quarta-feira, 29 de agosto de 2007

"NARRANDO (PR)O MUNDO" por Rafaela Vasconcelos


É com letras garrafais, numa extensa faixa carregada por várias mulheres, que a epígrafe deste ensaio surge em primeiro plano numa fotografia divulgada no site da ONG SOS Corpo[1]. Com poucas palavras, ela já revela – ou ao menos sugere – elementos centrais da proposta desse trabalho de tentar captar representações que o SOS Corpo produz da mulher, na sua página de Internet, e confrontá-las com a imagem construída pela mídia hegemônica.
A idéia de tomar o material da instituição como ‘auto-representação’, deve-se ao fato de ela ser auto-intitulada feminista. Já a escolha do meio eletrônico surge mesmo de forma estratégica, na medida em que, além de ser pertinente, viável, permite um rico panorama das ações, temas, estratégias e, subliminarmente, dos valores, princípios e signos da organização.

Do sujeito dessa história

Se, em meados do século XX, o Partido Comunista organizava e estimulava a ligação com as massas, acreditando que problemas de gênero e raça acabariam junto com o de classe, na década de 70, uma nova concepção de movimentos sociais superou a questão partidária e denunciou a existência de formas de opressão não limitadas ao econômico. Os movimentos de mulheres, de homossexuais, de negros, de ecologistas, aqui, passam a entender que suas causas são aspectos específicos e buscam autonomia. Eles têm formas próprias de organização, mas não são isolados; há conexões significativas. (ALVES & PITANGUY: 1991).
No Brasil, o contexto de abertura política nos anos 80 deu margem e visibilidade para novos sujeitos políticos que lutavam pela democracia. Mais que isso: os novos movimentos sociais “ganhavam significado na história recente” [2]. É nesse cenário que o SOS Corpo é fundado, em 1981, por um grupo de mulheres em Pernambuco.
Interessante notar como a própria questão do nome é pensada como signo da ação da instituição. Se no começo, o subtítulo “Grupo de Saúde da Mulher” remetia a uma atuação mais específica/ restrita, a mudança, em 1991, para “Gênero e Cidadania”, de fato, traduz uma postura mais ampla e articulada. Mas, sem dúvida, o atual “Instituto Feminista para a democracia” objetiva melhor sua atuação, enquanto “organização da sociedade civil”.
Nesse sentido, percebe-se a importância da legitimação da identidade institucional, não só para as integrantes em si, mas para a própria prática delas, na medida em que concebem a organização como fundação de “um projeto feminista de cidadania”. Como explica uma das coordenadoras do SOS Corpo, Taciana Gouveia, “ao se colocar como sujeito político, o movimento feminista transmite, cria e ressignifica valores sociais para além das mulheres, provocando mudanças no conjunto das relações sociais” (GOUVEIA: 2001; 255).
E, ao se definirem, logo na página inicial do site, como “uma entidade autônoma que orienta sua prática pelos ideais de liberdade, igualdade e solidariedade”, integrante de “movimentos nacionais e internacionais pela eliminação de todas as formas de injustiça, discriminação e exclusão social que historicamente têm marcado a vida das mulheres”, as militantes do SOS Corpo transitam entre o local e o global. Mas, antes de tudo, surgem como sujeitos/ protagonistas de sua história, movidas por um sentimento de transformação, por valores que se chocam com a ordem sócio-econômica vigente. A própria noção de autonomia, aqui, pode ser entendida como “a instauração de uma outra relação entre o discurso do outro e o discurso do sujeito” (IDEM: 2001; 255), ou melhor,

[...] a autonomia é a criação de dois novos lugares, no sentido de que aquele/a que só escutava passa também a ter o direito de falar, enquanto aquele/a que só falava passa a ter o dever de também escutar. É, enfim, a instauração de uma situação dialógica, ao invés de monólogos ou solilóquios. (GOUVEIA: 2001; 265).

É esta idéia que parece estar representada na imagem da frase da faixa comentada inicialmente. O “nosso olhar”, mais do que um ponto de vista coletivo, implica em perspectivas, experiências, valores diferentes do “olhar” que não é o ‘nosso’, o hegemônico. Mais que isso. Revela que não é passivo, na medida em que “transforma o mundo”; mostra, além da capacidade/ potencialidade de mudar, a ação em si, permanente, como mostra o verbo no presente. E isso fica mais simbólico, quando se leva em consideração que essa foto está na seção “Histórico”.
Assim, o conceito de minoria de Muniz Sodré parece pertinente. De que se trata de

um lugar onde se animam os fluxos de transformação de uma identidade ou de uma relação de poder. Implica uma tomada de posição grupal no interior de uma dinâmica conflitual. (SODRÉ: 2005; 12)
[...] uma recusa de consentimento, é uma voz de dissenso em busca de uma abertura contra-hegemônica no círculo fechado das determinações societárias. (IDEM:2005; 14).


