segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

"Os filmes de nostalgia de Quentin Tarantino", por Rayssa Costa


Os filmes de nostalgia, não são apenas aqueles que se localizam nos séculos passados, mas também os que referenciam formas do passado de se pensar e agir. Para exemplificar a presença desse sentimento no cinema, esta resenha aborda tópicos acerca da filmografia de Quentin Tarantino. Apesar de ter a maioria de suas obras aparentemente centradas no presente e na forma pós-moderna de vida, o conceito de nostalgia se apresenta de diversas maneiras no conjunto de obras desse diretor.

Nostalgia, a partir do texto de Svetlana Boym, pode ser dividido em: nost, que significa a volta para casa; algia, vem de longing, é o desejo de possuir o que não se tem mais. É empregado para descrever a sensação de saudade de um tempo (ou de parte dele), que pode ser real ou ilusório. Svetlana também caracterizou nostalgia reflexiva e nostalgia restauradora.
Porém, a atitude nostálgica não depende unicamente do fascínio pela natureza irrecuperável do acontecido para afirmar a sua capacidade de atração e o seu grande impacto emocional sob o ser humano. De fato, ela vai até um passado nunca antes vivido, mas que é imaginado, idealizado, sonhado e/ou arquitetado a partir de modelos pré- estabelecidos, utilizando para esse efeito os muitos recursos dos quais dispõe a memória coletiva adquirida. A ação nostálgica juntamente com essa busca do irrecuperável que não foi vivenciado desenvolve, então, com o ininterrupto apoio da imaginação, uma espécie de higienização do acontecido, limpando-o das irregularidades e possíveis insatisfações, fazendo-o parecer completo e coerente (talvez, perfeito), e transformando-o, por esta via, em exemplo e objeto de atração.

Fredric Jameson fala a respeito do processo pós-modernista de reificação do passado por meio de manifestações ou objetos culturais, através de uma reinvenção metonímica, a nostalgia pelo estilo, tema e até mesmo pelo modo como determinadas épocas foram eternizadas e não pelo passado propriamente dito. O crítico ao escrever sobre o pós-modernismo ataca-o, na medida em que esse contexto contemporâneo, por meio de uma “nostalgia regressiva”, anseia utopicamente – ou não – por dias melhores e assim congela/paralisa o presente; Jameson acredita que insistir na nostalgia é um modo de demonstrar a falha do presente.

A filmografia de Tarantino costuma se focar em conteúdos em torno da violência, vingança e cultura pop. Além disso, os seus filmes são permeados por representações nostálgicas em várias dimensões. Aqui trataremos dos exemplos de Pulp Fiction, Kill Bill, Bastardos Inglórios e À Prova de Morte.

Em Pulp Fiction, Tarantino assume a postura pós-moderna do fim das fronteiras entre baixa e alta cultura. O importante para ele são os assuntos frívolos, a conversa das massas, a exemplo do diálogo entre os personagens de John Travolta e de Samuel L. Jackson sobre as diferenças na nomenclatura de um sanduíche da McDonald’s. Isso caracteriza o retrato de Tarantino sobre a situação do mundo. É o ponto de vista acolhido por ele para explicar a sua própria situação histórica, e ele se baseia no consumo, exemplificando a tese de Friedric Jameson de que cada época teria a sua formação cultura.

No filme, ainda é possível notar uma nostalgia pelo próprio cinema. O restaurante no qual Mia Wallace (Uma Thurman) e Vincent (John Travolta) vão jantar é uma alegoria dos clássicos da cultura popular norte-americana, com uma decoração que remete a antigos cenários e garçons vestidos à moda de filmes de sucesso de décadas passadas.

Algo que está muito associado à ideia de nostalgia no cinema é o conceito de utopia. A nostalgia em geral olha para o passado como um lugar perfeito, onde ainda se tinha certeza sobre as origens próprias de cada cidadão e o lugar ao qual cada um pertencia. É uma forma de ilusão, de lugar atemporal no qual se pode ser feliz. Da mesma forma funcionam as utopias, sejam elas remetentes a um local específico, a uma forma de vida ou a um período passado ou futuro. Em Pulp Fiction a utopia aparece principalmente no personagem Jules (Samuel L. Jackson). Ele resolve que o trabalho que está a fazer será o seu último na vida ilegal, resolvendo seguir um “caminho de Deus” depois disso. A utopia presente, então, é a de remissão de culpa, na crença de que ao se deter nos escritos bíblicos o homem pode ser salvo de algo e dormir tranquilo com seus pecados passados.

