sexta-feira, 31 de agosto de 2007

"Faça a coisa certa" por Pedro Neves


“Acorde! Acorde, acorde, acorde!” É o grito inicial de Faça a coisa certa, a incendiária obra prima de Spike Lee. Mais que a saudação matinal do DJ Mr. Señor Love Daddy aos ouvintes da rádio WE LOVE, as palavras são uma exortação de Spike apontada diretamente aos espectadores do filme. Nas duas horas seguintes, uma multidão de personagens coloridos vai desfilar na tela impondo, com doses equilibradas de humor e agressividade, questionamentos acerca das contradições inextricáveis e conflitos inevitáveis de uma sociedade multicultural.
A película se passa durante o dia mais quente do verão, quando o sol implacável torna os ânimos dos moradores de uma rua do bairro de Bedford-Stuyvesant, no Brooklyn, ainda mais acirrados. O personagem central é Mookie, entregador de pizza negro interpretado pelo próprio Spike Lee. Ele trabalha para Sal, ítalo-americano que, junto com seus dois filhos, Pino e Vito, comanda, há vinte anos, a Sal´s Famous Pizzeria. Ao redor de Mookie circulam diversos personagens: sua namorada porto-riquenha, Tina, com quem tem um filho; sua irmã, a voz da consciência a convencê-lo a cuidar de suas responsabilidades e tomar um rumo na vida; Mãe Irmã, a anciã do bairro; o Prefeito, mendigo alcóolatra que ninguém leva a sério.
Em uma cidade multi-racial como Nova York, minorias diversas parecem ter mais voz e visibilidade. Em um bairro como o Brooklyn, então, conhecido por seu grande contingente de negros e latinos, a própia classificação desses grupos étnicos como “minoria” entre brancos parece se inverter. Mas Faça a coisa certa vai além dessas aparências. A presença de policiais brancos vigiando o bairro é uma demonstração da desconfiança e do medo, combatidos pela repressão, que a sociedade tem do que é diferente.
Os habitantes de Bed-Stuy em geral não parecem muito interessados em política. A maioria se preocupa com seus póprios problemas, a começar por Mookie, que só quer seu salário para poder sustentar o filho. Mas existem algumas pessoas empenhadas em mudar a mentalidade conformada dos seus vizinhos. Smiley, um deficiente mental, vende fotos de Martin Luther King e Malcolm X, enquanto tenta falar sobre a luta contra a desigualdade racial; Radio Raheem, um jovem grandão e taciturno, anda pelo bairro com um aparelho de som gigantesco que sempre toca a música Fight the power, do grupo de rap Public Enemy, e discursa sobre a eterna luta do Amor contra o Ódio. A pouca eficácia dessas ações demonstrativas são evidenciadas pelo filme: os dois são vistos pelos moradores da rua como personagens excêntricos, simpáticos, mas sem muita conseqüência ou importância.
A estratégia discursiva que termina por causar o trágico final de Faça a coisa certa também é considerada, inicialmente, inútil. Ela é proposta por outro personagem exótico que ninguém leva a sério, Buggin’Out. Ele tenta organizar um boicote a Sal´s Famous Pizzeria até que sejam colocadas fotos de negros na “parede da fama”. Sal não aceita sua exigência – ele próprio é uma minoria dentro dos Estados Unidos, e só põe fotografias de ítalo-americanos com Robert De Niro e Frank Sinatra em seu restaurante. Os negros do bairro, acostumados a comer na pizzaria e não se importando com as fotografias da parede, ignoram o boicote de Buggin’Out. Apenas Radio Raheem (que havia discutido com Sal mais cedo por ter entrado com seu rádio no volume máximo na pizzaria sem se importar com o incômodo que ele podia gerar aos outros clientes) apoiou a manifestação. Quando a pizzaria está para fechar os dois entram e afirmam que não sairão até que fotos de afro-descendentes sejam postas na “parede da fama”. Perdendo a paciência, Sal destrói o som de Radio Raheem, e os dois partem para a agressão física. A briga vai para a rua e causa comoção. Logo uma multidão se forma ao redor dos contendores, e a polícia chega para apartá-los. Na confusão, um policial estrangula e mata Radio Raheem. Buggin’Out é preso sob protestos: “Vocês estão me levando para a cadeia, mas não estão levando Vito ou Pino ou Sal! Vocês não podem matar todos nós!”
Revoltado, Mookie joga uma lata de lixo na janela da pizzaria, e a multidão que assistia passivamente passa a agir. Sal’s Famous é depredada e incendiada; quando os bombeiros chegam para apagar o fogo, são agredidos pelo grupo. Smiley aproveita a baderna para colar na “parede da fama” a foto de Martin e Malcolm.
O filme termina com o balanço geral do dia seguinte: a pizzaria arruinada, Sal inconsolável (ele havia construído a pizzaria com as próprias mãos e estava lá há 25 anos), Mookie querendo o seu salário. Ele vai cobrá-lo de Sal e, depois de uma discussão na qual cada um expõe seus pontos de vista sobre a noite anterior – Mookie se justifica afirmando que a vida de Radio Raheem valia mais que uma janela – eles se reconciliam.
Spike Lee não tem medo de expor os preconceitos da sociedade em suas múltiplas formas. Pino trabalhou a vida inteira na mesma esquina do Brooklyn, mas detesta o lugar e os negros “como uma doença”. Buggin’Out luta contra o racismo, mas expõe o seu próprio quando manda um ciclista branco que sujou o seu sapato voltar para Massachussets. Uma das cenas mais marcantes do filme é a seqüência de insultos chocantes e hilários distribuídos por representantes de diversas etnias contra outros grupos étnicos: italianos xingam negros, que xingam brancos, que xingam latinos, que xingam coreanos, que xingam judeus.
Não há vilões e mocinhos; cada personagem é repleto de ambiguidades, cada um sofre do preconceito que carrega. A película termina com duas citações: uma de Martin Luther King condenando a violência sob qualquer circunstância e outra de Malcolm X afirmando que o uso da violência para defesa é mais que justo, é inteligente. Fica para o espectador decidir qual das duas é a correta, assim como julgar se Mookie fez ou não a coisa certa ao jogar a lata de lixo na janela da Sal’s Famous. Spike Lee entende que na vida real não existe um limite definido entre “certo” e “errado”, e se recusa a fornecer respostas fáceis e falaciosas para os problemas de uma sociedade multicultural.

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