domingo, 7 de novembro de 2010
Mangás e reprodutibilidade técnica, por Tiago Bacelar
Segundo Walter Benjamin, no seu texto “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, “a história da obra de arte, as transformações que sofreu, com a passagem do tempo, em sua estrutura física, as relações de propriedade que ingressou, reconstitui o objeto de uma tradição, partindo do lugar em que se achava o original”. Essas mudanças são importantes para analisarmos como o mangá, um produto conseguiu, se transformar num gênero influente nos quadrinhos, na publicidade e na cultura pop nipônica e mundial.
Nos tempos atuais, podemos pegar dois exemplos: A Turma da Mônica Jovem, no Brasil, e One Piece, no Japão. Ambas as obras de Mauricio de Sousa e Eiichiro Oda são mangás publicados em culturas diferentes e possuem tiragens semelhantes de três milhões de exemplares por edição. Em dois séculos de existência, o mangá se apropriou para si mesmo de maneira original de diversas vertentes como o cinema, o Kabuki, o Nô, o Teatro de Takarazuka e a arte de Walt Disney.
A arte de contar as histórias por meio de desenhos no Japão começou há muito tempo. A produção de histórias em quadrinhos japonesas, os mangás, teve um rumo muito interessante, que explica em parte seu grande sucesso. A editoração dos quadrinhos japoneses é direcionada. Então, nós temos quadrinhos para crianças, para adolescentes e para adultos.
Na parte adolescente, por exemplo, existem revistas direcionadas para o público dessa idade masculino como a Shonen Jump. Ela tem características que tornam as histórias um meio de identificação entre o leitor e quem produz o mangá. Para Benjamin, “a diferença essencial entre autor e público está a ponto de desaparecer. É um processo de trabalho cada vez mais especializado, cada indivíduo se torna bem ou mal um perito em algum setor, (...) e como tal pode ter acesso à condição de autor”.
Com a prosperidade econômica do Japão, após a Segunda Guerra Mundial e a destruição gerada pelas bombas atômicas, houve um crescimento do interesse da cultura oriental pelo visual. Esse fenômeno gerou a renovação da forma e conteúdo dos mangás, quando emergiram novos desenhistas, novas histórias, ou seja, foi o início de um novo mercado editorial cheio de novidades que revolucionariam a maneira de desenhar e publicar mangás.
A maneira de pensar da população nipônica sempre foi esculpida dentro de uma estética caricatural e sátira da realidade. Os mangás procuram fazer isso através da língua cinematográfica somada aos significantes e significados da escrita japonesa. Ou seja, um verdadeiro processo de etapas, onde se objetivava fazer várias combinações entre símbolos e ideogramas pictográficos. O intuito disso era tentar expor ideias complexas de forma que influenciasse todas as artes japonesas e que ajudasse no entendimento dessa proposta.
Há, portanto, uma relação clara disso com o traço, a narrativa e as onomatopeias, dentro das características específicas de cada desenhista. Dessa forma, fica evidente a forte ligação do leitor com as histórias, se identificando através dos personagens, ali desenhados e retratados. A origem pictográfica da língua japonesa e as propícias situações linguísticas e socioeconômicas foram decisivas para tornar os mangás partes integrantes da cultura e da sociedade japonesa moderna.
Nós vemos nos mangás, os mesmos princípios que regem a cultura, os ideais filosóficos e confucionistas e a própria religião. Quando um leitor está lendo a história de um mangá, nelas existe em todos os espaços um reflexo muito poderoso da própria cultura japonesa. Esse fenômeno acontece também nos quadrinhos brasileiros. Quando um estrangeiro olha um quadrinho nacional, ele vai ver também um tipo de cultura que nós estamos vivenciando.
Os teatros populares do Kabuki e do Bunraku trouxeram como consequência a produção de ilustrações com características bem particulares, que retratavam o modo de vida político, econômico e cultural dos japoneses. Feitas e esculpidas em madeira, essas gravuras foram chamadas de ukiyo-ê e tinham como principal característica fazer uma crítica aos lordes feudais, responsabilizando-os pelo estado que as classes mais pobres se encontravam.
