é do ministro Farrakhan a frase "Pessoas brancas são potencialmente humanas – eles não evoluiram ainda”.

[6] É interessante, aqui, lembrar, que a fala do locutor, por exemplo, termina com a seguinte frase: “We wanna thank you all for makin' our lives just a little brighter here on We Love Radio”.

"Babel" por Valéria Araújo


Isolamento. Incomunicabilidade. Incompreensão do outro. Renegando o conceito mais primário do multiculturalismo, o diretor Alejandro González Inãrritu, com o filme Babel, mostra o caldo de culturas que embola em flocos. Sujeitos localizados circulam por outras terras, levando pouca compreensão e abertura ao outro.

A história enfoca o conflito entre culturas, cujos núcleos narrativos estão espalhados pelo Japão, Estados Unidos, Marrocos e México. Os personagens vivem, em cada um desses espaços, situações que se desenrolam de certa forma independentes, porém, com um elo que parece evidenciar o quão distantes e, ao mesmo tempo, próximos o mundo globalizado pode nos tornar.

Um casal americano, interpretado pelas estrelas hollywoodianas do filme, Brad Pitt e Cate Blanchett, está no Marrocos em férias, buscando uma reconciliação. Seus dois filhos estão em casa aos cuidados da babá mexicana. Na região por onde viaja o casal, vive uma família com três filhos, dois meninos e uma menina. O pai dos garotos compra um rifle, para que lhes auxiliem nos pastoreio do rebanho de cabras. Os meninos brincam com a arma até acertarem o ônibus em que viaja o casal em férias, atingindo o ombro da americana. O incidente, até que não se descubra os acusados, torna-se um problema político. Nos EUA, a babá recebe a notícia, cuida das crianças, mas precisa atravessar a fronteira, no dia seguinte, para ir ao casamento do filho. No Japão, um complicado relacionamento entre pai e filha, surda-muda, evidencia o ápice do isolamento.

Através de um ordenamento não linear do roteiro, as situações são justapostas na edição, no mesmo ritmo do caos causado pelas constantes situações de incompreensão do outro presentes no filme.

Em uma delas, a incomunicabilidade e isolamento são retratados no casal, que viaja a terras distantes, com o objetivo de se encontrarem. Uma cena de conversa durante um almoço, ou melhor, cena de um não-diálogo, mostra como os dois já não conseguem discutir seus problemas. Mostra também como a mulher se sente deslocada num ambiente em que desconfia até da água que compõe o gelo de sua coca-cola. Em seguida, numa situação de total desespero causada pelo tiro, a americana consegue se reconciliar o marido e é acolhida pelo povo que, minutos antes, não era confiável para ela.

Os mesmos conceitos são abordados de forma genial no enredo da moça japonesa. Sentindo constantemente a rejeição causada pela sua deficiência física, ela se desespera em busca do toque do outro, de se sentir desejada. Um dos policiais que investigam seu pai, ex-dono do rifle de onde saiu o tiro que acertou o ônibus no Marrocos, consegue ao menos observar a dor da menina. Ela tem amigos surdos-mudos e outras pessoas com quem convive e que a compreendem, mas ela não se sente igual, ou pertencente aos ambientes que freqüenta. Carrega sua dor e mal-humor até mesmo em ambientes em que todos têm a mesma deficiência.

A incompreensão e desvalorização do outro foram abordados de maneira direta também quando a babá mexicana não é liberada do trabalho para o casamento do próprio filho, apesar de os patrões já não estar nos piores momentos de sua trágica viagem. Ela se vê forçada a levar as crianças consigo e, após uma confusão na alfândega, causada pelo abuso sutil dos policiais, se vê numa fuga pelo deserto. A confusão resulta em prisão e deportação, apesar dos 16 anos de vida nos Estados Unidos.

Outra situação de extrema incompreensão é a que retrata a vulnerabilidade diante do poder policial, evidenciado também na busca da polícia pelos dois meninos no Marrocos. A fragilidade desses grupos, principalmente quando as implicações jurídicas envolvem sujeitos de categoria poderosa, como os cidadãos americanos, desmascara a neutralidade do estado liberal. Como sublinha Hall, na obra Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais, “os direitos da cidadania nunca foram universalmente aplicados... Esse vazio entre ideal e prática, entre igualdade formal e igualdade concreta, entre liberdade positiva e negativa tem assombrado a concepção liberal de cidadania desde o início.”.

A relação de poder também pode ajudar a constituir a identidade e explica o comportamento que alguns viajantes do ônibus tinham em relação ao povo do local em que escolheram passear: arrogância. “É o contraste binário entre o particularismo da demanda ‘deles’ por reconhecimento da diferença versus o universalismo da nossa racionalidade cívica”, explica a frase de Rawls citada por Hall na obra já referida.

A incompreensão limite que vivemos é tristemente irônica como a situação em que dois irmãos causam um incidente político através de uma aposta boba: provar que a bala do rifle não chega ao ônibus. Em situações bastante individualizadas, Alejandro González Inãrritu desenha essa incompreensão e o isolamento que o multiculturalismo também pode ser, quando nos julgamos superiores, por demais diferentes ou inferiores. A moça japonesa precisou encontrar acolhimento nos braços de um estranho, o policial que investiga sobre o rifle. Só depois, ela consegue abraçar o pai. Uma babá que conhece as crianças sob seus cuidados dede que nasceram não consegue provar legalmente que é a pessoa mais indicada para atravessar uma fronteira com elas. Quando presa, protesta, mas logo é persuadida a conformar-se com a deportação. A noite do mundo leva cada um a ficar no seu lugar.


Referências Bibliográficas:

HALL, Stuart. “A questão multicultural” In Da diáspora. Belo Horizonte. Editora UFMG, 2003. 51-100

"O CYBERPUNK E OS ASPECTOS DE SUA LUTA CONTRA-HEGEMÔNICA" por Erick Vasconcelos, Gustavo Ferreira, João Gabriel Figueiredo e Rafael Monteiro


