quarta-feira, 29 de agosto de 2007

"O CYBERPUNK E OS ASPECTOS DE SUA LUTA CONTRA-HEGEMÔNICA" por Erick Vasconcelos, Gustavo Ferreira, João Gabriel Figueiredo e Rafael Monteiro


“Hey! Ho! Let’s Go!” era a chamada de Joey Ramone em seus shows. Essa citação encarna a ideologia do movimento punk em uma de suas formas mais puras. Joey Ramone era vocalista de uma das primeiras bandas punks, os Ramones, e com essas exclamações demonstrou a atitude punk de chamar todos para uma ação e também a indecisão punk quanto a que decisão tomar ou o que fazer dessa atitude – comprar milk shake, talvez? Mas essa coisa de agir assim, sem motivo, só por agir, isso não é uma constante no movimento punk. Aliás, seria possível até definir que uma das constantes desse movimento é não ter constantes, mas isso seria cair em um erro histórico e superficialidade de conhecimento, coisa que os autores muito responsáveis deste ensaio não pretendem fazer. Às vezes será possível encontrar o olhar esnobe e sutilmente admoestador dos quatro redatores para seu leitor que generalizava os punks tão rasteiramente. Aqueles que definem o movimento como caótico só fazem isso porque não compreendem a essência do movimento. Os punks são organizados tanto em ideologia quanto em estilos. Mas é claro que divergências são inevitáveis – há divergências em todos os meios, quando os personal stylists reais vão escolher as vestes do príncipe Charles ou quando um conservador prefere, ao contrário de seu amigo, ouvir Vivaldi a Bach. Isso, claro, não é o bastante para criar segregação nem isolamento dentro dos grupos – nem dos punks, obviamente.
Se este ensaio fosse voltado para o público infantil haveria aqui uma chamada “um pouquinho de história”, em negrito e sublinhado. Apesar disso, dessa ausência de vinheta que não está aí por motivos de público-alvo (crianças não costumam ler ensaios acadêmicos, costumam?), é interessante acompanhar os principais fatos dentro do grupo. O movimento punk surgiu em meados da década de setenta como uma defesa de conceitos como o individualismo, o pensamento livre, o anti-autoritarismo e a anarquia. A principal ferramenta de defesa desses conceitos, para o punk, é o choque. A música punk é quase uma anti-música, rápida e pesada; o estilo beira o gótico, negando todas as grandes marcas (no Coca-Cola? Hell, that’s crazy!); o pensamento político varia do extremismo de esquerda ao de direita, incluindo o neo-nazismo nesse bolo (yo, é possível ser anarquista e nazista ao mesmo tempo? Os punks insistem que sim, deixem-nos pensar). Como um movimento tão distinto pode ser unificado, então?
Simples: ética. É, ética. Os punks seguem fielmente o “Do It Yourself”. Essa independência criou não só o cenário underground, mas também uma verdadeira indústria, chamada “independente”. Os punks organizavam seus próprios eventos e suas próprias gravações, o que produziu um lema a ser seguido por todos os punks: "Don't hate the media, become the media". A frase, atribuída a Jello Biafra, um punk ativista ambiental, mostra a disposição do movimento de lutar por um espaço próprio.
Depois de três décadas de forte atuação do movimento, ele não só conseguiu abrir seu espaço na mídia, como criou a supracitada “indústria independente”. Isso levou algumas vertentes do punk a chamar de “vendidos” aqueles que conseguiram se inserir na grande mídia ou que mudaram seus estilos para aumentar seu espaço, mas esse assunto fica de fora do escopo deste texto que, caso o leitor ainda não saiba, falará, depois dessa introdução e da impertinência deste comentário, sobre a relação dos cyberpunks com a tecnocracia.