Do discurso e da prática

Tendo cidadania e gênero como temas centrais, a ação do SOS Corpo surge estruturada em quatro programas, que dão significado político aos seus projetos e atividades:
Feminismo e Democracia (tentativa de qualificar a atuação pública das mulheres na construção da democracia brasileira); Justiça Social e Desenvolvimento (agenciamento da igualdade de gênero como elemento orientador das políticas, projetos e programas de desenvolvimento); Cotidiano e Cidadania (idéia de integrar os direitos reprodutivos e sexuais como parte da construção, defesa e usufruto da cidadania, garantindo o acesso da população a esses direitos no cotidiano) e Fortalecimento Institucional (aprimoramento da gestão e articulações institucionais e políticas).
Apesar de cada linha de trabalho ter grupos, projetos específicos, percebe-se que as estratégias de atuação adotadas são bem próximas. Em maior ou menor grau, o fato é que se as mulheres do SOS Corpo investem na formação de lideranças para atuação na esfera pública, em oficinas, debates sócio-políticos, na criação de redes e fóruns locais, nacionais e internacionais, assim como na produção e difusão de conhecimento. Muitas vezes, o campo de atuação são movimentos populares, sociais, sindicatos, partidos progressistas e grupos comunitários. Até porque, como afirmam no site, priorizam o “trabalho com mulheres, jovens e adultas, em especial aquelas que vivem em situação de pobreza e em situações de exclusão quanto ao acesso a bens, serviços e direitos sociais, políticos e culturais”. E deixam claro que “homens jovens e adultos formam um segmento minoritário”.
Mas, sem maiores considerações nesse último ponto específico, o que vale destacar, aqui, é que, mesmo se identificando com a luta das mulheres, a instituição reconhece a condição de sujeito coletivo desse grupo, sua pluralidade, suas várias identidades e histórias: negras, lésbicas, indígenas, campesinas etc. Seja qual for a particularidade, o importante é que elas surgem representadas como atuantes, articuladas, protagonistas.
Nas fotos divulgadas ao longo de todo site, as mulheres aparecem agindo, reivindicando, trabalhando juntas, em grupo, nunca sozinhas. As imagens são amplas, quase sempre em ruas e ambientes externos. Closes são praticamente inexistentes: parece que a intenção não é ver rostos específicos, indivíduos, mas, antes, um grupo forte agindo, protestando e/ou discutindo, com faixas, cartazes, passeatas, círculos e rodas de debate. A sensação é de que elas estão sempre se deslocando, mas com um rumo traçado. Na busca, justamente, de novos lugares, para novos – ou seria melhor dizer outros? – modos de ser.
Se por um lado, as fotos são uma espécie de ‘voz’ dessas mulheres – na medida em que dão visibilidade para algumas de suas ações e posturas – , por outro, podem ser vistas como eficazes artifícios de representação do outro, no qual o eu da instituição se coloca. Afinal, não são aquelas dezenas de militantes das fotos que escolhem o que e como vai ser publicado. Elas compõem e dão vida aos quadros, mas velam uma intenção. Como afirma Serge Moscovici:

Representar uma coisa [...] não é com efeito simplesmente duplicá-la, repeti-la ou reproduzi-la; é reconstituí-la, retocá-la, modificar-lhe o texto. A comunicação que se estabelece entre o conceito e a percepção, um penetrando no outro, transformando a substância concreta comum, cria a impressão de ‘realismo’. [...] Essas constelações intelectuais uma vez fixadas nos fazem esquecer que são obra nossa, que tiveram um começo e que terão um fim, que sua existência no exterior leva a marca de uma passagem pelo psiquismo individual e social. (MOSCOVICI apud SÁ: 1995: 33-4).

E, se “o propósito de todas as representações é o de transformar algo não familiar, ou a própria não familiaridade, em familiar” (MOSCOVIVI apud SÁ: 1995; 35), então o SOS Corpo surge como sujeito social que participa e trabalha nesse processo de agendamento e legitimação de valores e paradigmas; dá visibilidade ao movimento feminista e o coloca como objeto de políticas públicas, ao estabelecer formas de interlocução entre o Estado e a sociedade civil organizada. Além disso, ao propagar imagens femininas distintas das tradicionais “rainha do lar”, “mãe”, “esposa”, “frágil” da mídia majoritária ou de objeto sexual recorrente na publicidade, a entidade vai ao encontro das narrativas hegemônicas.
E é justamente nessa disputa de vozes, nos espaços cotidianos de produção e reprodução de sentidos (CAMURÇA: 2001) que se dá uma negociação do poder.