“Hey! Ho! Let’s Go!” era a chamada de Joey Ramone em seus shows. Essa citação encarna a ideologia do movimento punk em uma de suas formas mais puras. Joey Ramone era vocalista de uma das primeiras bandas punks, os Ramones, e com essas exclamações demonstrou a atitude punk de chamar todos para uma ação e também a indecisão punk quanto a que decisão tomar ou o que fazer dessa atitude – comprar milk shake, talvez? Mas essa coisa de agir assim, sem motivo, só por agir, isso não é uma constante no movimento punk. Aliás, seria possível até definir que uma das constantes desse movimento é não ter constantes, mas isso seria cair em um erro histórico e superficialidade de conhecimento, coisa que os autores muito responsáveis deste ensaio não pretendem fazer. Às vezes será possível encontrar o olhar esnobe e sutilmente admoestador dos quatro redatores para seu leitor que generalizava os punks tão rasteiramente. Aqueles que definem o movimento como caótico só fazem isso porque não compreendem a essência do movimento. Os punks são organizados tanto em ideologia quanto em estilos. Mas é claro que divergências são inevitáveis – há divergências em todos os meios, quando os personal stylists reais vão escolher as vestes do príncipe Charles ou quando um conservador prefere, ao contrário de seu amigo, ouvir Vivaldi a Bach. Isso, claro, não é o bastante para criar segregação nem isolamento dentro dos grupos – nem dos punks, obviamente.
Se este ensaio fosse voltado para o público infantil haveria aqui uma chamada “um pouquinho de história”, em negrito e sublinhado. Apesar disso, dessa ausência de vinheta que não está aí por motivos de público-alvo (crianças não costumam ler ensaios acadêmicos, costumam?), é interessante acompanhar os principais fatos dentro do grupo. O movimento punk surgiu em meados da década de setenta como uma defesa de conceitos como o individualismo, o pensamento livre, o anti-autoritarismo e a anarquia. A principal ferramenta de defesa desses conceitos, para o punk, é o choque. A música punk é quase uma anti-música, rápida e pesada; o estilo beira o gótico, negando todas as grandes marcas (no Coca-Cola? Hell, that’s crazy!); o pensamento político varia do extremismo de esquerda ao de direita, incluindo o neo-nazismo nesse bolo (yo, é possível ser anarquista e nazista ao mesmo tempo? Os punks insistem que sim, deixem-nos pensar). Como um movimento tão distinto pode ser unificado, então?
Simples: ética. É, ética. Os punks seguem fielmente o “Do It Yourself”. Essa independência criou não só o cenário underground, mas também uma verdadeira indústria, chamada “independente”. Os punks organizavam seus próprios eventos e suas próprias gravações, o que produziu um lema a ser seguido por todos os punks: "Don't hate the media, become the media". A frase, atribuída a Jello Biafra, um punk ativista ambiental, mostra a disposição do movimento de lutar por um espaço próprio.
Depois de três décadas de forte atuação do movimento, ele não só conseguiu abrir seu espaço na mídia, como criou a supracitada “indústria independente”. Isso levou algumas vertentes do punk a chamar de “vendidos” aqueles que conseguiram se inserir na grande mídia ou que mudaram seus estilos para aumentar seu espaço, mas esse assunto fica de fora do escopo deste texto que, caso o leitor ainda não saiba, falará, depois dessa introdução e da impertinência deste comentário, sobre a relação dos cyberpunks com a tecnocracia.

Perdoem a breguice da frase, mas na década de 80 a internet ainda era um território virgem a ser desbravado pelos primeiros surfistas digitais. Esse espaço, livre de fronteiras e governado por uma linguagem universal, era o espaço perfeito para a realização da utopia anárquica punk, e os punks não demoraram a perceber isso: o ciberespaço era o lugar onde todas as possibilidades ainda estavam em aberto.
Graças a isso alguns punks abandonaram a regra de estilo que dita que um punk não usa grandes marcas e se aventuraram no ciberespaço – se venderam pelos benefícios da internet, em linguagem franca. Esses desbravadores “vendidos” inauguraram na rede uma variedade de páginas de informações e de relacionamento, como fóruns e chats, o que uniu os grupos vendidos e lhes deu características peculiares na rede. Cada grupo de dissidentes punk acabou adquirindo uma nomenclatura daquilo que ele fazia para combater as corporações (ou para manter sua própria liberdade, como preferem dizer) pela rede. Quem invadia sistemas para roubar informações virou hacker, quem quebrava códigos e traficava informações foi chamado cypher, quem destruía páginas e base de dados passou a ser cracker e quem não agia muito (enrolava) era lammer.
Segundo André Lemos, os cyberpunks representam aquela palavra que a MTV adora, a atitude, no coração da rede: “o imaginário cyberpunk vai marcar toda a cibercultura” e “[o imaginário cyberpunk] associa tecnologias digitais, psicodelismo, tecno-marginais, ciberespaço, cyborgs e poder mediático, político e econômico dos grandes conglomerados multinacionais” (LEMOS, 2004). Essa grande mistura é causada durante o combate ao que é chamado de tecnocracia, que merece uma explicação melhor.
Tecnocracia, em seu sentido clássico, significa “governo de técnicos”, e se caracteriza por ter a atividade política suplantada por uma “ciência da produção” e por uma “administração das coisas” em oposição ao governo dos homens. A primeira manifestação desta tecnocracia é atribuída ao socialista Claude-Henri de Rouvroy, o conde de Saint-Simon, no livro “Réorganisation de la Société Européenne”, de 1814. Nos anos 1930 surgiu, nos Estados Unidos, um movimento tecnocrático que punha grande ênfase no papel dos técnicos na organização da produção e que desconfiava dos empreendedores privados, sendo, de fato, um movimento defensor do planejamento central da economia, algo próximo a um socialismo tecnocrata.
Ao contrário do que se pensa atualmente e do que os cyberpunks de certo modo pregam, a tecnocracia é uma forma de extrema esquerda que elimina totalmente o indivíduo e também tríade esquerda-direita-centro (Bobbio, 1995). É surpreendente observar que nas décadas de 30 e 40 eram os liberais (de “direita”, no conceito de Bobbio) que a combatiam. Naturalmente, foi necessária uma mudança significativa para transportar a tecnocracia da esquerda para a direita e fazer surgir um movimento de esquerda para derrubá-la (que seria considerado um movimento de extrema-direita uns anos atrás, mas não digam isso aos cyberpunks). Essa mudança é a “máquina”.
A máquina foi o motor da revolução que deu início à pós-modernidade. Quando foram inventadas, as máquinas foram consideradas uma arma do capital privado capaz de baratear o custo dos produtos e deixar muitas pessoas desempregadas (uau, como as máquinas eram más!). Isso gerou um movimento conhecido como Luddismo, que conclamava seus seguidores a destruir as máquinas a fim de que houvesse mais empregos. Há, portanto, pelo menos dois séculos de carga simbólica sobre o imaginário da máquina e da indústria.
Esse simbolismo, entretanto, não foi estável. A máquina evoluiu e, com isso, evoluiu seu conceito. Marx foi um dos principais teóricos a afastar a idéia de “máquina-má-para-o-proletário”. Para ele, a máquina era um produto do capitalismo que deveria ser levado ao socialismo. Não se podia negar a vantagem que ela trazia na capacidade produtiva, e seria muito mais fácil assimilá-la ao seu modelo. Entretanto, em alguns momentos parece que o modelo marxista de sociedade é quem foi assimilado pela máquina. A idéia de totalitarismo democrático se encaixa bem na metáfora da máquina: cada peça é livre, mas o conjunto de peças só vai funcionar se cada uma estiver em seu devido lugar e funcionando perfeitamente, o que significa que se estiver faltando um reverso a sociedade cai.
As máquinas, então, ainda não eram desenvolvidas o suficiente para englobar a sociedade; nesse período ainda se podia dizer que as máquinas auxiliavam o homem, ampliando suas capacidades. Esse sistema socialista se baseia numa estrutura burocrática da sociedade (MISES, 1944), que é moldada à imagem da máquina. Os liberais combateram enfaticamente esse pensamento social, e nisso obtiveram relativo sucesso.
O problema evidencia-se posteriormente, apenas, quando a máquina foi melhorada pela tecnologia e propagada àqueles que supostamente sofriam com ela. A popularização da tecnologia promovida por meio da economia de consumo, como a norte-americana, foi capaz de mudar o conceito que se tinha de máquina. Ela se mesclou à tecnologia, sendo difícil distingui-las, já que falar de tecnologia passou a ser, necessariamente, falar das máquinas, e falar das máquinas ficou impossível sem tocar no tema “tecnologias”. O que antes era um instrumento de produção passou a ser um elemento de ciborguização do homem (HARAWAY, 1995). A máquina/tecnologia amplia as capacidades humanas, fazendo do homem, como paga, um ser híbrido.
Ela é capaz de nos deixar mais velozes e mais fortes, nos permite saltar mais alto, ver mais distante, ver aquilo que não podíamos enxergar, ouvir aquilo que não podíamos ouvir etc. Hoje é possível controlar até o tempo e o espaço por meio da tecnologia. Mas nada é mais surpreendente que o desenvolvimento da comunicação derivado da massificação da tecnologia e da máquina. A supressão dos espaços e do tempo aproximou as pessoas não no ambiente do real, mas do virtual. Eis que surge uma nova sociedade, que se desenvolve por uma rede complexa que liga todo o mundo, com uma cultura simultaneamente particular e global. A partir da tecnologia, o homem criou o ciberespaço que, por sua vez, permitiu o surgimento da cibercultura. Esse homem que, graças à tecnologia, não conhece limitações de espaço e é limitado apenas pelo tempo é um segundo tipo de ciborgue, aquele que se forma no imaginário ciber e sobrevive na rede (HARAWAY). A esses ciborgues deu-se o nome de cyberpunks.
Os cyberpunks são homens que usam roupas pretas, óculos espelhados e ouvem rock hardcore que vivem em dura batalha contra um Big Brother orwelliano. Em seus primeiros anos, os cyberpunks eram considerados um subproduto da ficção científica, mas a popularização das máquinas trouxe esse grupo, até então obscuro, a um lugar de destaque. Entretanto, a popularização do movimento contribuiu apenas para que o grupo fosse odiado pelos demais usuários da rede.
Os hackers, crackers, phreakers, vírus, ravers, cypherpunks, zippies e otakus passaram a constituir a ala marginal da internet. O curioso disso é que, ao contrário dos outros grupos contra-hegemônicos, os cyberpunks escolheram sua condição de minoria. Todos os que atuam em alguma atividade descrita acima poderiam simplesmente desistir dela e passar a ser bons usuários da rede, mas “contra a dominação tecnológica, os cyberpunks reais (...) propõem o delírio virtual do ciberespaço, as guerrilhas quotidianas contra o Big Brother, as agregações, comunistas ou não, das tribos eletrônicas, a luta pelos direitos dos netizens (cidadãos do ciberespaço)” (LEMOS, 2004). É nessa luta contra uma ameaça aparentemente futura, mas já considerada presente por eles, que os cyberpunks se constituem como um grupo minoritário, odiado e combatido por grandes corporações e pela atuação do Estado.
Um ponto que chama a atenção é a questão da presença da ameaça. Na literatura e nos filmes cyberpunks, essa ameaça tecnocrata surge como algo futuro ou irreal. Isso é culpa do tratamento de ficção científica dado a essas visões de mundo cyberpunks. Para o movimento, na verdade, a tecnocracia já está aí, forte, atuante e cada vez mais caçando a independência e a liberdade dos usuários da rede. Essa força tecnocrata está nas mãos de empresas detentoras dos direitos de programas considerados básicos, como sistemas operacionais e navegadores de internet. Essas empresas são notadamente virtuais e atuam em diversos ramos da rede; entre elas estariam Google, a Adobe e a empresa que é provavelmente a mais odiada entre os cyberpunks, a Microsoft. Os cyberpunks acreditam que essas empresas estariam customizando seus usuários ao invés de se adaptarem a eles. Para combater a “customização”, utilizam de denúncias, e-zines, chats, fóruns, hacks, cracks, pirataria e terrorismo.