Perdoem a breguice da frase, mas na década de 80 a internet ainda era um território virgem a ser desbravado pelos primeiros surfistas digitais. Esse espaço, livre de fronteiras e governado por uma linguagem universal, era o espaço perfeito para a realização da utopia anárquica punk, e os punks não demoraram a perceber isso: o ciberespaço era o lugar onde todas as possibilidades ainda estavam em aberto.
Graças a isso alguns punks abandonaram a regra de estilo que dita que um punk não usa grandes marcas e se aventuraram no ciberespaço – se venderam pelos benefícios da internet, em linguagem franca. Esses desbravadores “vendidos” inauguraram na rede uma variedade de páginas de informações e de relacionamento, como fóruns e chats, o que uniu os grupos vendidos e lhes deu características peculiares na rede. Cada grupo de dissidentes punk acabou adquirindo uma nomenclatura daquilo que ele fazia para combater as corporações (ou para manter sua própria liberdade, como preferem dizer) pela rede. Quem invadia sistemas para roubar informações virou hacker, quem quebrava códigos e traficava informações foi chamado cypher, quem destruía páginas e base de dados passou a ser cracker e quem não agia muito (enrolava) era lammer.
Segundo André Lemos, os cyberpunks representam aquela palavra que a MTV adora, a atitude, no coração da rede: “o imaginário cyberpunk vai marcar toda a cibercultura” e “[o imaginário cyberpunk] associa tecnologias digitais, psicodelismo, tecno-marginais, ciberespaço, cyborgs e poder mediático, político e econômico dos grandes conglomerados multinacionais” (LEMOS, 2004). Essa grande mistura é causada durante o combate ao que é chamado de tecnocracia, que merece uma explicação melhor.
Tecnocracia, em seu sentido clássico, significa “governo de técnicos”, e se caracteriza por ter a atividade política suplantada por uma “ciência da produção” e por uma “administração das coisas” em oposição ao governo dos homens. A primeira manifestação desta tecnocracia é atribuída ao socialista Claude-Henri de Rouvroy, o conde de Saint-Simon, no livro “Réorganisation de la Société Européenne”, de 1814. Nos anos 1930 surgiu, nos Estados Unidos, um movimento tecnocrático que punha grande ênfase no papel dos técnicos na organização da produção e que desconfiava dos empreendedores privados, sendo, de fato, um movimento defensor do planejamento central da economia, algo próximo a um socialismo tecnocrata.
Ao contrário do que se pensa atualmente e do que os cyberpunks de certo modo pregam, a tecnocracia é uma forma de extrema esquerda que elimina totalmente o indivíduo e também tríade esquerda-direita-centro (Bobbio, 1995). É surpreendente observar que nas décadas de 30 e 40 eram os liberais (de “direita”, no conceito de Bobbio) que a combatiam. Naturalmente, foi necessária uma mudança significativa para transportar a tecnocracia da esquerda para a direita e fazer surgir um movimento de esquerda para derrubá-la (que seria considerado um movimento de extrema-direita uns anos atrás, mas não digam isso aos cyberpunks). Essa mudança é a “máquina”.
A máquina foi o motor da revolução que deu início à pós-modernidade. Quando foram inventadas, as máquinas foram consideradas uma arma do capital privado capaz de baratear o custo dos produtos e deixar muitas pessoas desempregadas (uau, como as máquinas eram más!). Isso gerou um movimento conhecido como Luddismo, que conclamava seus seguidores a destruir as máquinas a fim de que houvesse mais empregos. Há, portanto, pelo menos dois séculos de carga simbólica sobre o imaginário da máquina e da indústria.
Esse simbolismo, entretanto, não foi estável. A máquina evoluiu e, com isso, evoluiu seu conceito. Marx foi um dos principais teóricos a afastar a idéia de “máquina-má-para-o-proletário”. Para ele, a máquina era um produto do capitalismo que deveria ser levado ao socialismo. Não se podia negar a vantagem que ela trazia na capacidade produtiva, e seria muito mais fácil assimilá-la ao seu modelo. Entretanto, em alguns momentos parece que o modelo marxista de sociedade é quem foi assimilado pela máquina. A idéia de totalitarismo democrático se encaixa bem na metáfora da máquina: cada peça é livre, mas o conjunto de peças só vai funcionar se cada uma estiver em seu devido lugar e funcionando perfeitamente, o que significa que se estiver faltando um reverso a sociedade cai.