Vale ressaltar, que elas não eram diretas, ou seja, os artistas usavam símbolos para fazer ataques indiretos cheios de ironia e ressentimento. As ilustrações tentavam atingir o mais profundo dos sentimentos humanos, sem se preocuparem muito com a anatomia dos personagens retratados.
Dessa forma, os ukiyo-ê não poderiam em hipótese nenhuma ser enquadrados na categoria de caricatura, pois a semelhança com a pessoa satirizada é fundamental. Elas foram utilizadas como forma de arte no período de 1600 a 1867. Entre os artistas do ukiyo-ê, estava Katsushita Hokusai (1760-1849).
Ele foi a primeira pessoa a cunhar a palavra mangá. Entre 1814 e 1849, Hokusai criou uma série de 15 volumes chamada por ele de Hokusai Manga. Eles são um espelho daquele tempo e do próprio gênio do autor, sabendo captar e ilustrar a vida como um todo. Katsushita Hokusai era uma pessoa que tinha uma filosofia muito diferente sobre a arte e os portfólios feitos em blocos de madeira, que eram típicos para a época. Ele era um homem com uma natureza um tanto rebelde.
Hokusai nasceu na província de Honjo, ao leste de Edo, em 1760, e, começou a se interessar por desenho desde os cinco anos. Sua entrada para o mundo do ukiyo-ê ocorreu quando tinha apenas 16 anos. Em 1789, Hokusai ganhou fama ao publicar trabalhos sobre os atores do Kabuki. Passado essa fase, ele começou a fazer ilustrações mais adultas, abordando temas como a pornografia, o erotismo, o drama e o romance.
Nesse período, Hokusai buscava chocar a sociedade e o próprio governo com a sua ousadia. Devido a isso, seus trabalhos acabaram sendo censurados várias vezes. Em 1934, ele produziu as 36 Visões do Monte Fuji, Fugaku Sanjurakkei. Com essa série de quadros, Hokusai tornou-se uma referência para os amantes e também iniciantes da arte do ukiyo-ê.
Hokusai fez muitos objetos diferentes, influenciados pelas artes e filosofias artísticas francesas e holandesas de grandes nomes como Degas, Van Gogh, Monet e Toulouse-Lautrec. Hokusai planejou criar um novo tipo de entretenimento ou uma parte significativa da arte de ilustrar o cotidiano. A maior parte das ilustrações feitas por Hokusai era de retratos das paisagens que ele presenciou nas suas andanças pelo país.
Para a pesquisadora brasileira Sônia Maria Bibe Luyten (1) , “Hokusai retratava através das xilogravuras a vida profana, a vida do dia a dia, as prostitutas, as pessoas da rua, o burburinho da vida. Hokusai fez uma série de esquetes, de estudos na área da xilogravura, que na época já eram feitas a cores. O termo surge nessa época com Hokusai, através de uma compilação de ilustrações chamada por ele de Hokusai Manga, que abriu caminho para a explosão do fenômeno dos mangás pelo mundo inteiro”.
Com o fim da Era Tokugawa, o Japão entra na Era Meiji (1868-1911), e, o país é reaberto novamente para os estrangeiros. Com isso, os produtos ocidentais começam a chegar ao Japão e entre eles estão os quadrinhos ingleses e franceses de Charles Wirgman (1835-1891) e George Bigot (1860-1927). Nesse período, Rakuten Kitazawa (1876-1955), influenciado pelos quadrinhos norte-americanos, criou o primeiro mangá com personagens regulares, Tagesaku to Mokube no Tokyo Kembutsu, publicada semanalmente na revista Jiji Manga.