Todos os dados até agora foram introdutórios do tema central deste estudo, apenas. A forma de luta que este trabalho pretende focar é o cinema cyperpunk, que, salvo algumas exceções, constitui-se mais em uma temática do que numa estética, ao contrário do que ocorre com a ficção científica.

O primeiro filme de que se deve falar quando o tema é estética “cyberpunk” é o entediante e quase nonsense Blade Runner – O Caçador de Andróides (1982, Ridley Scott), talvez o filme que melhor incorpore o cenário cyberpunk em todos os tempos. No filme, a tecnologia de 2019 é capaz de gerar andróides como cópias perfeitas dos seres humanos (os replicantes), com dois detalhes: os andróides do filme são mais fortes e mais ágeis que seus criadores e têm algo como um prazo de validade que marca seu desligamento – o que equivale a dizer que sua morte vem datada de fábrica. Esses andróides foram desenvolvidos para ser utilizados em trabalhos pesados e na formação de novas colônias fora da Terra, mas a inteligência artificial atuou e os fez revoltar-se numa colônia espacial.
Isso traria conseqüências terríveis aos replicantes. Eles são proibidos na Terra e uma força especial, chamada de Blade Runner, é criada na polícia para “removê-los” (eufemismo para destruição). O filme trata da fuga de quatro desses replicantes para a Terra e da busca empreendida pelo protagonista atrás deles (diga-se, uma busca bastante chatinha, sem nenhum esboço de emoção). A temática de Frankenstein fica bem clara no momento em que esses replicantes procuram seu criador para expiar os pecados e para obter o direito de prolongar as suas vidas. Esse desejo de viver mais é o que torna “humanos” os andróides.
O cenário, no entanto, é o “ator” principal do filme. A grande corporação que cria os replicantes aparece como um “panteão”, acima de qualquer Estado ou entidade, e tem sede em uma pirâmide gigantesca. As ruas são escuras e sujas, o que cria um clima de filme noir, em que dia e noite não podem ser distintos. Um dirigível publicitário atravessa a cidade o tempo inteiro, iluminando-a e observando tudo que acontece nela. Tudo parece sobre controle. As pessoas, os hábitos e até mesmo os pensamentos. O casal protagonista é composto por uma replicante de duração indefinida e um caçador de andróides aposentado. Apesar de o chefe do protagonista estar aparentemente ciente de tudo o que ele fazia, lhe permite fugir sem cumprir a missão que lhe foi ordenada – destruir os replicantes. Talvez Ridley Scott tenha deixado um quê de Big Brother nesse controle, algo que muitos resenhistas apontam em função da cena do filme em que a fuga de Harrison Ford é permitida por um Blade Runner que deixa um origami de um unicórnio no caminho; o detalhe é que Harrison Ford tem sonhos constantes com um unicórnio. A fuga mostra uma esperança final nesse universo em crise, mas não muito mais do que isso. A tecnocracia já foi longe demais; o amor “replicante” age como um último fogo de resistência.