Sendo relação, atividade de representação implica disputa de significado sobre a diferença em elaboração, e, portanto, a atividade de representação não inclui a dimensão de poder. Ao contrário, a inclui como relação em suas múltiplas possibilidades, dominação, subordinação, resistência, conflito. Ao abrir a possibilidade de conhecimento, a representação contribui para elaboração de discursos sobre as diferenças e para a constituição de campos de força discursivos, através dos quais, como sustenta Foucault, constitui-se o próprio poder. [...] Gênero é uma das formas de significar o poder em um jogo permanente de representações. (CAMURÇA: 2001; 158)

Do mundo virtual real

Para além da vulnerabilidade jurídico-social ou da constante reflexão e construção de sua identidade, é impressionante como a luta contra-hegemônica e as estratégias discursivas do SOS Corpo expressam bem a caracterização de minoria de Muniz Sodré (SODRÉ: 2005). São oficinas, palestras, encontros, cursos, campanhas; manifestações, passeatas; atos públicos, abaixo-assinados; consultorias, fortalecimento de grupos/entidades. Tudo respaldado – ao menos teoricamente – na idéia de o elo entre sujeitos acontecer através da comunicação. Nesse sentido, a página eletrônica da instituição tem um papel estratégico.
Além de espaço de divulgação de conteúdo e de diálogo/debate, o site surge como uma espécie de plataforma para reivindicações e auto-afirmação das mulheres, enquanto sujeitos políticos, sociais e históricos. Funciona como meio, espaço, lugar, voz, estratégia discursiva, ação. Na medida em que gerenciam e determinam o uso que se faz dele, as militantes do SOS Corpo se apropriam de espaços/mídias digitais, tomando-os como seu de fato. Trata-se mesmo de ver a história, a partir do lugar da voz do outro.
E, se “ocupar espaços é desmarginalizar” [3], então, essas mulheres acabam assumindo uma postura soberana, legítima de falarem por si mesmas; de deixar de ser o outro, para ser nós.. No site, elas são empoderadas o suficiente para repudiar ou respaldar explicitamente qualquer ação, seja na terceira pessoa do plural, seja usando o nome da organização.
Nesse espaço, são elas que definem o que é notícia; pautam, agendam temas. Se na grande mídia, por exemplo, a violência de gênero costuma ser publicada nas páginas policiais, aqui, predominam outras abordagens: pode se tratar de uma questão de saúde, de políticas públicas, de direito. Até porque, como se percebe na seção “Notícias”, são recorrentes chamadas de conferências, encontros, audiências públicas, simpósios, debates, oficinas, que lidam com temáticas sociais, de educação, cultura, políticas públicas, formação e construção de identidades, feminismo. Tudo apontando para rumos de transformação social; uma outra forma de contar a história.
Nesse sentido, a página eletrônica do SOS Corpo representa uma “Desterritorialização”, na medida em que, como afirma André Lemos, é uma “ressignificação, com linhas de fuga de fronteiras simbólicas, subjetivas, políticas, econômicas, culturais” [4]. E o interessante é que, mais do que simplesmente se fazer ouvir, ela permite estabelecer formas de diálogo, comunicação.
Nela, tem-se acesso irrestrito às informações das seções de Temas e ações; Histórico; Programas e projetos; Centro de documentação; Fundo de Ação comunitária; Catálogo; Notícias; Eventos e campanhas; Estrutura; Redes e articulações; Fontes de Recursos. São disponibilizados textos, pesquisas, publicações, relatórios, documentos e até arquivos de áudios das conferências e downloads de programas. Além disso, são oferecidos mais de 200 links, entre sites feministas/organizações de mulheres; da sociedade civil organizada; de ensino e pesquisa; de bases de dados; de publicações, rádios e afins; do governo; da ONU e de Agências de Cooperação.
Aqui, a democratização da informação surge mesmo como uma arma na defesa da comunicação como um direito humano. Afinal, partindo-se da premissa que a mensagem é uma construção humana, historicamente condicionada, é importante notá-la em duas perspectivas: produto e produtora de cultura. Ao mesmo tempo em que é pautada por ideologias, subjetividades, vivências, interesses, ela também surge como uma significação dada, muitas vezes, como verdade/ fato, suscitando, por sua vez, valores, crenças, ideais.
Inclusive, uma das propostas da Plataforma Política Feminista, aprovada em 2002, é

convocar os meios de comunicação de massa pra assumir sua responsabilidade social na transformação do imaginário coletivo no que se refere a seus traços machistas, sexistas, racistas e homofóbicos, implementando programas de informação e comunicação de amplo alcance social. (PLATAFORMA POLÍTICA FEMINISTA: 2005; 58).

