terça-feira, 16 de novembro de 2010

Percepção, cinema e pós-modernismo, por Annyela Rocha


Ir ao cinema envolve muito mais fatores do que comprar ingressos, escolher um bom lugar na sala de projeção e conferir o trabalho audiovisual. Geralmente o filme é escolhido para ser assistido por algum motivo prévio: devido a uma indicação de um amigo; porque o filme tem no elenco ou é dirigido por alguém em especial; porque o trailer despertou interesse; porque as críticas são polêmicas, etc.

O que ocorre, então, é a criação de uma expectativa diante daquela obra. No texto A psicologia e o enigma do estilo, o historiador da arte Ernst Gombrich resume que “nós nos aproximamos das (...) obras com os nossos receptores já afinados. Esperamos receber certa notação, certos símbolos, e nos preparamos para entendê-los” (GOMBRICH, 2007, p. 53). Ele afirma ainda que cultura e comunicação são sempre dependentes dessa interação entre expectativa e observação, sendo esses níveis de expectativa chamados (segundo psicólogos) de contextos mentais.

Diante do cinema é muito fácil colocar estas declarações em prática e notar o quanto são verdadeiras. Existe, ao sair da sala de projeção, um sentimento ou uma discussão sobre como aquele filme atendeu ao que se esperava ou não. Algumas expectativas são, por exemplo, reservadas a movimentos cinematográficos específicos. Do cinema autoral da Nouvelle Vague não é de se esperar um grande enredo norteado por ações como mandam os manuais de roteiro norte-americanos. Assim como nos blockbusters não será aguardada uma trama centrada em personagens profundos e diálogos introspectivos. As cargas emocionais referentes a cada tipo de ilusão vão sendo moldadas e o espectador aprende como direcionar seus desejos e pretensões.

Esses contextos mentais vão variar principalmente diante do estilo – seja o do artista ou o da época no qual ele está inserido. O artista tem sua personalidade e sua forma de ver o mundo, o que vai definir sua obra. Gombrich ressalta ainda, que esse artista também tem suas afinações em sua percepção, ele conforma o mundo visível à sua forma pessoal de vê-lo e interpretá-lo: “a pintura é uma atividade, e o artista tende, consequentemente, a ver o que pinta em vez de pintar o que vê” (GOMBRICH, 2007, p. 73). A metáfora pode facilmente ser trazida para a realidade das produções audiovisuais.

Outro aspecto importante a ser destacado quanto às grades impostas ao estilo é o contexto da técnica disponível. “O artista, é claro, pode transmitir só o que o seu instrumento e veículo são capazes de executar. Sua técnica restringe sua liberdade de escolha.” (GOMBRICH, 2007, p. 56) No campo das produções cinematográficas, outras questões além da simples escolha do artista entram em voga, como o orçamento disponível, a possibilidade de se ter certos equipamentos ou certos profissionais (pois não se pode esquecer que, diferente da solidão necessária ao poeta e ao pintor, o cinema sempre será um trabalho coletivo).

A própria tese de Gombrich, por exemplo, está fadada a ser enquadrada numa situação específica, temporal e científica. A primeira publicação de Arte e Ilusão é de 1960, uma época em que não mais se julgava a arte através de uma tendência progressista, mas também um mundo que não tinha visto ainda o desenrolar atual do pós-modernismo. Friedrich Jameson, que desenvolveu grande estudo a respeito da situação pós-moderna, chega à triste afirmação de que esse momento mundial implica o fim “do estilo, no sentido único e do pessoal, o fim da pincelada individual distinta (como simbolizado pela primazia emergente da reprodução mecânica)”. (JAMESON, 1997, p. 43) Os agravantes da reprodutibilidade mecânica, que estavam latentes desde as gravuras e a imprensa, e percebidos desde Walter Benjamin, modificaram intensamente os contextos mentais da espectatorialidade.

No pós-modernismo o interesse é sempre pelas rupturas, mas não simplesmente pelas alterações, e sim pelo momento exato em que elas ocorrem, “o instante revelador depois do qual nada mais foi o mesmo, (...) o ‘quando-tudo-mudou’ (...), os deslocamentos e mudanças irrevogáveis na representação dos objetos e do modo como eles mudam” (JAMESON, 1997, p. 13). Existe hoje, então, um sentimento exacerbado de urgência de consumo cultural. A vontade de se surpreender diante da obra é diferente da dos gregos, o “se maravilhar”, assim, mudou de contexto, mas continua como uma necessidade total diante do mistério que ainda conseguem guardar algumas amostras da produção artística atual.
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* Referências:

GOMBRICH, E. H. Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

JAMESON, Friedrich. Pós-Modernismo – A lógica cultural do capitalismo tardio. 2. ed. São Paulo: Editora Ática, 1997.

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