terça-feira, 6 de dezembro de 2011

"'A religiosa' e a vontade de conceber o incorpóreo", por Nathalia Pereira


“Preso à escandalosa contemplação de uma meta que se manifesta a ele no próprio ato em que é vedada e que é tanto mais obsessiva quanto mais se torna inatingível para ele, o acidioso encontra-se em situação paradoxal: assim como acontece no aforismo de Kafka, ‘existe um ponto de chegada, mas nenhum caminho’, e da qual não há escapatória, porque não se pode fugir daquilo que nem sequer se pode alcançar”. (AGAMBEN, 1942)

Mais do que o aprisionamento nas celas do convento católico, o que desespera Simonne Simonin - personagem representada por Anna Karina em A Religiosa (Rivette, 1966) – é o desejo por algo indefinido. Depois de ser trancafiada entre os religiosos, a necessidade de escapar do claustro é a única coisa da qual a protagonista parece ter certeza e o desejo pela fuga é objeto que vira obsessão ao longo do filme, a cada indício de que a saciedade é inatingível.
O mal que toma conta da personalidade da adolescente, com o passar dos dias no convento, piora na medida em que a moça percebe que aquele não é o seu lugar. Por acreditar não ter o “dom” que a tornaria uma boa freira (e, assim, pertencente àquele lugar), Simonin adota a introspecção como remédio para a ausência que sente e as fantasias que sua imaginação permite serem construídas impulsionam a garota a sonhar com as possibilidades de atingir a felicidade do lado de fora das paredes do convento.
Mesmo com os conselhos da primeira madre superiora que a acolhe e pede que esvazie a mente de qualquer pensamento que não seja voltado à “carreira” religiosa, Simonin não consegue escapar do desvio de atenção das leituras para o outro lado da janela. Não foca em nada real, mas em projeções. Imagina como seria se largasse o convento e casasse com alguém, mas em nenhum momento demonstra desejo sexual ou interesse em alguma outra pessoa. Até quando declara amor a alguém próximo é incapaz de deixar de pensar em si, imersa em uma realidade inatingível.
O ápice da agonia da personagem se dá quando a privação dos direitos torna-se mais violenta e desperta na mulher um, ainda mais profundo, desejo por mudança. A esperança de conquistar a liberdade salva Simonin da loucura, move sua luta para conquistar sua vontade e a ajuda a mudar sua rotina. A nova realidade adquirida, no entanto, continua insuficiente para deixá-la tranquila.
Em Estâncias, Giorgio Agamben aborda a luta desesperada contra aquilo que não pode ser evitado como transformadora da melancolia em um mal mortal.
“A melancolia, ou bílis negra, é aquela cuja desordem pode provocar as conseqüências mais nefastas. Na cosmologia humoral medieval, aparece associada tradicionalmente à terra, ao outono (ou ao inverno), ao elemento seco, ao frio, à tramontana, à cor preta, á velhice (ou á maturidade), e o seu planeta é Saturno, entre cujos filhos o melancólico encontra lugar ao lado do enforcado, do coxo, do camponês, do jogador de azar, do religioso e do porqueiro”. (AGAMBEN, 1942)
Em comum com Simonin, todos apresentam na impossibilidade de mudar a realidade a essência da acídia. A protagonista entra em relação profunda com o objeto de desejo (que a personagem busca com agonia descobrir o que é) apenas pela afirmação de sua perda.
Ao escapar do segundo convento na companhia de um padre que também nunca se contentou com as restrições da vida religiosa, Simonin se depara com a visão do mundo “do lado de fora” sobre sua fuga. Quando percebe que as outras mulheres resumem seu cotidiano de freira a atribuições simples como comer e rezar, a protagonista não se adapta à nova realidade e vai embora, outra vez, ainda perdida em fantasias.
Numa casa de prostituição entre homens e prostitutas mascarados, a protagonista continua sem reconhecer-se em um mundo estranho e, depois de olhar-se, mascarada, em um espelho, atravessa a janela do edifício e morre, em mais uma tentativa de fuga. Simone, desesperadamente, não queria ser ela mesma, ou, desesperadamente, queria ser ela mesma.
Em algumas cenas antes do fim, o padre também preso sob o signo de Saturno alerta a mulher. O religioso sem o dom (que pode ser interpretado como o melancólico) pode aceitar sua realidade para conseguir viver bem, pode tentar uma fuga por meio do suicídio ou pode manter a esperança em abraçar o alvo de sua contemplação.                                                     

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