segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

"Anticristo e a política do sofrimento", por Evan Diniz




“Agora eu posso ouvir o que eu não ouvia antes. O choro de todas as coisas que irão morrer.”

O sentimento do progresso como uma condição, determinou o modo como olhamos a curta passagem de tempo que começamos a perceber quando dominamos o conhecimento a nossa volta. Olhar para frente, além dos horizontes, para lá e adiante, instintivamente nossos olhos se focam. É sabido que o que vem adiante transformará tudo no qual estamos, mas é a grande ironia e promessa do futuro que não podemos ver além. O que vemos além é o que não conseguimos mais enxergar, é a escuridão da sabedoria, o congelamento do progresso e o fim da condição.

“A palavra estética não remete a uma teoria da sensibilidade, do gosto ou do prazer dos amadores da arte. Remete, propriamente, ao modo de ser específico daquilo que pertence à arte, ao modo de ser de seus objetos. No regime estético das artes, as coisas da arte são identificadas por pertencerem a um regime específico do sensível.” (Jacques Rancière – A Partilha do Sensível, pag. 32)

Para Ranciére a estética se aprofunda além das capacidades cognitivas de o homem identificar as pontes sensoriais que determinado objeto artístico retém em sua própria natureza. Está totalmente interligada a um regime sensível comum. As esferas desse regime de partilha vão além do campo da percepção artística, mas também no modo como absorvemos o instituto da política. A melancolia como estado sensível e também sensorial, sintomática por processos de natureza física e psíquica, se encontra em modo representativo o qual a arte poderia se relacionar em sua essência estética e política.

A busca de uma estância a qual não podemos temer, que livre a mente e os sentidos do próprio conhecimento de tudo que nos aflige. Em ‘Anticristo’ essa estância não existe, e sua existência é uma mentira a qual deve ser revelada e exposta. A aflição deve ser aproveitada, as imagens e a estética estão submissas a ela. O filme apresenta a distorção da política progressista e o didatismo de uma nova realidade. O sofrimento é a própria causa de existência do filme, como Lars Von Trier revela, ‘Anticristo’ é o partilhar dos seus medos.
O filme conta a história de um casal com nomes desconhecidos. Eles perdem seu único filho numa tragédia doméstica, Ela adoece de um ‘sofrimento incomum’, Ele desacredita do tratamento médico que ela recebe, e como terapeuta decide tratá-la por si só. Os diálogos que discorrem da primeira parte do filme são estranhamente monótonos e toda condição emocional esperada para um caso de doença é suspendida em nuances com extrema demonstração de sofrimento. Ele é no primeiro momento foco de esperança e depósito racional do que se compreende a realidade como ela é, ou como o nós conhecemos e esperamos. O sofrimento incomum dela se reflete na maneira de como ela se relaciona com o próprio mundo e com a realidade, mostrando-se inicialmente vítima de uma patologia comum de depressão, e depois como uma ponte de compreendimento da realidade do sofrimento. A aura de melancolia e rejeição à percepção do redor por parte dela, abre a reflexão de como, ignorar os regimes vigentes sobre o modo que devemos nos relacionar com o pensar sobre o tempo e a memória, podem danificar ou causar desentendimento com os mesmos. A instituição do tempo como meio de renovação torna o fato de acariciar a memória do tempo perdido uma afronta a si mesmo, levando ao sentimento de luto constante. Em estado melancólico acariciar o tempo perdido é a verdadeira forma de encontrar a essência do tempo e verdade, é desprezar a renovação.

Ele a leva para o Éden, uma floresta para onde ela gostava de ir com o filho, lugar o qual ela lhe revela que sente medo. A floresta é um lugar de lembranças e memórias, lugar onde a saudade e a extrema nostalgia iriam se juntar ao sentimento de luto. Mas ela a teme. Na floresta descobre uma realidade diferente a qual se encontrava antes da perda. A criação de uma nova realidade que se choca com o seu mundo que se desaba e se torna inalcançável, pois é revelado como uma mentira, e o novo mundo uma verdade.

“No luto, verificamos que a inibição e a perda de interesse são plenamente explicadas pelo trabalho do luto no qual o ego é absorvido. Na melancolia, a perda desconhecida resultará num trabalho interno semelhante, e será, portanto, responsável pela inibição melancólica. A diferença consiste em que a inibição do melancólico nos parece enigmática porque não podemos ver o que é que o está absorvendo tão completamente (sabe-se „quem‟ perdeu mas não „o que‟ se perdeu). O melancólico exibe ainda uma outra coisa que está ausente no luto - uma diminuição extraordinária de sua auto-estima, um empobrecimento de seu ego em grande escala. No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio (como descrevemos a depressão anteriormente com Fédida); na melancolia, é o próprio ego.” (MarinaVirginia, Iara Pichioni – Luto e Melancolia em Anti-Cristo: Um olhar clínico sobre as confissões do realizador, pag. 12)

Uma análise psicanalítica pode se aprofundar na reflexão do sofrer melancólico e do que ele pode provocar ao indivíduo. Porém é na arte onde a sua representação suplicará a criação de novas realidades e novos mundos. A melancolia expressa na mulher de Anticristo se mostra produto de várias teses psicanalíticas, mas no âmbito estético se torna personagem capaz de compartilhar o sensível, moldá-lo e reinterpretá-lo. O filme questiona vários aspectos da natureza humana, a maneira como olhar para a história e compreender o tempo que passou. Em sua tese sobre o genocídio, na critica do mal e do bem, Ela se perde e se redescobre como personagem dos escritos. O tempo que passou não era diferente do tempo em que se encontra, ela faz parte da mesma história a qual critica. A natureza, igreja de satã, só precisava ser descoberta pela própria natureza humana, que para isso tinha que se desprender do pretensioso estatuto de progresso e afundar no sofrimento de perda e de morte. A melancolia recriada e regada com o sofrimento é aquela gerada pela entrega total da realidade, e perda total dos estatutos éticos. No longa é possível a ter acesso as situações onde o sofrimento se relaciona diretamente com a construções de novas realidades, nelas estão inseridas a sua estética e impressas novas reflexões sobre a política de sua nova realidade.

“A dissimulação, o sigilo parecem uma necessidade para o melancólico. Ele tem um relacionamento complexo, freqüentemente disfarçado com os outros. Estes sentimentos de superioridade, de inadequação, de frustração, de incapacidade de se obter o que se quer, ou mesmo designado de forma adequada (ou coerente) — podem, e percebe-se que devem ser mascarados pela cordialidade, ou pela mais escrupulosa manipulação.”(Susan Sontag – Sob o Signo de Saturno, pag.  91)

Em Anticristo fica clara a intenção dessa manipulação escrupulosa seja em sua estética, seja na própria realidade criada por Lars Von Trier. Fica claro que a melancolia imprimida no filme seja por seu tema, seja pela doença do próprio realizador é objeto de afronta a políticas éticas da memória coletiva. Essa realidade provoca reflexões que se dialogam com arte, representação cultural, social e até patológica. A melancolia se encontra em lugar onde sempre propiciou na arte a criação de variados modos de representação, o sofrimento como amigo da arte, inimigo do tempo, é instaurador de novos modos de relações entre os homens e eles mesmos.

Referências Bibliográficas

RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível. São Paulo: Editora 34, 2009.
SONTAG, Susan. Sob o Signo de Saturno. São Paulo: L&PM editores, 1986.
Luto e Melancolia em Anti-Cristo: Um olhar clínico sobre as confissões do realizador, por Maria Virginia Filomena Cremasco e Iara Pichioni Thielen, 2010.

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