Kitazawa entrou para o mundo dos mangás com apenas 12 anos, quando começou a estudar pintura, na província de Taikonan, sob a tutela do renomado artista Yuekichi Fukuzawa. Ele aprendeu que era importante satirizar tanto a sociedade quanto o governo para se tornar um grande desenhista. Depois de uma curta carreira como cartunista político, Rakuten tornou-se o único artista japonês a entrar para o seleto grupo da revista americana Box of Curious.
Para Gombrich(2), “a experiência da arte não constitui exceção à regra geral. Um estilo, como uma cultura ou um clima de opinião, cria um horizonte de expectativas, um conjunto de contextos mentais, que registra desvios e alterações com exagerada sensibilidade”.
Hokusai e Kitazawa firmaram o nome mangá como arte sequencial, assim como os dois ideogramas que formam a palavra mangá. Gá seria desenho e Man seria algo irreverente, desenhos irreverentes. Durante a Segunda Guerra Mundial, as criações dos desenhistas passaram a se voltar para histórias cheias de mensagens subliminares, no intuito de exercitar o espírito combativo na população. Somente os mangás de guerra tiveram vez, e, os outros estilos foram proibidos pelo governo.
Durante o período da Segunda Guerra, os mangás foram usados para incentivar o ódio ao ocidente, aumentar o nacionalismo exacerbado e fascista da população e promover uma verdadeira lavagem cerebral nos desenhistas nipônicos. Em 1945, com o fim da guerra, as editoras nipônicas, que existiam na época, estavam falidas. Praticamente não existiam mais mangás no Japão, em virtude do altíssimo grau de destruição e caos que o país se encontrava.
Para Benjamin, “Com a reprodutibilidade técnica, a obra de arte se emancipa, pela primeira vez na história, de sua existência parasitária, destacando-se do ritual. Ela orienta a realidade em função das massas e as massas em função da realidade num processo de imenso alcance”.
Além de levantar o Japão, as pessoas queriam reconstruir suas próprias vidas, vencer a fome e a miséria, cuidar dos órfãos de guerra, dos veteranos mutilados e dos sobreviventes das duas bombas atômicas despejadas pelos Estados Unidos em Hiroshima e Nagasaki. Com o poder aquisitivo baixo, a busca de entretenimento barato era uma necessidade.
Com a escolha do papel jornal para impressão, por ser mais barato, o mangá foi responsável, como produto cultural mais viável no pós-guerra, pelo surgimento da cultura pop nipônica. Consolidado, o mangá filiou-se ao anime para cinema e TV, à música e a publicidade, rompendo barreiras no mundo ocidental, dando início a um mercado bilionário, de 100 bilhões de dólares anuais hoje em dia.
O mangá conseguiu tornar-se um fenômeno cultural, ao conseguir unificar economia política com a cultura oriental, principalmente a nipônica. A obra completa de Osamu Tezuka chega a mais de 700 mangás em aproximadamente 170 mil páginas, cujo primeiro trabalho de importância foi feito quando tinha apenas 20 anos. Foi na obra A Nova Ilha do Tesouro, de 1947, que o mangá do pós-guerra teve as suas origens nas mãos desse jovem promissor.
Esse trabalho possuía todos os elementos para gerar uma nova era para os quadrinhos japoneses, onde surgiriam novos desenhistas para criar histórias nunca antes vistas pelo oriente e pelo ocidente. Era diferente ao que os leitores de mangás estavam acostumados a ler até então, sendo o início da utilização de linguagem cinematográfica nas histórias.
Tudo isso era como se fossem trechos de um filme colocados diretamente nas páginas. Na narrativa do mangá são as sucessões das imagens entre os quadros e as cenas que contam a história. Uma boa síntese na construção das cenas é de uma importância vital para o seu desenvolvimento.
Para Go Tchiei(3), no artigo “A history of manga”, “a Nova Ilha do Tesouro de Tezuka tornou isto muito evidente. O seu aparecimento foi como a usurpação da poesia pela prosa, ou, ainda a troca do romance medieval pelo romance moderno. Este novo veículo era como um filme para ser comparado com a tradução japonesa do teatro de Kabuki e do Noh”.