As máquinas, então, ainda não eram desenvolvidas o suficiente para englobar a sociedade; nesse período ainda se podia dizer que as máquinas auxiliavam o homem, ampliando suas capacidades. Esse sistema socialista se baseia numa estrutura burocrática da sociedade (MISES, 1944), que é moldada à imagem da máquina. Os liberais combateram enfaticamente esse pensamento social, e nisso obtiveram relativo sucesso.
O problema evidencia-se posteriormente, apenas, quando a máquina foi melhorada pela tecnologia e propagada àqueles que supostamente sofriam com ela. A popularização da tecnologia promovida por meio da economia de consumo, como a norte-americana, foi capaz de mudar o conceito que se tinha de máquina. Ela se mesclou à tecnologia, sendo difícil distingui-las, já que falar de tecnologia passou a ser, necessariamente, falar das máquinas, e falar das máquinas ficou impossível sem tocar no tema “tecnologias”. O que antes era um instrumento de produção passou a ser um elemento de ciborguização do homem (HARAWAY, 1995). A máquina/tecnologia amplia as capacidades humanas, fazendo do homem, como paga, um ser híbrido.
Ela é capaz de nos deixar mais velozes e mais fortes, nos permite saltar mais alto, ver mais distante, ver aquilo que não podíamos enxergar, ouvir aquilo que não podíamos ouvir etc. Hoje é possível controlar até o tempo e o espaço por meio da tecnologia. Mas nada é mais surpreendente que o desenvolvimento da comunicação derivado da massificação da tecnologia e da máquina. A supressão dos espaços e do tempo aproximou as pessoas não no ambiente do real, mas do virtual. Eis que surge uma nova sociedade, que se desenvolve por uma rede complexa que liga todo o mundo, com uma cultura simultaneamente particular e global. A partir da tecnologia, o homem criou o ciberespaço que, por sua vez, permitiu o surgimento da cibercultura. Esse homem que, graças à tecnologia, não conhece limitações de espaço e é limitado apenas pelo tempo é um segundo tipo de ciborgue, aquele que se forma no imaginário ciber e sobrevive na rede (HARAWAY). A esses ciborgues deu-se o nome de cyberpunks.
Os cyberpunks são homens que usam roupas pretas, óculos espelhados e ouvem rock hardcore que vivem em dura batalha contra um Big Brother orwelliano. Em seus primeiros anos, os cyberpunks eram considerados um subproduto da ficção científica, mas a popularização das máquinas trouxe esse grupo, até então obscuro, a um lugar de destaque. Entretanto, a popularização do movimento contribuiu apenas para que o grupo fosse odiado pelos demais usuários da rede.
Os hackers, crackers, phreakers, vírus, ravers, cypherpunks, zippies e otakus passaram a constituir a ala marginal da internet. O curioso disso é que, ao contrário dos outros grupos contra-hegemônicos, os cyberpunks escolheram sua condição de minoria. Todos os que atuam em alguma atividade descrita acima poderiam simplesmente desistir dela e passar a ser bons usuários da rede, mas “contra a dominação tecnológica, os cyberpunks reais (...) propõem o delírio virtual do ciberespaço, as guerrilhas quotidianas contra o Big Brother, as agregações, comunistas ou não, das tribos eletrônicas, a luta pelos direitos dos netizens (cidadãos do ciberespaço)” (LEMOS, 2004). É nessa luta contra uma ameaça aparentemente futura, mas já considerada presente por eles, que os cyberpunks se constituem como um grupo minoritário, odiado e combatido por grandes corporações e pela atuação do Estado.
Um ponto que chama a atenção é a questão da presença da ameaça. Na literatura e nos filmes cyberpunks, essa ameaça tecnocrata surge como algo futuro ou irreal. Isso é culpa do tratamento de ficção científica dado a essas visões de mundo cyberpunks. Para o movimento, na verdade, a tecnocracia já está aí, forte, atuante e cada vez mais caçando a independência e a liberdade dos usuários da rede. Essa força tecnocrata está nas mãos de empresas detentoras dos direitos de programas considerados básicos, como sistemas operacionais e navegadores de internet. Essas empresas são notadamente virtuais e atuam em diversos ramos da rede; entre elas estariam Google, a Adobe e a empresa que é provavelmente a mais odiada entre os cyberpunks, a Microsoft. Os cyberpunks acreditam que essas empresas estariam customizando seus usuários ao invés de se adaptarem a eles. Para combater a “customização”, utilizam de denúncias, e-zines, chats, fóruns, hacks, cracks, pirataria e terrorismo.