Já “O Show de Truman” (1998, Peter Weir) é um exemplo de fuga da estética cyberpunk. Em quase todas as definições, esse filme seria não mais que um drama um tanto aguado, não fosse o tratamento tão completo dado ao Big Brother nesse filme. Jim Carrey é Truman, um homem que desde o seu nascimento foi controlado por uma empresa, explorado num programa de televisão voyeur, mais ou menos como um Big Brother Brasil sem o Pedro Bial nem data marcada para acabar, num daqueles pay-per-view 24 horas. Cada instante de sua vida era articulado e transmitido para a televisão pelo tecnocrata, na figura do diretor do programa. Tudo parecia ir bem para o diretor do progama, pois Truman tinha sua “vidinha perfeita”, sem grandes sonhos nem grandes provações e o programa tinha público recorde (em alguns momentos é explorada a temática do público, de como o fetiche do homem-espetáculo-do-real é adorado pelos espectadores do programa). A temática cyberpunk, no entanto, surge para abalar esse controle ao modo de “1984” de Orwell.
Truman toma consciência de sua situação de homem-espetáculo e de como sua vida é um show, o seu show. Ele luta contra isso, mas o diretor aparece como um deus, onisciente e onipresente, contra sua liberdade. Ele tenta fugir, mas estradas são fechadas; tenta sair do show, mas tudo conspira contra isso. Ele não sabe o que está lá fora, mas sabe que existe algo; como em Arquivo X, Truman conclui que existe uma verdade, e que “a verdade está lá fora”.
Assim, em meio a conflitos emotivos provocados pela hegemonia tecnocrata que procurava desnorteá-lo, ele consegue sair da rede que o prendia e navegar para longe. O diretor então se corporifica para Truman, que renega a esse deus, dizendo que o show acabou. Truman, portanto, renuncia ao “Big Brother” por opção; a liberdade cyberpunk prevalece ante a autoridade tecnocrata, mesmo que a manutenção da vida simples e pacata fosse mais confortável. Truman não aceita ter sua liberdade tomada em troca de algum conforto. Nada poderia detê-lo no mundo real: ele seria, qualquer que fosse o custo, pela primeira vez, verdadeiramente livre.
Graças ao poder de barganha, a luta de Truman é bastante pacífica em comparação a outras. Como o maior interesse do programa era que ele se mantivesse ignorante quanto a sua situação, o próprio Truman representava o instrumento de poder do reality show, era a vítima e o ponto fraco ao mesmo tempo. Uma vez conhecedor da verdade sobre sua vida, Truman não poderia voltar atrás, o que deu fim abrupto ao programa.
O tema do filme é carregado de paranóia constante, o que leva algumas pessoas a, inclusive, apresentar o distúrbio psíquico que as faz pensar que são perseguidas a todo o momento por câmeras escondidas. Algo perfeitamente possível, apenas pouco provável.

Outro herói cyberpunk que encontrou uma situação semelhante à de Truman, Neo, de Matrix (1999, Andy e Larry Wachowski), representa melhor a luta contra o sistema controlador. Nesse filme a tecnocracia perde o corpo e torna-se a própria “matriz” na qual os seres humanos estão conectados com o objetivo de produzir energia para as máquinas. Essa geração de energia provém dos impulsos nervosos produzidos enquanto se vive uma vida virtual na Matrix.
Algumas pessoas, contra o que desejam as máquinas, foram capazes de despertar e sair da “matriz”. Elas mantêm uma milícia guerrilheira que chega a incomodar as máquinas, mas não chega a ameaçar o sistema. Os ataques são rápidos e objetivos, pois esses “piratas” da rede correm dos agentes de segurança, aparentemente imbatíveis. A realidade parece pouco sujeita a mudanças, mesmo com luta, até surgir um “escolhido”, carregado de um forte caráter messiânico.
É esse escolhido, conhecido como Neo (anagrama para “One”, que, em inglês, representa “o escolhido”; “The One”), que vai fazer a balança pender e liderar o grupo minoritário com algum sucesso rumo ao fim da exploração humana. Antes de despertar, Neo teve a opção de escolher entre permanecer ignorante ou conhecer a verdade. Ele preferiu a segunda opção e com isso passou por uma metamorfose de pirata a messias. Ele morre para poder renascer como alguém imbatível dentro da “matriz”, alguém capaz de vencer inclusive os agentes. Mesmo com todo esse poder, Neo não consegue promover uma mudança do sistema dentro dele. É fora da “matriz” que a mudança acontece – uma analogia à necessidade de mudança a partir de métodos ainda não aproveitados (ou mal-aproveitados) pelo sistema, método utilizado pelos punks, que “não se rendem ao sistema”.
Neo vai pessoalmente fazer um acordo com as máquinas. Em troca de se livrar de um vírus que as ameaçava e de se sacrificar por isso, ele conseguiu a paz para os humanos. É uma esperança fraca, mas, ainda assim, uma esperança (a história do filme aponta que, desde o começo da batalha, não houve paz). Isso poderia ser tanto uma superação como poderia recair numa ação reacionária (BOBBIO). Só um suposto próximo episódio poderia dizê-lo.
Ainda que tenha sua estética totalmente dentro do cyberpunk, incluindo até o vestuário dos personagens, Matrix se coloca no ambiente da ficção científica, pois sai da ameaça presente atacada pelos cyberpunks para tratar de um perigo futuro. Mesmo assim o discurso do filme seria, segundo os cyberpunks, visionário, e serviria de alerta para o rumo a que a evolução tecnológica está caminhando.
Em Animatrix, dez animações que complementam a história de Matrix, esse alerta é ainda mais apelativo. Todos os episódios são carregados de conceitos cyberpunks, como a idéia do “faça você mesmo” e da liberdade, tanto ideológica quanto física, mas é em apenas duas delas que é possível notar a formação desse futuro sinistro de viver na Matrix.
O início de Matrix se baseia em um romance Isaac Asimov, “I, Robot”: um robô comete um crime e todos os robôs pagam por isso. Ocorre uma destruição em massa de máquinas, o que é mostrado tomando os robôs por vítimas e os homens como animais em frenesi. Os robôs remanescentes fogem para um deserto onde se agrupam, formando uma cidade-Estado de máquinas.
Em poucos anos as máquinas contra-atacam. Primeiro dominam economicamente o mundo, depois militarmente, pelas vias de uma guerra total contra a humanidade. Após derrotar os seres humanos, elas os aprisionam e os escravizam como fontes de energia. A Matrix foi criada para mantê-los com as ilusões de uma vida e produzindo os impulsos nervosos necessários para as máquinas. A criatura, em Matrix, não destrói o criador: escraviza.
Uma autoridade que se revele tão opressora a ponto de lutar contra ela se tornar algo praticamente impossível é o maior temor do cyberpunk. É por isso que o Neo carrega toda essa carga messiânica: ele promove o “milagre” de se opor ao sistema sem ser imediatamente retaliado por ele. Ele é o sonho de uma resistência, um herói contra-hegemônico.

