Hong Kong, cidade-cenário do filme Amores expressos, possui uma história marcada por migrações. Colônia britânica até 1997, hoje sob domínio da China, a ilha é uma potência econômica e financeira que atrai, principalmente, imigrantes chineses. Se nos primeiros anos do século XX, a imigração tinha motivações políticas (Hong Kong era refúgio de opositores da República da China), com o desenvolvimento econômico, a região passou a atrair mão-de-obra barata para a indústria e investimentos estrangeiros. Além disso, durante a II Guerra mundial, a ilha passou quase quatro anos ocupada pelo Japão. Todo esse histórico de uma “relação mais ou menos contínua com a ‘diferença’”[1] possibilitou que Hong Kong se tornasse uma metrópole multicultural.
As sociedades multiculturais não são algo novo... a migração e os deslocamentos dos povos têm constituído mais a regra que a exceção, produzindo sociedades étnicas ou culturalmente “mistas”. [2]
Hall (2003) define, um pouco redundantemente, a característica comum a todas as sociedades multiculturais: são culturalmente heterogêneas. Multicultural, ainda segundo Hall, distingue-se de multiculturalismo. Esse último
Refere-se às estratégias e políticas adotadas para governar ou administrar problemas de diversidade e multiplicidade. [3]
Em Amores expressos, o multiculturalismo pouco aparece como estratégia de uma coletividade, de comunidades[4] etnicamente diversas convivendo na mesma cidade[5]. Na narrativa, predominam as negociações em ação, escolhas práticas no cotidiano dos indivíduos. E o hibridismo[6] parece ser a principal estratégia de relacionamento com a diferença usada pelos personagens.
O multicultural em Amores expressos é mostrado como constitutivo dos sujeitos, parte banal do dia-a-dia. Música americana, reggae no bar San Miguel Beer, perucas loiras que lembram divas como Greta Garbo, cerveja Sol, Coca-cola: é, principalmente, nos gostos e consumos que transparece as influências múltiplas que sofrem cada personagem. Essa característica permite-nos relacionar, como faz Hall, a questão multicultural e a globalização.
No filme, são muitas as referências a produtos ocidentais/globais. Mas em Amores expressos elas aparecem banalmente, como parte da vida das pessoas, sem que se dê, realmente, muita atenção a elas. Parece que a intenção seria mostrá-las como algo comum e constitutivo da identidade de Hong Kong. Produtos ditos “ocidentais”, como California dramin’ (repetido à exaustão) ou o mais simples Happy birthday, podem ser tão orientais quanto o hashi e os olhos puxados. Eles fazem parte de Hong Kong e da vida de seus habitantes.
Em toda parte, estão emergindo identidades culturais que não são fixas, mas que estão suspensas, em transição [grifo do autor], entre diferentes posições; que retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais; e que são o produto desses complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns num mundo globalizado. [7]
Os críticos cosmopolitas estão corretos aos nos lembrarem que, na modernidade tardia, tendemos a extrair os traços fragmentários e os repertórios despedaçados de várias linguagens culturais e éticas.[8]
Mesmo que na globalização contemporânea a tendência cultural dominante seja a homogeneização ocidentalizante (Hall, 2003), comunidades cosmopolitas são marcadas por processos de transculturação (Pratt apud Hall, 2003), por estratégias de différance.