Todos os dados até agora foram introdutórios do tema central deste estudo, apenas. A forma de luta que este trabalho pretende focar é o cinema cyperpunk, que, salvo algumas exceções, constitui-se mais em uma temática do que numa estética, ao contrário do que ocorre com a ficção científica.

O primeiro filme de que se deve falar quando o tema é estética “cyberpunk” é o entediante e quase nonsense Blade Runner – O Caçador de Andróides (1982, Ridley Scott), talvez o filme que melhor incorpore o cenário cyberpunk em todos os tempos. No filme, a tecnologia de 2019 é capaz de gerar andróides como cópias perfeitas dos seres humanos (os replicantes), com dois detalhes: os andróides do filme são mais fortes e mais ágeis que seus criadores e têm algo como um prazo de validade que marca seu desligamento – o que equivale a dizer que sua morte vem datada de fábrica. Esses andróides foram desenvolvidos para ser utilizados em trabalhos pesados e na formação de novas colônias fora da Terra, mas a inteligência artificial atuou e os fez revoltar-se numa colônia espacial.
Isso traria conseqüências terríveis aos replicantes. Eles são proibidos na Terra e uma força especial, chamada de Blade Runner, é criada na polícia para “removê-los” (eufemismo para destruição). O filme trata da fuga de quatro desses replicantes para a Terra e da busca empreendida pelo protagonista atrás deles (diga-se, uma busca bastante chatinha, sem nenhum esboço de emoção). A temática de Frankenstein fica bem clara no momento em que esses replicantes procuram seu criador para expiar os pecados e para obter o direito de prolongar as suas vidas. Esse desejo de viver mais é o que torna “humanos” os andróides.
O cenário, no entanto, é o “ator” principal do filme. A grande corporação que cria os replicantes aparece como um “panteão”, acima de qualquer Estado ou entidade, e tem sede em uma pirâmide gigantesca. As ruas são escuras e sujas, o que cria um clima de filme noir, em que dia e noite não podem ser distintos. Um dirigível publicitário atravessa a cidade o tempo inteiro, iluminando-a e observando tudo que acontece nela. Tudo parece sobre controle. As pessoas, os hábitos e até mesmo os pensamentos. O casal protagonista é composto por uma replicante de duração indefinida e um caçador de andróides aposentado. Apesar de o chefe do protagonista estar aparentemente ciente de tudo o que ele fazia, lhe permite fugir sem cumprir a missão que lhe foi ordenada – destruir os replicantes. Talvez Ridley Scott tenha deixado um quê de Big Brother nesse controle, algo que muitos resenhistas apontam em função da cena do filme em que a fuga de Harrison Ford é permitida por um Blade Runner que deixa um origami de um unicórnio no caminho; o detalhe é que Harrison Ford tem sonhos constantes com um unicórnio. A fuga mostra uma esperança final nesse universo em crise, mas não muito mais do que isso. A tecnocracia já foi longe demais; o amor “replicante” age como um último fogo de resistência.

Já “O Show de Truman” (1998, Peter Weir) é um exemplo de fuga da estética cyberpunk. Em quase todas as definições, esse filme seria não mais que um drama um tanto aguado, não fosse o tratamento tão completo dado ao Big Brother nesse filme. Jim Carrey é Truman, um homem que desde o seu nascimento foi controlado por uma empresa, explorado num programa de televisão voyeur, mais ou menos como um Big Brother Brasil sem o Pedro Bial nem data marcada para acabar, num daqueles pay-per-view 24 horas. Cada instante de sua vida era articulado e transmitido para a televisão pelo tecnocrata, na figura do diretor do programa. Tudo parecia ir bem para o diretor do progama, pois Truman tinha sua “vidinha perfeita”, sem grandes sonhos nem grandes provações e o programa tinha público recorde (em alguns momentos é explorada a temática do público, de como o fetiche do homem-espetáculo-do-real é adorado pelos espectadores do programa). A temática cyberpunk, no entanto, surge para abalar esse controle ao modo de “1984” de Orwell.
Truman toma consciência de sua situação de homem-espetáculo e de como sua vida é um show, o seu show. Ele luta contra isso, mas o diretor aparece como um deus, onisciente e onipresente, contra sua liberdade. Ele tenta fugir, mas estradas são fechadas; tenta sair do show, mas tudo conspira contra isso. Ele não sabe o que está lá fora, mas sabe que existe algo; como em Arquivo X, Truman conclui que existe uma verdade, e que “a verdade está lá fora”.
Assim, em meio a conflitos emotivos provocados pela hegemonia tecnocrata que procurava desnorteá-lo, ele consegue sair da rede que o prendia e navegar para longe. O diretor então se corporifica para Truman, que renega a esse deus, dizendo que o show acabou. Truman, portanto, renuncia ao “Big Brother” por opção; a liberdade cyberpunk prevalece ante a autoridade tecnocrata, mesmo que a manutenção da vida simples e pacata fosse mais confortável. Truman não aceita ter sua liberdade tomada em troca de algum conforto. Nada poderia detê-lo no mundo real: ele seria, qualquer que fosse o custo, pela primeira vez, verdadeiramente livre.
Graças ao poder de barganha, a luta de Truman é bastante pacífica em comparação a outras. Como o maior interesse do programa era que ele se mantivesse ignorante quanto a sua situação, o próprio Truman representava o instrumento de poder do reality show, era a vítima e o ponto fraco ao mesmo tempo. Uma vez conhecedor da verdade sobre sua vida, Truman não poderia voltar atrás, o que deu fim abrupto ao programa.
O tema do filme é carregado de paranóia constante, o que leva algumas pessoas a, inclusive, apresentar o distúrbio psíquico que as faz pensar que são perseguidas a todo o momento por câmeras escondidas. Algo perfeitamente possível, apenas pouco provável.