Em Exterminador do Futuro (The Terminator, 1984, James Cameron), o messianismo está ainda mais presente na figura de John Connor. Um sistema de defesa com inteligência artificial criado para o controle de diversos outros sistemas militares, como alguns robôs e mísseis balísticos, rebela-se, infectando todos os computadores do mundo. Ele dispara os mísseis contra as grandes cidades e promove – adivinhem! – uma caça aos seres humanos.
John Connor é o homem que conseguiu reorganizar as defesas humanas e contra-atacar esse sistema matriz que controlava um exército de andróides. Mesmo contra todos os fatores, John Connor leva a humanidade a uma “quase vitória” contra as máquinas. Numa atitude de desespero, elas enviam um exterminador robô ao passado para matar a mãe de John Connor e evitar que a resistência sequer exista.
É então que, no passado, uma guerra urbana por cenário escuros de subúrbios americanos é realizada para manter viva a única esperança do futuro. O tema seria ficção científica se a ameaça em questão não fosse um sistema de máquinas. Uma tecnocracia extremada levaria os homens a isso; é por isso que esse futuro de guerra entre máquinas e homens é, na verdade, entre a autoridade tecnocrata e a liberdade cyberpunk.
O messias é, nesse caso, não só a pessoa que é capaz superar o sistema, mas alguém que age contra o sistema e o supera. A ação – descrita no começo deste ensaio como característica dos punks – é o que caracteriza o messias cyberpunk. Nos filmes, isso aparece na figura de Neo, Truman ou John Connor. Na rede, na figura do movimento cyberpunk. É por isso que R.U. Sirius convida a todos a se tornarem “anjos biônicos”, vigias da liberdade. Os últimos a resistirem e impedirem a dominação da rede e da sociedade através dela.

O movimento cyberpunk, que seria apenas a representação da atitude na cibercultura, fez-se forte e conseguiu sair da rede, tomando cinemas e literatura, difundindo suas idéias contra a tecnocracia e pela democratização da informação na rede. O ciberespaço é de todos, não apenas de grandes portais ou grandes corporações.
Na ficção científica, os ideais de futuro cyberpunks são assustadores, apesar de uma forte carga de esperança. Eles reconhecem esse futuro como possível se a história caminhar na linha da tecnocracia e por isso se firmam como um movimento anárquico de cunho político, organizado nos ideais, mas caóticos nas suas ações, Normalmente são vistos como transgressores da lei que se põem contra a tecnocracia.
Como um movimento jovem, eles não se importam com isso. Continuam agindo como piratas virtuais, atacando os símbolos tecnocratas por meio de vírus, cracks e hacks. Cyberpunks não são, entretanto, vândalos ou pessoas sem ideais; eles formam um movimento com base ideológica e força de atuação. Sua cultura, suas lutas e seus temores merecem ser observados e analisados, mesmo sendo considerado por muitos como ilegais ou de mau gosto.



Bibliografia

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- HARAWAY, Dona. Ciencia, cyborgues y mujeres: La reinvención de la naturaleza. Madrid: Cátedra, 1995
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-TEXTOS Anarcopunk. Zine Profecia. Disponível em: . Acesso em: 30 abr. 2006.
- THE Replicant Site. Disponível em: . Acesso em: 01 maio 2006.

