O desejo de fugir é uma constante nos filmes de Wong Kar-Wai. Seus personagens nunca estão satisfeitos com o lugar que a vida escolheu para colocá-los. O paraíso sempre parece estar bem longe, seja em Foz do Iguaçu, seja no ano de 2046. No caso de Faye, a garçonete de Amores Expressos, a felicidade encontra-se na Califórnia. Faye nunca foi à Califórnia. Não tem amigos ou parentes lá. Na verdade, tudo que Faye conhece em relação ao ensolarado estado americano está na canção California Dreaming, de The Mamas & The Papas, que ela escuta obsessivamente na lanchonete onde trabalha. A história de Faye é um retrato delicado do poder da cultura pop de atravessar barreiras linguísticas e provocar desejos e sensações em pessoas que vivem em realidades completamente diferentes, em lados opostos do planeta.
Amores Expressos se passa na cidade de Hong Kong, a mais multicultural da China. Quando o filme foi feito, em 1994, a região ainda era território inglês – apesar de 95% da população ser de origem chinesa. Os habitantes de Hong Kong vivem em uma realidade bem diferente da do restante do país. A economia é ultraliberal, os costumes são globalizados, a educação segue modelos ocidentais.
É essa imagem, de uma Hong Kong cosmopolita e movimentada, que o filme exibe e glorifica. Seus habitantes estão à deriva em uma metrópole caótica e hipercolorida, cheia de sinais luminosos de neon, bares e lanchonetes 24 horas. Uma dessas lanchonetes serve como o ponto de encontro dos personagens e das duas histórias contadas. Ela serve, aparentemente, comidas típicas de Hong Kong, mas os policiais que protagonizam as histórias sentem-se igualmente bem comendo Big Macs ou abacaxis enlatados.
Em meio a essa multiplicidade de culturas, o contato com o estrangeiro é inevitável. E em Amores Expressos ele se dá de diversas formas: a traficante negocia com árabes, a namorada do policial 663, uma aeromoça, viaja ao redor do mundo e Faye sonha com a Califórnia-clichê vendida pelas canções americanas. Em uma cultura globalizada, o que vem de fora penetra o espaço físico e, talvez mais significativamente, o imaginário, para o bem e para o mal.
As músicas ouvidas pelos personagens mostram as encruzilhadas culturais em que se encontram: além de California Dreaming, há uma versão em cantonês (cantada, inclusive, pela própria atriz Faye Wong) para Dreams, da banda irlandesa Cranberries. A música nos filmes de Kar-Wai é sempre indissociável dos personagens, e suas referências são as mais variadas possíveis: pop internacional, cantopop (o pop de Hong Kong, cantado em cantonês), tango, boleros, standards da música americana, ópera.
As influências visuais do cineasta também provêm dos mais variados estilos, épocas e nacionalidades. A linguagem publicitária está presente na artificialidade das imagens, que se utilizam ostensivamente de câmera lenta, monocromia e música para criar sensações. Homenagens ao cinema vão da personagem de Brigitte Lin, uma femme fatale de peruca loura, à nouvelle vague e aos primeiros filmes de Godard, com suas câmeras instáveis e reflexões em off. Em muitos momentos a película lembra um videoclipe, devido à edição rápida, os efeitos visuais e a presença recorrente da música.
Fica claro ao espectador de Amores Expressos a penetração da cultura ocidental em Hong Kong, e o seu papel na formação de Wong Kar-Wai. Mas o sucesso do filme no mundo inteiro e o prestígio conquistado pelo diretor provam que esse é um caminho de mão-dupla. Kar-Wai é considerado um dos maiores cineastas da atualidade, e é cultuado por fãs ao redor do globo. O cinema chinês ganha cada vez mais adeptos no Ocidente, atraindo tanto o público interessado nos blockbusters de artes marciais quanto os cinéfilos que fazem fila para assistir aos lançamentos de películas autorais. As culturas orientais já fazem parte do dia-a-dia de qualquer cidade minimamente sofisticada da Europa e da América há anos. Culinária, produtos importados, filosofias, religiões, terapias e atividades esportivas, além de bens simbólicos como programas de TV, quadrinhos, livros e filmes vindos de países orientais são largamente consumidos por cidadãos comuns do oeste do mundo.
Amores Expressos é um filme “multicultural” em diversos níveis. A história apresenta aspectos que misturam o particular e o universal, a estética da qual a película se compõe é uma amálgama de influências nacionais e internacionais e a recepção do filme mundialmente revela muito sobre a globalização cultural nos dias de hoje. É uma experiência rica para os sentidos e a para a mente.
Um comentário:
Um texto fluido e que sintetiza bem o filme e o estilo cinematogŕafico de Kar-way. Paulo Dias
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