Outro herói cyberpunk que encontrou uma situação semelhante à de Truman, Neo, de Matrix (1999, Andy e Larry Wachowski), representa melhor a luta contra o sistema controlador. Nesse filme a tecnocracia perde o corpo e torna-se a própria “matriz” na qual os seres humanos estão conectados com o objetivo de produzir energia para as máquinas. Essa geração de energia provém dos impulsos nervosos produzidos enquanto se vive uma vida virtual na Matrix.
Algumas pessoas, contra o que desejam as máquinas, foram capazes de despertar e sair da “matriz”. Elas mantêm uma milícia guerrilheira que chega a incomodar as máquinas, mas não chega a ameaçar o sistema. Os ataques são rápidos e objetivos, pois esses “piratas” da rede correm dos agentes de segurança, aparentemente imbatíveis. A realidade parece pouco sujeita a mudanças, mesmo com luta, até surgir um “escolhido”, carregado de um forte caráter messiânico.
É esse escolhido, conhecido como Neo (anagrama para “One”, que, em inglês, representa “o escolhido”; “The One”), que vai fazer a balança pender e liderar o grupo minoritário com algum sucesso rumo ao fim da exploração humana. Antes de despertar, Neo teve a opção de escolher entre permanecer ignorante ou conhecer a verdade. Ele preferiu a segunda opção e com isso passou por uma metamorfose de pirata a messias. Ele morre para poder renascer como alguém imbatível dentro da “matriz”, alguém capaz de vencer inclusive os agentes. Mesmo com todo esse poder, Neo não consegue promover uma mudança do sistema dentro dele. É fora da “matriz” que a mudança acontece – uma analogia à necessidade de mudança a partir de métodos ainda não aproveitados (ou mal-aproveitados) pelo sistema, método utilizado pelos punks, que “não se rendem ao sistema”.
Neo vai pessoalmente fazer um acordo com as máquinas. Em troca de se livrar de um vírus que as ameaçava e de se sacrificar por isso, ele conseguiu a paz para os humanos. É uma esperança fraca, mas, ainda assim, uma esperança (a história do filme aponta que, desde o começo da batalha, não houve paz). Isso poderia ser tanto uma superação como poderia recair numa ação reacionária (BOBBIO). Só um suposto próximo episódio poderia dizê-lo.
Ainda que tenha sua estética totalmente dentro do cyberpunk, incluindo até o vestuário dos personagens, Matrix se coloca no ambiente da ficção científica, pois sai da ameaça presente atacada pelos cyberpunks para tratar de um perigo futuro. Mesmo assim o discurso do filme seria, segundo os cyberpunks, visionário, e serviria de alerta para o rumo a que a evolução tecnológica está caminhando.
Em Animatrix, dez animações que complementam a história de Matrix, esse alerta é ainda mais apelativo. Todos os episódios são carregados de conceitos cyberpunks, como a idéia do “faça você mesmo” e da liberdade, tanto ideológica quanto física, mas é em apenas duas delas que é possível notar a formação desse futuro sinistro de viver na Matrix.
O início de Matrix se baseia em um romance Isaac Asimov, “I, Robot”: um robô comete um crime e todos os robôs pagam por isso. Ocorre uma destruição em massa de máquinas, o que é mostrado tomando os robôs por vítimas e os homens como animais em frenesi. Os robôs remanescentes fogem para um deserto onde se agrupam, formando uma cidade-Estado de máquinas.
Em poucos anos as máquinas contra-atacam. Primeiro dominam economicamente o mundo, depois militarmente, pelas vias de uma guerra total contra a humanidade. Após derrotar os seres humanos, elas os aprisionam e os escravizam como fontes de energia. A Matrix foi criada para mantê-los com as ilusões de uma vida e produzindo os impulsos nervosos necessários para as máquinas. A criatura, em Matrix, não destrói o criador: escraviza.
Uma autoridade que se revele tão opressora a ponto de lutar contra ela se tornar algo praticamente impossível é o maior temor do cyberpunk. É por isso que o Neo carrega toda essa carga messiânica: ele promove o “milagre” de se opor ao sistema sem ser imediatamente retaliado por ele. Ele é o sonho de uma resistência, um herói contra-hegemônico.