"Faça a coisa certa" por Gustavo Ferreira


Quando se assiste a “Faça a Coisa Certa”, de 1989, do Spike Lee, é impossível não sair do filme um pouco mais racista, a princípio; mas depois de pensar um pouco – porque sim, eu penso, às vezes, sobre os filmes a que assisto – a gente vê que o erro não é dos negros. O erro não é de uma raça ou de um grupo etnicamente homogêneo. Há negros bons e negros maus, brancos bons e brancos maus, coreanos bons e, bem, todos os coreanos são bons, o que responde ao fato de serem também bem sucedidos. Mau mesmo é o Spike Lee.
É difícil falar de como as minorias são representadas nesse filme que tão bem separa as pessoas pelo caráter, antes de separar por outro grupo qualquer. O Bairro é o Brooklin, e todo o contexto do filme é o contexto do bairro. Lá, naturalmente há milhares de negros. E os negros chamam aquele de seu bairro; eles são os donos ali, eles têm o poder, eles são hegemônicos. O “prefeito” do bairro é negro, o radialista é negro, e nomes de negros famosos são enumerados como algum mantra, como se a luta ou fama deles justificasse algo hoje. Por serem maioria, os vilões do filme são negros, que lutam por causas bastante imbecis, como forçar Sal, o dono de uma pizzaria, a colocar fotos de negros na “parede da fama”, em que só ítalo-americanos estavam representados, por vontade do dono, ítalo-americano. Um negro que não tinha mais o que fazer interpreta o nacionalismo de Sal como racismo e planeja um boicote à pizzaria – algo a que tem direito, ok, não o questiono, todos podem ser imbecis como quiserem –, mas acaba fazendo muito mais que isso, porque é canalha. Um canalha que seria igualmente canalha se fosse branco ou de qualquer nacionalidade, menos coreano, porque os coreanos são bondosos. Todos os dois.
As minorias, no micro-cosmos do filme (e me sinto um retardado usando “micro-cosmos” em um texto, mas parece melhor que “no universo do filme” ou algo do gênero. Céus, como é difícil manter o estilo! [Desculpem pelo grito, não se repetirá]), acabam sendo os trabalhadores, os honestos, os decentes, que ininterruptamente são abordados pelos maus, a maioria, com poder consolidado no bairro, e obrigados a fazer algo de que não gostam ou que não querem. Quando a maioria, má, encontra resistência na minoria, boa, a vingança é bruta, e só pode ser contida por uma maioria ainda maior – uma das poucas vezes em que um elemento externo ao bairro entra no filme –, representada pela polícia.
Parece que o pensamento de minoria em relação ao ambiente mais amplo (a cidade ou o país) traumatizou o grupo de negros do mal, que por isso se mantém, mesmo no ambiente em que eles são obviamente maioria e detêm todo o poder, na defensiva contra todos, por menores que sejam – até contra os pobres coreanos, coitados, que só querem trabalhar honestamente, e sofrem preconceitos raciais dos black-nigga-dark-skinned-badass malvadões: “aprende a falar inglês, motherfucker!!!”, grita o negão do rádio quando vai comprar pilhas, com cada uma das três interrogações recheada de ódio e trauma, e depois obriga a coreana gentil a recontar o número de pilhas que ele está comprando – 20! – e ver a validade delas, mui grosseiramente.
Subverte-se (e eis-me aqui chateado novamente com a escolha de palavras que tomo neste dia de pouca inspiração) o sentido de minoria no filme: dos grupos organizados e explorados, a minoria se torna indivíduo, dupla ou trio, que, apesar de possivelmente bem representados em nível nacional, não têm participação ou representação local. O filme parece levar a cabo a interpretação de minorias, ao último dos patamares, que exclui do critério minoritário os grupos organizados e entra pelo ambiente individual, e de como um indivíduo, por mais que tenha sua classe bem representada em todos os aspectos, pode não ser representado de forma alguma, porque as classes, as raças, as etnias são rótulos demasiado abrangentes em que as pessoas são inclusas, às vezes precipitadamente, de forma a se unirem contra um “inimigo comum”, que pode estar em qualquer lugar – é preciso estar sempre alerta –, como se fosse impossível que todos ganhassem, e como se as pessoas fossem obrigadas a defender os valores arbitrários impressos nesses rótulos – caso contrário um nigga não é mais um nigga, ele não consegue “stay black”, e se torna algo menos que um filho da puta (sem desculpas pela palavra. Quem vê esse filme sai contaminado pelos palavrões e, como quem gripa precisa espirrar, é preciso pôr fora essas más palavras antes que se tornem crônicas ou pneumônicas. Alguém tem um lenço?).
Essa individualização da minoria parece ser a principal contribuição do filme, pois rompe a idéia de grupo organizado, mostra matizes diferentes dentro do grupo, e individualiza os indivíduos, se me é permito falar assim, em um ambiente em que o pensamento de classe oprime mais que as próprias hegemonias, e se torna hegemônico, regendo as relações interpessoais. O filme mostra o fim a que levam os movimentos minoritários quando orquestrados por pessoas demasiado cegas pela própria opressão que sofrem. Além disso, o filme mostra bondade e maldade, superioridade e inferioridade, gentileza e brutalidade, em todo tipo de gente. Italiano bom, italiano nigga, italiano racista, nigga simpática, nigga violento, nigga pacifista. Por um momento parece que Spike Lee quis quebrar com o conceito mais imbecil que Marx legou, o da luta de classes; o de que pra que se ganhe alguém perde.
Mas naturalmente estou sendo bondoso com o filme, que não tem a intenção de dizer nada disso. Antes, o filme quer ser o contrário disso. Como é mostrada, a destruição da pizzaria parece algo decente, parece algo que tinha que ser feito, mesmo que o dono da pizzaria em nada contribuísse para a continuidade dos negros como minoria – Sal só estava fazendo o trabalho dele, sem atrapalhar ninguém. Spike Lee parece indecente querendo transformar brutalidade em legítima defesa, e só se percebe esse aspecto de legítima defesa quando se vê a – bonita, correta, damn right – frase de Malcolm X, que diz que violência em legítima defesa não é violência, é inteligência. Aquilo só não se aplica ao filme.
Faz-se necessário um breve spoil, então não leia os dois parágrafos que seguem se você quiser ver esse – péssimo – filme, que não recomendo, e recomendo que leia o resto da resenha, que tem muita opinião cheia de wit ‘n wisdom: O rapaz do rádio, que se chama Radio, se negava a abaixar o volume do som com que andava por aí, como retardado, mesmo dentro da pizzaria de Sal. Sal o expulsa da pizzaria por causa do som, mas ele não sai. Então Sal do the right thing, justificando o título na hora errada, acabando com aquela música do Public Enemy ao quebrar o rádio com um taco de beisebol – nada mais americano, hã? Acontece que Radio se irrita muito e tenta matar Sal. É isso. Ele tenta matar um homem por causa de um rádio. E não quer ser chamado de delinqüente. Como os negros são maus, não separam a briga – alguns, não tão maus, tentam separar, mas são poucos e não se esforçam muito –, sendo necessário que a polícia chegue e pum!, tire Radio, pelo pescoço, do pescoço de Sal. O trabalho policial é eficiente demais, e Radio acaba morrendo por resistir à prisão, estrangulado pelo cassetete do policial malvado. No cômputo geral, foi a vida de um pretenso homicida pela de um italiano trabalhador, a fair trade, ‘f may say.
Como a polícia matou Radio, e os policiais são white people, os negros decidem, em comportamento de manada, que o certo a se fazer é destruir a pizzaria do white man, Sal. Na verdade, o próprio Spike Lee, como Mookie, entregador nigga da pizzaria de Sal, tratado como filho por ele, decide isso, e começa por quebrar a vidraça. Depois a manada acaba com tudo, incendeia, atrapalha os bombeiros, uma confusão só. E é pra enxergarmos isso como the proper thing to do que Spike Lee fez o filme, até porque a quebra do rádio se encaixaria no título “Don’t do the right thing, they’ll kill ya for doin’ that”. A coisa certa é a violência sem sentido. Foi pra apoiarmos essa violência que o filme foi feito. A manada tenta destruir os coreanos bondosos também, mas alguém intervém e impede – inclusive porque os coreanos diziam ser niggas como os niggas themselves, e céus, como estavam longe disso!
A conclusão desta resenha, que vem anunciada como em uma redação de estudante secundarista, não poderia ser diferente, e imagino que todas as resenhas sobre esse filme terminem assim. No meu mundo ideal elas terminam todas assim, pelo menos, porque qualquer outra conclusão é inválida: Spike Lee parece odiar mais os negros do que seus personagens racistas, e parece confundir valores éticos com sentimentos de classe, e parece não saber construir um roteiro de qualidade, e parece ser incapaz de falar de racismo de um ângulo realmente importante, parece desejar, mais que acabar com qualquer hegemonia, construir uma hegemonia negra, a vingança do black people ao invés da igualdade racial. E isso é triste. Mais triste que a morte de Radio, porque, mais que uma pessoa, é a morte de um caráter.

"NARRANDO (PR)O MUNDO" por Rafaela Vasconcelos


É com letras garrafais, numa extensa faixa carregada por várias mulheres, que a epígrafe deste ensaio surge em primeiro plano numa fotografia divulgada no site da ONG SOS Corpo[1]. Com poucas palavras, ela já revela – ou ao menos sugere – elementos centrais da proposta desse trabalho de tentar captar representações que o SOS Corpo produz da mulher, na sua página de Internet, e confrontá-las com a imagem construída pela mídia hegemônica.
A idéia de tomar o material da instituição como ‘auto-representação’, deve-se ao fato de ela ser auto-intitulada feminista. Já a escolha do meio eletrônico surge mesmo de forma estratégica, na medida em que, além de ser pertinente, viável, permite um rico panorama das ações, temas, estratégias e, subliminarmente, dos valores, princípios e signos da organização.

Do sujeito dessa história

Se, em meados do século XX, o Partido Comunista organizava e estimulava a ligação com as massas, acreditando que problemas de gênero e raça acabariam junto com o de classe, na década de 70, uma nova concepção de movimentos sociais superou a questão partidária e denunciou a existência de formas de opressão não limitadas ao econômico. Os movimentos de mulheres, de homossexuais, de negros, de ecologistas, aqui, passam a entender que suas causas são aspectos específicos e buscam autonomia. Eles têm formas próprias de organização, mas não são isolados; há conexões significativas. (ALVES & PITANGUY: 1991).
No Brasil, o contexto de abertura política nos anos 80 deu margem e visibilidade para novos sujeitos políticos que lutavam pela democracia. Mais que isso: os novos movimentos sociais “ganhavam significado na história recente” [2]. É nesse cenário que o SOS Corpo é fundado, em 1981, por um grupo de mulheres em Pernambuco.
Interessante notar como a própria questão do nome é pensada como signo da ação da instituição. Se no começo, o subtítulo “Grupo de Saúde da Mulher” remetia a uma atuação mais específica/ restrita, a mudança, em 1991, para “Gênero e Cidadania”, de fato, traduz uma postura mais ampla e articulada. Mas, sem dúvida, o atual “Instituto Feminista para a democracia” objetiva melhor sua atuação, enquanto “organização da sociedade civil”.
Nesse sentido, percebe-se a importância da legitimação da identidade institucional, não só para as integrantes em si, mas para a própria prática delas, na medida em que concebem a organização como fundação de “um projeto feminista de cidadania”. Como explica uma das coordenadoras do SOS Corpo, Taciana Gouveia, “ao se colocar como sujeito político, o movimento feminista transmite, cria e ressignifica valores sociais para além das mulheres, provocando mudanças no conjunto das relações sociais” (GOUVEIA: 2001; 255).
E, ao se definirem, logo na página inicial do site, como “uma entidade autônoma que orienta sua prática pelos ideais de liberdade, igualdade e solidariedade”, integrante de “movimentos nacionais e internacionais pela eliminação de todas as formas de injustiça, discriminação e exclusão social que historicamente têm marcado a vida das mulheres”, as militantes do SOS Corpo transitam entre o local e o global. Mas, antes de tudo, surgem como sujeitos/ protagonistas de sua história, movidas por um sentimento de transformação, por valores que se chocam com a ordem sócio-econômica vigente. A própria noção de autonomia, aqui, pode ser entendida como “a instauração de uma outra relação entre o discurso do outro e o discurso do sujeito” (IDEM: 2001; 255), ou melhor,