Essas estratégias surgem nos vazios e aporias, que constituem sítios potenciais de resistência, intervenção e tradução... Culturalmente, elas não podem conter a maré da tecno-modernidade ocidentalizante. Entretanto... elas constituem o fundamento para um novo tipo de “localismo” que não é auto-suficiente particular, mas que surge dentro do global, sem ser simplesmente um simulacro deste.[9]
Uma reflexão que pode ser feita em segundo plano é a quase total não-identificação em relação a questões de classe. Os dois policiais surgem na história não enquanto “profissionais”, mas como homens que perderam seus amores. Como já indicava Hall (1997),
As pessoas não identificam mais seus interesses sociais exclusivamente em termos de classe; a classe não pode servir como um dispositivo discursivo ou uma categoria mobilizadora através da qual todos os variados interesses e todas as variadas identidades das pessoas possam ser reconciliadas e representadas.[10]
As identificações entre as duas histórias são tênues. Os pontos de intersecção mais evidentes entre as duas tramas, além da questão amorosa, são ambientes que indicam passagem: o aeroporto e uma lanchonete de fast-food. Analisando mais atentamente esses detalhes, em conjunto com as falas dos personagens, podemos usá-los como metáforas da fugacidade não apenas dos relacionamentos (expressos!), mas também da própria fluidez das identificações:
Elas [as pessoas] mudam. Elas podem gostar de abacaxi hoje e de outra coisa amanhã. [traficante chinesa, que usa peruca loira][11]
De algum jeito, em algum lugar, em algum momento, tudo “passa do prazo de validade”. Senhas... Molho de carne... Até os filmes de Cling... Existe algo na terra que não passe do prazo de validade? [He Qiwi, o policial 233]
BIBLIOGRAFIA
CARREIRO, Rodrigo. Amores expressos. Disponível em:. Acesso em: 05 jun 2007.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A Ed., 1997.
HALL, Stuart. A questão multicultural. In: Da diáspora. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003. p. 51-100.
HONG Kong. Disponível em:. Acesso em: 05 jun 2007.
ROSAS, João Cardoso. Sociedade Multicultural: conceitos e modelos (versão preliminar). Disponível em:. Acesso em 10 jun 2007.
[1] HALL, 2003, p. 63. Frase usada para caracterizar a Grã-bretanha.
[2] Ibidem, p.55.
[3] Ibidem, p.52
[4] Deve-se usar com cuidado esse termo. Como alerta Hall (2003), ele pode dar duas falsas impressões: a de que os grupos são homogêneos e que possuem fronteiras culturais fechadas e bem definidas.
[5] A exceção é a pequena presença dos indianos traficantes de drogas. Ainda que com um participação muito pequena na trama, os indianos aparecem num posição de vulnerabilidade, buscando renda através de atividades ilegais. Esse detalhe pode servir d reflexão sobre a delicada situação sócio-econômica dos imigrantes. Em nosso trabalho, porém, não nos deteremos nesse ponto.
[6] Para Hall (2003), o hibridismo é um processo de tradução cultural que nunca se completa, um “outro termo para a lógica da tradução [grifado no original] ” (p.74)
[7] HALL, 1997, p.95
[8] HAL, 2003, p.83-84
[9] Ibidem, p.61
[10] HALL, 1997, p.22
[11] Sintomaticamente, enquanto pensa isso, a personagem é mostrada múltiplas vezes, como quando se fosse vista através de um espelho partido em várias partes.
As sociedades multiculturais não são algo novo... a migração e os deslocamentos dos povos têm constituído mais a regra que a exceção, produzindo sociedades étnicas ou culturalmente “mistas”. [2]
Hall (2003) define, um pouco redundantemente, a característica comum a todas as sociedades multiculturais: são culturalmente heterogêneas. Multicultural, ainda segundo Hall, distingue-se de multiculturalismo. Esse último
Refere-se às estratégias e políticas adotadas para governar ou administrar problemas de diversidade e multiplicidade. [3]
Em Amores expressos, o multiculturalismo pouco aparece como estratégia de uma coletividade, de comunidades[4] etnicamente diversas convivendo na mesma cidade[5]. Na narrativa, predominam as negociações em ação, escolhas práticas no cotidiano dos indivíduos. E o hibridismo[6] parece ser a principal estratégia de relacionamento com a diferença usada pelos personagens.
O multicultural em Amores expressos é mostrado como constitutivo dos sujeitos, parte banal do dia-a-dia. Música americana, reggae no bar San Miguel Beer, perucas loiras que lembram divas como Greta Garbo, cerveja Sol, Coca-cola: é, principalmente, nos gostos e consumos que transparece as influências múltiplas que sofrem cada personagem. Essa característica permite-nos relacionar, como faz Hall, a questão multicultural e a globalização.
No filme, são muitas as referências a produtos ocidentais/globais. Mas em Amores expressos elas aparecem banalmente, como parte da vida das pessoas, sem que se dê, realmente, muita atenção a elas. Parece que a intenção seria mostrá-las como algo comum e constitutivo da identidade de Hong Kong. Produtos ditos “ocidentais”, como California dramin’ (repetido à exaustão) ou o mais simples Happy birthday, podem ser tão orientais quanto o hashi e os olhos puxados. Eles fazem parte de Hong Kong e da vida de seus habitantes.