Já Kill Bill trata do tema de vingança, e é bastante violento, porém segue muito mais o caminho da ironia e homenageia a estética de filmes e séries antigos de lutas marciais. A nostalgia em Kill Bill é bastante referente ao modo de vida oriental. Por
exemplo, ao contrário da maioria dos filmes violentos norte-americanos, Kill Bill dispensa a ensurdecedora sonoplastia de tiros sequenciais e prioriza lutas corporais, às vezes sem arma, outras com faca ou espada. Esta última arma é a mais valorizada no filme. A luta final de Kill Bill 1, com os “88 loucos” demonstra isso claramente – apesar de ser um confronto entre quase uma centena de pessoas, nenhum deles dispara armas de fogo, o que supostamente poderia resolver o confronto muito mais rapidamente.

O valor dado às artes marciais também traduz essa nostalgia pelo oriental. Beatrix Kiddo (Uma Thurman) é treinada por Pai Mei, através da rígida e convencional maneira dos mostres orientais antigos. Ou melhor, através da forma representada pelo cinema de como são esses treinamentos: o discípulo sofrendo, repetindo golpes inúmeras vezes, intercalando seu sofrimento com subidas de longas escadarias levando pesos nos ombros.

Tarantino homenageia ainda outro elemento da estética oriental – o mangá. Para narrar a vida de Cotton Mouth (Lucy Liu), o diretor faz uso do recurso de animação, seguindo a estética dos animes japoneses. Para finalizar, a montagem das cenas de luta de Kill Bill também completa essa referência, seguindo o ritmo dos filmes B orientais.

Em Bastardos Inglórios, o diretor foge do seu cenário de costume. No lugar de mostrar uma estória nos EUA contemporâneo, ele aloja seus personagens na Europa da II Guerra Mundial. Assim, por ser um filme “de época”, Bastardos Inglórios possui elementos comuns a vários filmes “de nostalgia” – figurino e cenários diferenciados, outra situação de mundo e diferente postura dos personagens em relação às coisas da vida. O crucial neste filme, no entanto, é a grande utopia criada como alternativa à história do mundo, na qual Hitler teria sido assassinado por judeus. Esta utopia externa o desejo coletivo da humanidade de ter punido um dos homens mais cruéis de que se tem conhecimento.

Além disso, Bastardos Inglórios referencia a ideia de “clássico”. Um dos exemplos é a canção Pour Elise, tocada no início da primeira cena, contextualizando a narrativa num “França ocupada pelos nazistas” e, por estar com algumas alterações, também serve para demonstrar a tensão crescente no personagem do fazendeiro francês LaPadite, que será interrogado pelo coronel alemão Hanz Landa. O clássico também entra em evidência nos planos de Shoshanna perto de uma janela, momentos antes da matança do cinema. A direção de arte da cena dá o ar de mistério e desejo do estereótipo da femme fatale.

Esse estereótipo, no entanto, é realmente explorado em À Prova de Morte, filme no qual Tarantino personifica mulheres irresistíveis que existem no imaginário masculino. Ele
também é nostálgico na trilha sonora, mas essencialmente o é na parte visual do filme. A estética de todos os figurinos e cenários remete aos anos de 1960-70. A fixação por carros antigos presente em várias personagens do filme pode exemplificar isso. O filme conta ainda com recursos estéticos que simulam defeitos típicos das projeções em cinemas antigos. Isso tudo se traduz como um anacronismo que desloca a narrativa de À Prova de Morte de qualquer lugar específico no espaço-tempo.

Dessa maneira, Quentin Tarantino cria em seus filmes sua própria historicidade. Ele usa elementos da nostalgia como recurso para se afastar do seu próprio presente e, dessa maneira, interpretá-lo. Ele não reduz a nostalgia à imitação de um modo de filmar do passado, ou a utopias de que a vida era melhor há uma década, mas transforma esse conceito em modo de ler o presente, criando sua visão a respeito dos homens e da relação que eles têm entre si. O diretor sabe que não pode voltar exatamente para aquele espaço- tempo que deseja, e por isso muda de postura e reinventa novas formas para agir diante do objeto que se faz nostálgico. Ele “cura” o afeto a partir do novo, faz com que a saudade do ideário que ele próprio e nós – espectadores – possuímos seja acalentada.

Fredric Jameson

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