[...] a autonomia é a criação de dois novos lugares, no sentido de que aquele/a que só escutava passa também a ter o direito de falar, enquanto aquele/a que só falava passa a ter o dever de também escutar. É, enfim, a instauração de uma situação dialógica, ao invés de monólogos ou solilóquios. (GOUVEIA: 2001; 265).

É esta idéia que parece estar representada na imagem da frase da faixa comentada inicialmente. O “nosso olhar”, mais do que um ponto de vista coletivo, implica em perspectivas, experiências, valores diferentes do “olhar” que não é o ‘nosso’, o hegemônico. Mais que isso. Revela que não é passivo, na medida em que “transforma o mundo”; mostra, além da capacidade/ potencialidade de mudar, a ação em si, permanente, como mostra o verbo no presente. E isso fica mais simbólico, quando se leva em consideração que essa foto está na seção “Histórico”.
Assim, o conceito de minoria de Muniz Sodré parece pertinente. De que se trata de

um lugar onde se animam os fluxos de transformação de uma identidade ou de uma relação de poder. Implica uma tomada de posição grupal no interior de uma dinâmica conflitual. (SODRÉ: 2005; 12)
[...] uma recusa de consentimento, é uma voz de dissenso em busca de uma abertura contra-hegemônica no círculo fechado das determinações societárias. (IDEM:2005; 14).


Do discurso e da prática

Tendo cidadania e gênero como temas centrais, a ação do SOS Corpo surge estruturada em quatro programas, que dão significado político aos seus projetos e atividades:
Feminismo e Democracia (tentativa de qualificar a atuação pública das mulheres na construção da democracia brasileira); Justiça Social e Desenvolvimento (agenciamento da igualdade de gênero como elemento orientador das políticas, projetos e programas de desenvolvimento); Cotidiano e Cidadania (idéia de integrar os direitos reprodutivos e sexuais como parte da construção, defesa e usufruto da cidadania, garantindo o acesso da população a esses direitos no cotidiano) e Fortalecimento Institucional (aprimoramento da gestão e articulações institucionais e políticas).
Apesar de cada linha de trabalho ter grupos, projetos específicos, percebe-se que as estratégias de atuação adotadas são bem próximas. Em maior ou menor grau, o fato é que se as mulheres do SOS Corpo investem na formação de lideranças para atuação na esfera pública, em oficinas, debates sócio-políticos, na criação de redes e fóruns locais, nacionais e internacionais, assim como na produção e difusão de conhecimento. Muitas vezes, o campo de atuação são movimentos populares, sociais, sindicatos, partidos progressistas e grupos comunitários. Até porque, como afirmam no site, priorizam o “trabalho com mulheres, jovens e adultas, em especial aquelas que vivem em situação de pobreza e em situações de exclusão quanto ao acesso a bens, serviços e direitos sociais, políticos e culturais”. E deixam claro que “homens jovens e adultos formam um segmento minoritário”.
Mas, sem maiores considerações nesse último ponto específico, o que vale destacar, aqui, é que, mesmo se identificando com a luta das mulheres, a instituição reconhece a condição de sujeito coletivo desse grupo, sua pluralidade, suas várias identidades e histórias: negras, lésbicas, indígenas, campesinas etc. Seja qual for a particularidade, o importante é que elas surgem representadas como atuantes, articuladas, protagonistas.
Nas fotos divulgadas ao longo de todo site, as mulheres aparecem agindo, reivindicando, trabalhando juntas, em grupo, nunca sozinhas. As imagens são amplas, quase sempre em ruas e ambientes externos. Closes são praticamente inexistentes: parece que a intenção não é ver rostos específicos, indivíduos, mas, antes, um grupo forte agindo, protestando e/ou discutindo, com faixas, cartazes, passeatas, círculos e rodas de debate. A sensação é de que elas estão sempre se deslocando, mas com um rumo traçado. Na busca, justamente, de novos lugares, para novos – ou seria melhor dizer outros? – modos de ser.
Se por um lado, as fotos são uma espécie de ‘voz’ dessas mulheres – na medida em que dão visibilidade para algumas de suas ações e posturas – , por outro, podem ser vistas como eficazes artifícios de representação do outro, no qual o eu da instituição se coloca. Afinal, não são aquelas dezenas de militantes das fotos que escolhem o que e como vai ser publicado. Elas compõem e dão vida aos quadros, mas velam uma intenção. Como afirma Serge Moscovici:

Representar uma coisa [...] não é com efeito simplesmente duplicá-la, repeti-la ou reproduzi-la; é reconstituí-la, retocá-la, modificar-lhe o texto. A comunicação que se estabelece entre o conceito e a percepção, um penetrando no outro, transformando a substância concreta comum, cria a impressão de ‘realismo’. [...] Essas constelações intelectuais uma vez fixadas nos fazem esquecer que são obra nossa, que tiveram um começo e que terão um fim, que sua existência no exterior leva a marca de uma passagem pelo psiquismo individual e social. (MOSCOVICI apud SÁ: 1995: 33-4).

E, se “o propósito de todas as representações é o de transformar algo não familiar, ou a própria não familiaridade, em familiar” (MOSCOVIVI apud SÁ: 1995; 35), então o SOS Corpo surge como sujeito social que participa e trabalha nesse processo de agendamento e legitimação de valores e paradigmas; dá visibilidade ao movimento feminista e o coloca como objeto de políticas públicas, ao estabelecer formas de interlocução entre o Estado e a sociedade civil organizada. Além disso, ao propagar imagens femininas distintas das tradicionais “rainha do lar”, “mãe”, “esposa”, “frágil” da mídia majoritária ou de objeto sexual recorrente na publicidade, a entidade vai ao encontro das narrativas hegemônicas.
E é justamente nessa disputa de vozes, nos espaços cotidianos de produção e reprodução de sentidos (CAMURÇA: 2001) que se dá uma negociação do poder.

