segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

"Elefante", por Cecília Shamá

 


A característica do temperamento saturnino é a relação consciente e implacável com o eu, que nunca pode ser dada como certa. O eu é um texto - precisa ser decifrado. (Logo, é um temperamento adequado ao intelectual.) O eu é um projeto, algo a ser construído. (Logo, é um temperamento adequado aos artistas e aos mártires, àqueles que cortejam “a pureza e a beleza de um fracasso”, como Benjamin diz a propósito de Kafka.) E o processo de construção do eu e de suas obras é sempre demasiado lento. Estamos sempre em atraso em relação a nós mesmos” – Susan Sontag.

           
A metáfora do real envolta na possibilidade faz Elefante (2003) próximo, enquanto abre mão do fato consumado para criar uma aproximação a partir do “se” dos acontecimentos ocorridos em Columbine. Metáfora de linearidade fragmentada, do tempo vivido, partido enquanto entidade bergsoniana, repleto de historicidade construída. Cresce como um sentimento vazio que ganha dimensões desproporcionais ao ser deixado de lado, e se instala no meio da sala-de-aula para incomodar com sua presença, em forma de um antagonista disfuncional, dos sujeitos excluídos, dos mais fracos da cadeia alimentar, da disfuncionalidade das instituições de ensino e das relações adolescentes. Gus Van Sant. Também o elefante de seu próprio cinema. Do zoológico que é a época entre a escola e a vida adulta.
            Após quatro anos decorridos, Gus Vant Sant faz sua própria historicidade acerca do massacre em Columbine. Mas não é uma história politizada, sequer com voz gritante. Se torna uma historicidade individualista, em ruídos, fragmentos. Não a que estamos acostumados a ver nos livros ou nos fatos. A historicidade cinematográfica, que usa a vida enquanto mimese, e pessoas reais enquanto arquétipos sócio-culturais.
            Nos créditos iniciais há a analogia do diretor aos fatos ocorridos. Estamos sozinhos, crescendo, em um mundo maior do que nós, onde vemos tragédias a partir de um olhar terceirizado, distante do real. A panorâmica por sobre o campo da escola, enquanto tudo acontece e a câmera permanece congelada no tempo, parada, na primeira tomada, funciona como narrador onisciente do que acontece e acontecerá ali, do alto, enxergando por partes e se omitindo.
 Gus Van Sant fragmenta a história e conta superficialmente a vida  de seus adolescentes, não por falta de conteúdo próprio, do filme ou dos jovens, mas pelo imediatismo adolescente para consigo  e com os outros. Ao não fazer uma reconstituição literal do massacre em Columbine, sua história ganha uma veracidade palpável. Como se respeitando o passado recente e nos contando numa obra fílmica o que ele acha ter ocorrido, o que manipula como verdade, o que mostra em cada ângulo e de cada vez. Por isso vemos diversas vezes os adolescentes de costas, assistidos e desprovidos de ajuda nessa fase de seu amadurecimento.
            O impacto de Elefante enquanto filme e narrativa ficou em mim desde a primeira vez que o vi, há uns quatro anos. Não por sua violência epidérmica, não por qualquer brilhantismo que enxergasse para além do filme. Ressoou como um ruído que aflorasse tudo que havia passado na adolescência e que ficaria comigo nas entrelinhas das minhas relações inter-pessoais. Soou como identificação, como limiar do que enquanto adolescentes muitos passam, mas não questionam, não se expressam, não são ouvidos.
Nem há o que questionar que Elefante não se prende muito ao bullying feito à Alex por seus colegas de classe. Parece haver uma barreira entre o rapaz e seus colegas, nem parece atingi-lo tanto assim, a ponto de fazê-lo cometer uma loucura. Mesmo essa prática abusiva fica por nossa conta, cresce por nossa experiência pessoal, e aumentamos o que não está presente na tela e sim em nossa memória involuntária, momento em que há compartilhamento do sensível. A adolescência pode ser uma fase, mas a vida adulta carrega com ela os garotas e garotos marginalizados sem voz adulta, em um entre - lugar de desenvolvimento físico e emocional. Colegas de classe, professores, orientadores, pais. Figuras do mundo adulto ausentes em Elefante e na vida real. O desgaste de Alex com a escola está no acúmulo de papel jogado nele, podemos ver atrás do personagem vários outros papéis que vieram de outros dias, de outros colegas.
            John, Alex, Eric, Michelle, são uma espécie de Stephen Dedalus de Gus Van Sant. Toda a história se repete num único tempo entre os personagens, mas continua sendo a mesma para todos. Os pontos de vista diferem com a cronologia não linear, se bem que não é do tempo material que se trata o filme, não o tempo contado, mas vivido. Alex toca piano, John cuida do pai alcoólatra, Michelle se isola entre os livros da biblioteca, os detalhes de cada jovem se perdem em um dia.
            Há uma cena que mostra a cumplicidade da idade e do ambiente, na qual Acadia dá um beijo na bochecha de John.
          

            Esse momento de captura do instante está inserido em todo o diálogo de Elefante para com seu espectador. Enquanto fase para a vida adulta, a adolescência se constrói para alguns nos momentos de fragilidade, da troca, na doçura dos breves segundos em que o outro nos nota, ao mesmo tempo no mal estar de uma civilização presa em si mesma.
            O primeiro tiro vem como um reflexo de Alex. E vemos o massacre ocorrer enquanto não podemos fazer nada, do lado de fora do prédio, assistindo a tudo de primeira mão, enquanto John avisa aos transeuntes para que não se aproximem da escola e grita pelo pai. Enquanto a câmera se afasta de Alex e dos colegas que ele ameaça. Gus Van Sant nos narra da adolescência enquanto fase e da vida enquanto conseqüência dela mesma, maior do que os anos escolares, menos significante do que gostamos de admitir, cos acontecimentos em Columbine se valorando como corriqueiros nas mídias e filmado como hipótese em Elefante. 

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