Em Exterminador do Futuro (The Terminator, 1984, James Cameron), o messianismo está ainda mais presente na figura de John Connor. Um sistema de defesa com inteligência artificial criado para o controle de diversos outros sistemas militares, como alguns robôs e mísseis balísticos, rebela-se, infectando todos os computadores do mundo. Ele dispara os mísseis contra as grandes cidades e promove – adivinhem! – uma caça aos seres humanos.
John Connor é o homem que conseguiu reorganizar as defesas humanas e contra-atacar esse sistema matriz que controlava um exército de andróides. Mesmo contra todos os fatores, John Connor leva a humanidade a uma “quase vitória” contra as máquinas. Numa atitude de desespero, elas enviam um exterminador robô ao passado para matar a mãe de John Connor e evitar que a resistência sequer exista.
É então que, no passado, uma guerra urbana por cenário escuros de subúrbios americanos é realizada para manter viva a única esperança do futuro. O tema seria ficção científica se a ameaça em questão não fosse um sistema de máquinas. Uma tecnocracia extremada levaria os homens a isso; é por isso que esse futuro de guerra entre máquinas e homens é, na verdade, entre a autoridade tecnocrata e a liberdade cyberpunk.
O messias é, nesse caso, não só a pessoa que é capaz superar o sistema, mas alguém que age contra o sistema e o supera. A ação – descrita no começo deste ensaio como característica dos punks – é o que caracteriza o messias cyberpunk. Nos filmes, isso aparece na figura de Neo, Truman ou John Connor. Na rede, na figura do movimento cyberpunk. É por isso que R.U. Sirius convida a todos a se tornarem “anjos biônicos”, vigias da liberdade. Os últimos a resistirem e impedirem a dominação da rede e da sociedade através dela.

O movimento cyberpunk, que seria apenas a representação da atitude na cibercultura, fez-se forte e conseguiu sair da rede, tomando cinemas e literatura, difundindo suas idéias contra a tecnocracia e pela democratização da informação na rede. O ciberespaço é de todos, não apenas de grandes portais ou grandes corporações.
Na ficção científica, os ideais de futuro cyberpunks são assustadores, apesar de uma forte carga de esperança. Eles reconhecem esse futuro como possível se a história caminhar na linha da tecnocracia e por isso se firmam como um movimento anárquico de cunho político, organizado nos ideais, mas caóticos nas suas ações, Normalmente são vistos como transgressores da lei que se põem contra a tecnocracia.
Como um movimento jovem, eles não se importam com isso. Continuam agindo como piratas virtuais, atacando os símbolos tecnocratas por meio de vírus, cracks e hacks. Cyberpunks não são, entretanto, vândalos ou pessoas sem ideais; eles formam um movimento com base ideológica e força de atuação. Sua cultura, suas lutas e seus temores merecem ser observados e analisados, mesmo sendo considerado por muitos como ilegais ou de mau gosto.



Bibliografia

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- LEMOS, André. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre: Sulina, 2002. 328p.
- LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: 34, 2000. 264p.
- NAZARIO, Luiz. A Cidade Imaginária. São Paulo: Perspectiva, 2005.271p.
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