Sendo relação, atividade de representação implica disputa de significado sobre a diferença em elaboração, e, portanto, a atividade de representação não inclui a dimensão de poder. Ao contrário, a inclui como relação em suas múltiplas possibilidades, dominação, subordinação, resistência, conflito. Ao abrir a possibilidade de conhecimento, a representação contribui para elaboração de discursos sobre as diferenças e para a constituição de campos de força discursivos, através dos quais, como sustenta Foucault, constitui-se o próprio poder. [...] Gênero é uma das formas de significar o poder em um jogo permanente de representações. (CAMURÇA: 2001; 158)

Do mundo virtual real

Para além da vulnerabilidade jurídico-social ou da constante reflexão e construção de sua identidade, é impressionante como a luta contra-hegemônica e as estratégias discursivas do SOS Corpo expressam bem a caracterização de minoria de Muniz Sodré (SODRÉ: 2005). São oficinas, palestras, encontros, cursos, campanhas; manifestações, passeatas; atos públicos, abaixo-assinados; consultorias, fortalecimento de grupos/entidades. Tudo respaldado – ao menos teoricamente – na idéia de o elo entre sujeitos acontecer através da comunicação. Nesse sentido, a página eletrônica da instituição tem um papel estratégico.
Além de espaço de divulgação de conteúdo e de diálogo/debate, o site surge como uma espécie de plataforma para reivindicações e auto-afirmação das mulheres, enquanto sujeitos políticos, sociais e históricos. Funciona como meio, espaço, lugar, voz, estratégia discursiva, ação. Na medida em que gerenciam e determinam o uso que se faz dele, as militantes do SOS Corpo se apropriam de espaços/mídias digitais, tomando-os como seu de fato. Trata-se mesmo de ver a história, a partir do lugar da voz do outro.
E, se “ocupar espaços é desmarginalizar” [3], então, essas mulheres acabam assumindo uma postura soberana, legítima de falarem por si mesmas; de deixar de ser o outro, para ser nós.. No site, elas são empoderadas o suficiente para repudiar ou respaldar explicitamente qualquer ação, seja na terceira pessoa do plural, seja usando o nome da organização.
Nesse espaço, são elas que definem o que é notícia; pautam, agendam temas. Se na grande mídia, por exemplo, a violência de gênero costuma ser publicada nas páginas policiais, aqui, predominam outras abordagens: pode se tratar de uma questão de saúde, de políticas públicas, de direito. Até porque, como se percebe na seção “Notícias”, são recorrentes chamadas de conferências, encontros, audiências públicas, simpósios, debates, oficinas, que lidam com temáticas sociais, de educação, cultura, políticas públicas, formação e construção de identidades, feminismo. Tudo apontando para rumos de transformação social; uma outra forma de contar a história.
Nesse sentido, a página eletrônica do SOS Corpo representa uma “Desterritorialização”, na medida em que, como afirma André Lemos, é uma “ressignificação, com linhas de fuga de fronteiras simbólicas, subjetivas, políticas, econômicas, culturais” [4]. E o interessante é que, mais do que simplesmente se fazer ouvir, ela permite estabelecer formas de diálogo, comunicação.
Nela, tem-se acesso irrestrito às informações das seções de Temas e ações; Histórico; Programas e projetos; Centro de documentação; Fundo de Ação comunitária; Catálogo; Notícias; Eventos e campanhas; Estrutura; Redes e articulações; Fontes de Recursos. São disponibilizados textos, pesquisas, publicações, relatórios, documentos e até arquivos de áudios das conferências e downloads de programas. Além disso, são oferecidos mais de 200 links, entre sites feministas/organizações de mulheres; da sociedade civil organizada; de ensino e pesquisa; de bases de dados; de publicações, rádios e afins; do governo; da ONU e de Agências de Cooperação.
Aqui, a democratização da informação surge mesmo como uma arma na defesa da comunicação como um direito humano. Afinal, partindo-se da premissa que a mensagem é uma construção humana, historicamente condicionada, é importante notá-la em duas perspectivas: produto e produtora de cultura. Ao mesmo tempo em que é pautada por ideologias, subjetividades, vivências, interesses, ela também surge como uma significação dada, muitas vezes, como verdade/ fato, suscitando, por sua vez, valores, crenças, ideais.
Inclusive, uma das propostas da Plataforma Política Feminista, aprovada em 2002, é

convocar os meios de comunicação de massa pra assumir sua responsabilidade social na transformação do imaginário coletivo no que se refere a seus traços machistas, sexistas, racistas e homofóbicos, implementando programas de informação e comunicação de amplo alcance social. (PLATAFORMA POLÍTICA FEMINISTA: 2005; 58).

Desde os anos 70, o movimento feminista se empenha nessa luta. Iniciativas como Brasil Mulher (1975-1980), Nós Mulheres (1976-1978) e Mulherio (1981-1988) – primeiros jornais feministas com circulação nacional – o programa de rádio “Viva Maria” de 1979 já tentavam representar a mulher numa outra perspectiva. Mas, o potencial no caso da página eletrônica do SOS Corpo está justamente na chance de utilizar as vantagens e recursos da internet para pautar e dar visibilidade a temas e questões historicamente oprimidos; para estabelecer um espaço de reflexão e diálogo.
Não que isso seja uma singularidade ou privilégio da instituição. Ao contrário. Na Internet, por não haver uma concentração de vozes, a tecnologia aparece como arma legítima contra eventuais controles estatais, empresariais, ou mesmo a desinformação. A relação comunicação e poder, de fato, é alterada. No contexto atual das infomídias interativas, onde os meios on-line configuram um novo paradigma, a comunicação é concebida de forma multidirecional. Num ambiente virtual, os indivíduos podem ser, ao mesmo tempo, consumidores e produtores de conteúdos. E aí, mais do que um confronto entre imagens, símbolos ou representações, acontece um choque de valores e princípios.
Na desnaturalização de práticas cotidianas e na possibilidade de novas abordagens, os diferentes sujeitos impulsionam a dinâmica da vida social. E, como afirma Stuart Hall,

Nesse momento “pós-colonial”, os movimentos transversais, transnacionais e transculturais, inscritos desde sempre na história da “colonização”, mas cuidadosamente obliterados por formas binárias de narrativização, têm surgido de distintas formas para perturbar as relações estabelecidas de dominação e resistência inscritas em outras narrativas e formas de vida. Eles reposicionam e des-locam a “diferença” sem que, no sentido hegeliano, se atinja sua “superação”. (HALL: 2003; 114)

No caso específico das mulheres do SOS Corpo, há uma luta de reconhecimento numa nova esfera pública. Trata-se de indivíduos com uma nova sensibilidade do mundo, um novo estilo de vida, com novas categorias de ser. E, na medida em que articulam seu discurso a questões globais, não surgem como um movimento de gueto. Legitimam-se, antes, como exemplo de uma pós-modernidade crítica. etratam a caracterizaçS Corpo que mais
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SODRÉ, Muniz. Por um conceito de minoria. In: PAIVA, Raquel. BARBALHO, Alexandre (orgs.). Comunicação e cultura das minorias. São Paulo: Paulus, 2005. p.11 – 14.




[1] Ver a seção Histórico de http://www.soscorpo.org.br/



[2] Extraído da seção Histórico de http://www.soscorpo.org.br/



[3] Extraído do mini-curso "Mídia Locativa, Cidades e Territórios Informacionais", ministrado pelo Prof. André Lemos no campus da UFPE, nos dias 2 e 3 de julho de 2007.

[4] Idem.