Osamu Tezuka foi o pai dos famosos olhos grandes, a marca registrada de qualquer mangá na atualidade. Além dos olhos, Tezuka usou e abusou, e criou as linhas rápidas, linhas que vêm do fundo do desenho, quando um personagem está em movimento. Isto e o seu estilo dinâmico de fazer desenhos foram um dos segredos do seu êxito. Quando veio a fama nos anos 50, seu estilo foi imitado, por toda uma geração de desenhistas de mangás: olhos grandes, linhas rápidas, traços simples e muita ação.
Para Benjamin, “transformações sociais muitas vezes imperceptíveis acarretam mudanças na estrutura de recepção, que serão mais tardes utilizadas pelas novas formas de arte”. Historicamente, como vimos, os quadrinhos japoneses foram moldados por diversas vertentes: o ukiyo-ê, o estilo ousado de Hokusai, o brilhantismo de Rakuten Kitazawa, os traços ocidentais de George Bigot e Charles Wirgman, os teatros de Kabuki, Noh e Takarazuka e a influência de Walt Disney.
Fotos do mundo real, agora transformado em imagens, de cujo “realismo”, a pintura fotorrealista é agora o simulacro. O que antes era uma obra de arte, agora se transformou em um texto, cuja leitura procede por diferenciação, em vez de proceder por unificação. Segundo Kant, o sublime é “uma experiência que bordeja o terror, uma visada espasmódica, cheia de assombro, estupor e espanto”.
Para Jameson, em “Pós-modernismo – A Lógica do Capitalismo Tardio”, “incluir a própria questão da representação no objeto do sublime torna-se não só uma questão de puro poder e de incomensurabilidade física do organismo humano em relação à natureza, mas também dos limites da figuração e da incapacidade da mente humana para representar forças tão enormes”. A lógica do simulacro faz muito mais do que meramente replicar a lógica do capitalismo tardio: ela a reforça e a intensifica.
Uma forma cultural de vício da imagem transforma, segundo Jameson “o passado em uma miragem visual, em estereótipos, ou textos, abole qualquer sentido prático do futuro e de um projeto coletivo”. Para Benjamin, “a recepção através da distração, que se observa crescentemente em todos os domínios da arte e constitui o s sintoma de transformações profundas nas estruturas perceptivas”.
A chegada da linguagem e da estética do cinema aos mangás, graças em parte ao surgimento da televisão no Japão, provocou uma revolução no mercado editorial de quadrinhos japoneses. Isso trouxe uma gama de produção de histórias nunca antes vistas, nem mesmo no período antes da Segunda Guerra Mundial.
A proximidade dos personagens com o leitor ficou mais forte a ponto de criar um elo de identificação. O uso de linhas rápidas, olhos grandes, personagens, ao mesmo tempo estranhamente e exageradamente desenhados e tão marcantes em sua construção, visual semelhante a um filme e narrativa com começo, meio e fim.
NOTAS:
1. Entrevista a minha pessoa, Tiago Bacelar, para a monografia de título “Osamu Tezuka & Fritz Lang - O Nascimento do Mangá Moderno sob os Olhos do Cinema Expressionista Alemão”, como conclusão da Pós-graduação em Jornalismo e Crítica Cultural, em 2006, sob orientação de Paulo Cunha.
2. Livro Arte e Ilusão, Cap. 1 – Da Luz à Tinta, pág. 53.
3. TCHIEI, Go. A history of Manga. Tezuka Osamu and the Expressive Techniques of Contemporary Manga. Artigo publicado pela Dai Nippon Printing Co. Ltd. Japão. 1998. Network Museum & Magazine Project (NMP International). Disponível em: <
http://www.dnp.co.jp/museum/nmp/nmp_i/articles/manga/manga3-1.html > Acesso em: 04. Jan.2006.
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