quarta-feira, 29 de agosto de 2007

"Babel" por Valéria Araújo


Isolamento. Incomunicabilidade. Incompreensão do outro. Renegando o conceito mais primário do multiculturalismo, o diretor Alejandro González Inãrritu, com o filme Babel, mostra o caldo de culturas que embola em flocos. Sujeitos localizados circulam por outras terras, levando pouca compreensão e abertura ao outro.

A história enfoca o conflito entre culturas, cujos núcleos narrativos estão espalhados pelo Japão, Estados Unidos, Marrocos e México. Os personagens vivem, em cada um desses espaços, situações que se desenrolam de certa forma independentes, porém, com um elo que parece evidenciar o quão distantes e, ao mesmo tempo, próximos o mundo globalizado pode nos tornar.

Um casal americano, interpretado pelas estrelas hollywoodianas do filme, Brad Pitt e Cate Blanchett, está no Marrocos em férias, buscando uma reconciliação. Seus dois filhos estão em casa aos cuidados da babá mexicana. Na região por onde viaja o casal, vive uma família com três filhos, dois meninos e uma menina. O pai dos garotos compra um rifle, para que lhes auxiliem nos pastoreio do rebanho de cabras. Os meninos brincam com a arma até acertarem o ônibus em que viaja o casal em férias, atingindo o ombro da americana. O incidente, até que não se descubra os acusados, torna-se um problema político. Nos EUA, a babá recebe a notícia, cuida das crianças, mas precisa atravessar a fronteira, no dia seguinte, para ir ao casamento do filho. No Japão, um complicado relacionamento entre pai e filha, surda-muda, evidencia o ápice do isolamento.

Através de um ordenamento não linear do roteiro, as situações são justapostas na edição, no mesmo ritmo do caos causado pelas constantes situações de incompreensão do outro presentes no filme.

Em uma delas, a incomunicabilidade e isolamento são retratados no casal, que viaja a terras distantes, com o objetivo de se encontrarem. Uma cena de conversa durante um almoço, ou melhor, cena de um não-diálogo, mostra como os dois já não conseguem discutir seus problemas. Mostra também como a mulher se sente deslocada num ambiente em que desconfia até da água que compõe o gelo de sua coca-cola. Em seguida, numa situação de total desespero causada pelo tiro, a americana consegue se reconciliar o marido e é acolhida pelo povo que, minutos antes, não era confiável para ela.

Os mesmos conceitos são abordados de forma genial no enredo da moça japonesa. Sentindo constantemente a rejeição causada pela sua deficiência física, ela se desespera em busca do toque do outro, de se sentir desejada. Um dos policiais que investigam seu pai, ex-dono do rifle de onde saiu o tiro que acertou o ônibus no Marrocos, consegue ao menos observar a dor da menina. Ela tem amigos surdos-mudos e outras pessoas com quem convive e que a compreendem, mas ela não se sente igual, ou pertencente aos ambientes que freqüenta. Carrega sua dor e mal-humor até mesmo em ambientes em que todos têm a mesma deficiência.

A incompreensão e desvalorização do outro foram abordados de maneira direta também quando a babá mexicana não é liberada do trabalho para o casamento do próprio filho, apesar de os patrões já não estar nos piores momentos de sua trágica viagem. Ela se vê forçada a levar as crianças consigo e, após uma confusão na alfândega, causada pelo abuso sutil dos policiais, se vê numa fuga pelo deserto. A confusão resulta em prisão e deportação, apesar dos 16 anos de vida nos Estados Unidos.

Outra situação de extrema incompreensão é a que retrata a vulnerabilidade diante do poder policial, evidenciado também na busca da polícia pelos dois meninos no Marrocos. A fragilidade desses grupos, principalmente quando as implicações jurídicas envolvem sujeitos de categoria poderosa, como os cidadãos americanos, desmascara a neutralidade do estado liberal. Como sublinha Hall, na obra Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais, “os direitos da cidadania nunca foram universalmente aplicados... Esse vazio entre ideal e prática, entre igualdade formal e igualdade concreta, entre liberdade positiva e negativa tem assombrado a concepção liberal de cidadania desde o início.”.

A relação de poder também pode ajudar a constituir a identidade e explica o comportamento que alguns viajantes do ônibus tinham em relação ao povo do local em que escolheram passear: arrogância. “É o contraste binário entre o particularismo da demanda ‘deles’ por reconhecimento da diferença versus o universalismo da nossa racionalidade cívica”, explica a frase de Rawls citada por Hall na obra já referida.

A incompreensão limite que vivemos é tristemente irônica como a situação em que dois irmãos causam um incidente político através de uma aposta boba: provar que a bala do rifle não chega ao ônibus. Em situações bastante individualizadas, Alejandro González Inãrritu desenha essa incompreensão e o isolamento que o multiculturalismo também pode ser, quando nos julgamos superiores, por demais diferentes ou inferiores. A moça japonesa precisou encontrar acolhimento nos braços de um estranho, o policial que investiga sobre o rifle. Só depois, ela consegue abraçar o pai. Uma babá que conhece as crianças sob seus cuidados dede que nasceram não consegue provar legalmente que é a pessoa mais indicada para atravessar uma fronteira com elas. Quando presa, protesta, mas logo é persuadida a conformar-se com a deportação. A noite do mundo leva cada um a ficar no seu lugar.


Referências Bibliográficas:

HALL, Stuart. “A questão multicultural” In Da diáspora. Belo Horizonte. Editora UFMG, 2003. 51-100

Um comentário:

Papel Eletrônico disse...

Realmente um ótimo filme, a resenha ilustrou bem as impressões que tive.