Desde os anos 70, o movimento feminista se empenha nessa luta. Iniciativas como Brasil Mulher (1975-1980), Nós Mulheres (1976-1978) e Mulherio (1981-1988) – primeiros jornais feministas com circulação nacional – o programa de rádio “Viva Maria” de 1979 já tentavam representar a mulher numa outra perspectiva. Mas, o potencial no caso da página eletrônica do SOS Corpo está justamente na chance de utilizar as vantagens e recursos da internet para pautar e dar visibilidade a temas e questões historicamente oprimidos; para estabelecer um espaço de reflexão e diálogo.
Não que isso seja uma singularidade ou privilégio da instituição. Ao contrário. Na Internet, por não haver uma concentração de vozes, a tecnologia aparece como arma legítima contra eventuais controles estatais, empresariais, ou mesmo a desinformação. A relação comunicação e poder, de fato, é alterada. No contexto atual das infomídias interativas, onde os meios on-line configuram um novo paradigma, a comunicação é concebida de forma multidirecional. Num ambiente virtual, os indivíduos podem ser, ao mesmo tempo, consumidores e produtores de conteúdos. E aí, mais do que um confronto entre imagens, símbolos ou representações, acontece um choque de valores e princípios.
Na desnaturalização de práticas cotidianas e na possibilidade de novas abordagens, os diferentes sujeitos impulsionam a dinâmica da vida social. E, como afirma Stuart Hall,

Nesse momento “pós-colonial”, os movimentos transversais, transnacionais e transculturais, inscritos desde sempre na história da “colonização”, mas cuidadosamente obliterados por formas binárias de narrativização, têm surgido de distintas formas para perturbar as relações estabelecidas de dominação e resistência inscritas em outras narrativas e formas de vida. Eles reposicionam e des-locam a “diferença” sem que, no sentido hegeliano, se atinja sua “superação”. (HALL: 2003; 114)

No caso específico das mulheres do SOS Corpo, há uma luta de reconhecimento numa nova esfera pública. Trata-se de indivíduos com uma nova sensibilidade do mundo, um novo estilo de vida, com novas categorias de ser. E, na medida em que articulam seu discurso a questões globais, não surgem como um movimento de gueto. Legitimam-se, antes, como exemplo de uma pós-modernidade crítica. etratam a caracterizaçS Corpo que mais
REFERÊNCIAS

ALVES, Branca Moreira. PITANGUY, Jaqueline. O que é feminismo? São Paulo: Brasiliense, 1991. 80p.

CAMURÇA, Silvia. A política como questão: revisando Joan Scott e articulando alguns conceitos. In: ÁVILA, Maria Betânia et al. Textos e imagens do feminismo: mulheres construindo a igualdade. Recife: SOS Corpo, 2001. p. 131-190.

GOUVEIA, Taciana. Antinomias e contradições: a dinâmica da institucionalidade. In: ÁVILA, Maria Betânia et al. Textos e imagens do feminismo: mulheres construindo a igualdade. Recife: SOS Corpo, 2001. p.239 - 286.

HALL, Stuart. Quando foi o pós-colonial? Pensando no limite. In: __________ Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003. p. 101-128.

PLATAFORMA POLÍTICA FEMINISTA. Brasília: CFÊMEA, 2002.

SÁ, Celso Pereira de. Representações sociais: o conceito e o estado atual da teoria. In: SPINK, Mary Jane (org.). O conhecimento no cotidiano: as representações sociais na perspectiva da psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 1995. p.19 – 45.

SODRÉ, Muniz. Por um conceito de minoria. In: PAIVA, Raquel. BARBALHO, Alexandre (orgs.). Comunicação e cultura das minorias. São Paulo: Paulus, 2005. p.11 – 14.




[1] Ver a seção Histórico de http://www.soscorpo.org.br/



[2] Extraído da seção Histórico de http://www.soscorpo.org.br/



[3] Extraído do mini-curso "Mídia Locativa, Cidades e Territórios Informacionais", ministrado pelo Prof. André Lemos no campus da UFPE, nos dias 2 e 3 de julho de 2007.

[4] Idem.

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