segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

"Materializações do passado em ‘Um Olhar a Cada Dia’, de Theodoros Angelopoulos", por Douglas Deó Ribeiro



No seu Sobre o conceito de história, Walter Benjamin deduz que “...existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa”, que há um sopro do passado nos propelindo no presente e que as vozes e pessoas de antes estão reverberando aqui, ao nosso lado. Um segundo texto seu, A doutrina das semelhanças, aborda o processo incessante de mímese que nos cerca, das semelhanças entre as coisas – contemporâneas umas das outras ou não – ocorrendo à nossa volta, quer percebamos ou não. O mundo como uma massa única, fusão de tempo e espaço, onde o presente e o passado amalgamam-se, fazendo emergir no primeiro muito do que parecia pertecer, como um fóssil, a este último.
As representações modernas já tinham consciência dessa analogia entre o mundo e ele mesmo em outro lugar ou momento: James Joyce relaciona a queda do pedreiro personagem do romance ­Finnegans Wake, Tim Finnegan, a diversas outras quedas, da História e das histórias – a queda de Lúcifer, a de Adão, a do império romano, a de Humpty Dumpty (personagem ovoforme de uma canção popular anglófona), a de Charles Stewart Parnell (Parlamentar inglês do século XIX que perdeu seus colegas e adeptos ao ser acusado de adultério), a de Tristão (de Wagner e outros tantos), a de Noé, quando embriagado com vinho, a da maçã que inspirou Newton, a queda da chuva, de Wall Street, etc, etc. Todas as quedas como releituras ou revivências de um mesmo fenômeno, impregnado ao conjunto da existência.
Um olhar a cada dia (1995), filme do principal representante grego do cinema moderno europeu, Theo Angelopoulos é uma franca livre-adaptação da nostálgica Odisseia (Uma tradução literal do título original resultaria em ‘Um olhar de Ulisses/Odisseu’). Um cineasta – chamado ‘A’ - retorna a sua terra natal para tentar encontrar três rolos de filmes perdidos, supostamente os primeiros filmes gregos, e, nessa jornada, passa por diversas situações de reencontro com o passado, poetizadas pela câmera de Theo.
Analisando-se duas passagens do filme, pode-se fazer conexões com as reflexões benjaminianas sobre o passado. Em primeiro lugar, é importante ressaltar que as sequências analisadas desenvolvem-se na forma de plano-sequência – característica de toda a obra de Angelopoulos, com seus planos sempre longos. A continuidade física aparente dos planos em questão provoca certo estranhamento por deixar indefinidos os limites entre memória e presente, como se o personagem relembrasse os fatos revivendo-os, à semelhança do protagonista de Proust, em seu Em busca do tempo perdido – tal imprecisão é ainda maior quando se atenta para o fato de as lembranças revividas nem sempre pertencerem ao personagem que as presencia.
                  O primeiro dos planos – primeiro, também, do filme – mostra um personagem contando a história de como ele tomou conhecimento da existência dos três rolos de película. Enquanto o personagem narra, vê-se o evento ocorrendo: um navio no mar, um cineasta – um dos irmãos Manakis - filmando a embarcação e o próprio narrador, descrevendo o evento de dentro da própria cena rememorada. O cineasta, assim como o narrador havia dito, passa mal e morre enquanto filmava e, após esse momento, a abertura do plano mostra o protagonista, ‘A’, para quem a história estava sendo contada. Num conjunto de movimentos de câmera, o cineasta morto (responsável pelos tais rolos perdidos) desaparece com sua câmera, restando apenas o navio que se distancia no horizonte e os dois personagens do presente.
                  O segundo plano, mais à frente no filme, mostra o cineasta cruzando a fronteira com a Albânia. Um dos guardas identifica uma suposta irregularidade em sua documentação e o conduz para seu superior. Após alguns acontecimentos e a mudança da fotografia para tons quentes, o espectador percebe que o protagonista saiu do presente e está no lugar de um dos irmãos Manakis – morto por fuzilamento após ser preso na mesma fronteira onde se passa a cena. ‘A’ é conduzido para o fuzilamento e, no instante final, a fotografia volta ao tom azulado do presente e os personagens do passado somem, deixando o cineasta na fronteira, sem qualquer complicação a sua travessia.
                  Diferentemente dos pensamentos de Benjamim, o que se vê no filme de Angelopoulos não é uma presença difusa e orgânica dos eventos do passado no presente. Um olhar a cada dia apresenta uma visão um tanto literal e linear da relação entre presente e passado – por características da fotografia e do jogo entre o que está dentro do quadro e o que está fora do quadro é possível determinar quando o filme se encontra no presente e quando no passado.
                  Entretanto, a escolha estilística do diretor, de colocar passado e presente em um mesmo plano, faz com que elementos de um estejam presentes no outro, como os ‘sopros do passado’ do filósofo alemão, que penetram a todo momento o presente: no primeiro dos planos analisados, o barco que foi filmado pelo Manakis no passado é o mesmo que ‘A’ acompanha com o olhar no presente até ele sumir do enquadramento, sem haver distinção física entre um e outro. O próprio protagonista encarna diversas questões sobre a identidade balcânica, ao se tornar corpo do Manakis fuzilado – como se suas inquietações do presente também afligissem o cineasta do passado (a busca pelos primeiros filmes – primeiras imagens, nas palavras de ‘A’ – ilustra bem essa Odisseia identitaria).
                  Enfim, os questionamentos do cineasta personagem – ‘A’ – e do cineasta diretor – Angelopoulos – analisados à luz da história balcânica (em particular da do último século) estão impregnados de nostalgia pela cultura grega e adjacente: a Odisseia de Homero, o retorno a pátria natal, a busca pelos primeiros filmes, os eventos históricos repassados. Se permanece a dúvida sobre o negativismo do ponto de vista adotado – e, nesse sentido, a sequência em que uma estátua gigante de Lênin, destroçada, é carregada por uma balsa parece ilustrar que certos ideais esquerdistas estão mortos -, ainda que essa jornada de ‘A’ não resulte numa restauração absoluta do passado, essas interpenetrações do presente e do pretérito ilustram que, mais que desejado, o retorno de elementos do passado, mesmo sendo imperceptível, é inevitável.

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