Em toda parte, estão emergindo identidades culturais que não são fixas, mas que estão suspensas, em transição [grifo do autor], entre diferentes posições; que retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais; e que são o produto desses complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns num mundo globalizado. [7]
Os críticos cosmopolitas estão corretos aos nos lembrarem que, na modernidade tardia, tendemos a extrair os traços fragmentários e os repertórios despedaçados de várias linguagens culturais e éticas.[8]
Mesmo que na globalização contemporânea a tendência cultural dominante seja a homogeneização ocidentalizante (Hall, 2003), comunidades cosmopolitas são marcadas por processos de transculturação (Pratt apud Hall, 2003), por estratégias de différance.
Essas estratégias surgem nos vazios e aporias, que constituem sítios potenciais de resistência, intervenção e tradução... Culturalmente, elas não podem conter a maré da tecno-modernidade ocidentalizante. Entretanto... elas constituem o fundamento para um novo tipo de “localismo” que não é auto-suficiente particular, mas que surge dentro do global, sem ser simplesmente um simulacro deste.[9]
Uma reflexão que pode ser feita em segundo plano é a quase total não-identificação em relação a questões de classe. Os dois policiais surgem na história não enquanto “profissionais”, mas como homens que perderam seus amores. Como já indicava Hall (1997),
As pessoas não identificam mais seus interesses sociais exclusivamente em termos de classe; a classe não pode servir como um dispositivo discursivo ou uma categoria mobilizadora através da qual todos os variados interesses e todas as variadas identidades das pessoas possam ser reconciliadas e representadas.[10]
As identificações entre as duas histórias são tênues. Os pontos de intersecção mais evidentes entre as duas tramas, além da questão amorosa, são ambientes que indicam passagem: o aeroporto e uma lanchonete de fast-food. Analisando mais atentamente esses detalhes, em conjunto com as falas dos personagens, podemos usá-los como metáforas da fugacidade não apenas dos relacionamentos (expressos!), mas também da própria fluidez das identificações:
Elas [as pessoas] mudam. Elas podem gostar de abacaxi hoje e de outra coisa amanhã. [traficante chinesa, que usa peruca loira][11]
De algum jeito, em algum lugar, em algum momento, tudo “passa do prazo de validade”. Senhas... Molho de carne... Até os filmes de Cling... Existe algo na terra que não passe do prazo de validade? [He Qiwi, o policial 233]
BIBLIOGRAFIA
CARREIRO, Rodrigo. Amores expressos. Disponível em:
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A Ed., 1997.
HALL, Stuart. A questão multicultural. In: Da diáspora. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003. p. 51-100.
HONG Kong. Disponível em:
ROSAS, João Cardoso. Sociedade Multicultural: conceitos e modelos (versão preliminar). Disponível em:
[1] HALL, 2003, p. 63. Frase usada para caracterizar a Grã-bretanha.
[2] Ibidem, p.55.
[3] Ibidem, p.52
[4] Deve-se usar com cuidado esse termo. Como alerta Hall (2003), ele pode dar duas falsas impressões: a de que os grupos são homogêneos e que possuem fronteiras culturais fechadas e bem definidas.
[5] A exceção é a pequena presença dos indianos traficantes de drogas. Ainda que com um participação muito pequena na trama, os indianos aparecem num posição de vulnerabilidade, buscando renda através de atividades ilegais. Esse detalhe pode servir d reflexão sobre a delicada situação sócio-econômica dos imigrantes. Em nosso trabalho, porém, não nos deteremos nesse ponto.
[6] Para Hall (2003), o hibridismo é um processo de tradução cultural que nunca se completa, um “outro termo para a lógica da tradução [grifado no original] ” (p.74)
[7] HALL, 1997, p.95
[8] HAL, 2003, p.83-84
[9] Ibidem, p.61
[10] HALL, 1997, p.22
[11] Sintomaticamente, enquanto pensa isso, a personagem é mostrada múltiplas vezes, como quando se fosse vista através de um espelho partido em várias partes.
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