terça-feira, 6 de dezembro de 2011

"Febre do rato", por Amanda Beça



As cidades são vivas, respiram, e quem determina seus ritmos são as pessoas que nelas vivem. Neste filme, a cidade é Recife, e seu morador mais frenético é o poeta Zizo, que traz consigo a essência necessária para dar um “chute no ovo da ordem” da capital pernambucana. Recife, cidade bela, cidade maltratada e destruída. O diretor Cláudio Assis sente que é preciso ensinar seus espectadores a terem respeito pela cidade, e é através deste personagem alter-ego que ele encontra as palavras.
               Envolvido pelo vício no trabalho, o protagonista produz incansavelmente num ateliê do quintal de sua casa, o Febre do Rato, pequeno jornal onde escreve suas poesias, pensamentos e inquietações socio-políticas.  O nome é uma alusão a expressão popular pernambucana para a leptospirose. Além de dar título ao filme, hoje em dia significa alguém que está inquieto, agoniado. Este alguém é Zizo, e sua “doença” é na verdade melancolia. Na periferia onde vive, rodeado por amigos suburbanos, as pessoas não conseguem ver que por trás de cada sorriso seu ao recitar uma poesia, há uma sabedoria obscura de quem está angustiado com a situação da realidade ao redor.  Lhe causa desgosto que uma cidade linda, cercada de rios e de história seja tão esquecida,  que  uma população humilde seja deixada ao descaso do egoísmo governamental.
                 Mas Zizo não é um flâneur qualquer. Não é a toa que sai com seu carro quase todos os dias para distribuir a edição do Febre do Rato gritando suas ironias e sarcasmos, se ele o faz não é porque crê no Progresso, mas porque sabe que em cada pessoa existe um sensível adormecido capaz de entender. Talvez um dia seus discursos vão deixar de ser ruído para se transformar em dissenso, a fim de que, em algum momento, a suspensão de verdades, a anarquia, será maior que o Estado.
              No fundo ele não acredita, pois não tem esperança. Mas as outras pessoas têm. E Isso basta. Existe um otimismo na sua melancolia que não o deixa ficar parado. Só a quem já não tem esperança foi dada a esperança, e só a quem, de qualquer maneira, não poderá alcançá-las foram dadas as metas a alcançar (AGAMBEN, 2007, p32). Ele gera nos espectadores a inquietação que sente. Sob sua ótica reveladora, as pontes, o rio, os prédios, as palafitas, alvos das efervescências políticas do poeta, são representados como agentes lúdicos, potencializados pela fotografia. A estética preto e branca dá força ao discurso político do personagem, que por entre travellings encaminhados pelo curso do rio Capibaribe, extirpa Recife de sua aparência trivial, transformando-a em onírica, para assim poder denunciar suas contradições entre crueldade e beleza.
                    É  possível dizer que Zizo une duas ideias diferentes de subjetividade política: a de uma inteligência política que concentra as condições essenciais da transformação, e a ideia da virtualidade nos modos de experiência sensíveis inovadores de antecipação da comunidade por vir (RANCIÈRE, 2005, p44).
                Mesmo com um engajamento frenético, não só de dores vive o personagem. Para se libertar da própria maldição psicológica e acalmar a alma, refugia-se na apreciação do amor e no enaltecimento do belo. Afinal “o placar pode não ser justo, mas a partida é boa pra caralho”. Inspira-se nos outros para criar. Seu casal preferido é o do melhor amigo e a travesti Vanessa, pois os considera, de todos os relacionamentos, o mais verdadeiro. O curioso é que Pazinho é seu antagonista: coveiro em constante contato com a morte, ele é o que menos enxerga profundidade nos poemas do amigo, é rabugento e insiste em brigar e trair Vanessa por motivos pequenos. Já seus outros amigos Oncinha, Rosângela, Boca Mole e Bira põem em prática a filosofia do poeta ao gozarem dos prazeres do amor anárquico.
                   Quando conhece Eneida, o universo expandido do poeta leva um choque. Ao recusar seus convites libidinosos, Zizo é envolvido pela paixão não consumada. Cabe a ele contemplar sua musa à distância, pois, apesar de provocativa, ela não cede às vontades do poeta. Confessa até, que por isso se interessa tanto pela menina. Ela estar fora de alcance mantém sua alma alimentada, assim ele tem mais vigor pra compor e pra protestar contra as injustiças.
                 No dia da independência brasileira, em cima de um palanque improvisado e junto a uma caravana de seguidores, Zizo causa Política: faz o seu discurso mais fervoroso e frenético ao desmascarar a farsa do sete de setembro. Sem roupas e visando uma febre anárquica, ele reivindica todos os tipos de liberdade e igualdade. Mas as minorias vão ser sempre minorias, e Cláudio Assis sabe disso. Por isso condena seu personagem ao sombrio destino de ser capturado pela Polícia e afogado no rio que tanto venera.
                   Ainda assim, o filme permanece fiél ao seu otimismo melancólico e mostra que o amor sempre será maior do que tudo e enobrecerá qualquer destino. Em meio a críticas e paradoxos, o amor então se revela o grande homenageado da mais nova obra de cinema pernambucano.
                   

Nenhum comentário: