segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

"A imagem cinematográfica como uma imagem da memória", por Álvaro Brito


Para Linda Hutcheon, a relação nostálgica com determinados objetos não depende das qualidades intrínsecas a esse objeto, da entidade em si própria, mas da resposta devolvida pelo observador, decorrente de processos emocionais e afetivos que são acionados por tal objeto. Nesse sentido, é preciso que o observador esteja dotado de toda uma memória afetiva que se remete a questões subjetivas e que seja acionada ao contemplar uma obra de arte ou, numa experiência proustiana, entrando em contato com alguma coisa que faça despontar uma carga afetiva, um episódio recôndito da memória.

A time to live, a time to die (1985), filme enormemente inspirado na própria infância do cineasta Hou Hsiao-hsien, conta a história do menino Ah-há, de sua infância emigrada e estabelecida numa cidadezinha do interior de Taiwan. Através de vários de seus primeiros filmes, Hou Hsiao-hsien descreveu o processo histórico de formação pelo qual passou Taiwan depois da derrocada de Chiang Kai-shek na Guerra Civil Chinesa, e de sua retirada do continente. A City of Sadness (1989) foi um dos mais ambiciosos filmes de sua carreira, no qual descreve com mais nitidez os impactos do governo nacionalista chinês sobre a moral do povo de Taiwan. Seus filmes olham para o passado com certa nostalgia, percorrem episódios de sua infância e adolescência, mas sempre descrevendo um movimento ideológico, redefinindo a identidade nacional de tal maneira que não está no centro da etnia. HHH é um chamado chinês hakka, que pode ser traduzido para “visitante”, emigrado para Taiwan na infância, onde residiu durante quase toda a vida. A maneira como a narrativa em seus filmes, particularmente em A time to live..., é episódica, promovendo guinadas no percurso de seus personagens, obedecendo às falhas e à seletividade da memória. Seus personagens fazem parte de um mundo afastado dos grandes movimentos históricos, mas a História de Taiwan em algum momento chega a tocá-los, a articulá-los ao mesmo tempo em que eles se articulam.

A narrativa do filme vai preenchendo de memória cada imagem que a compõe. Há uma frequente repetição de lugares, os cantos da casa, as ruas de terra da cidadezinha, a árvore da praça, a estrada por onde vem o cocheiro trazendo a avó perdida etc. Todas filmadas com poucas variações no ângulo e na posição da câmera. Essa repetição denota o movimento circular do cotidiano, ainda que seus personagens cresçam, se transformem ou simplesmente desapareçam. É como se Hou Hsiao-hsien fizesse de suas imagens, de cada canto do vilarejo onde se passa o filme, algum tipo de ruína que desafia os dispositivos de armazenamento do nosso mundo tecnológico. Cada ruína concentra memórias, denota uma passagem de tempo. Através da narrativa, HHH constrói memórias e cada olhar do espectador para a mesma imagem em momentos diferentes se transforma conforme as circunstâncias narradas.

Nessa construção de memórias que vai se arquitetando durante o filme, Hou vai se aproveitando cada vez mais dos espaços vazios. Neles, não há nada de extraordinário até que uma memória vai se incrustando: a cadeira do pai em sua posição invariável ou a esteira de tatami onde descansa a avó. Depois de morto o pai, a cadeira vazia passa a significar a presença de uma ausência e deixa de ser somente um espaço vazio. É nesse sentido que o afeto se produz no espectador, pois este também vivencia, nas guinadas episódicas da memória, as experiências e a vida daqueles personagens. Hou primeiro investe nos lugares cargas afetivas para depois resignificá-los ao transformá-los em ruína. Numa das últimas cenas, vê-se sobrevoar uns pedaços de alumínio com os quais a avó revestia suas moedas sagradas. Em vários momentos, vimos a senhora absorta em seu trabalho religioso enquanto num primeiro plano algo de mais importante acontecia.

Como o próprio título do filme diz, há um tempo para viver e um tempo para morrer. São pelo menos três os momentos senão mais importantes, ao menos os que promovem transformações drásticas. Os três momentos se referem às mortes do pai, da mãe e da avó. Mas Hou não dedica mais importância a tais fatos que a outros momentos simples e banais e que remetem à vida. A todos os momentos, Hou dedica certo respeito que não extravasa os limites do drama. Há algo de impessoal e ao mesmo tempo afetivo em sua maneira cadenciada de filmar. Sua escolha dramatúrgica em afastar a câmera dos personagens, deixando-os mais livres, confere-lhes uma humanidade que excede os limites da tela. A projeção então se confunde com nossas próprias recordações, não através da empatia, da identificação, da dramaturgia aristotélica, mas porque as imagens acabam se intercalando, se emparelhando em nossa memória.

Em determinada parte do filme, descobrimos no diário autobiográfico do pai de Ah-há que sua previsão inicial era de passar apenas 4 anos em Taiwan, jamais tendo imaginado que terminaria seus dias naquela cidadezinha. Os rumos históricos acabaram por arraigá-los lá, mas seus fatos nunca são esclarecidos. Sobre a guerra contra o Comunismo, só ouvimos pelo rádio, ou de maneira bem distante, como em duas cenas curiosas: uma em que uns militares passam de moto, pela rua adjunta à praça onde brincam os meninos; a outra, quando só ouvimos o ruído intenso dos carros pesados de guerra invadindo a casa escura no meio da madrugada. Hou opta por percorrer as margens desse processo histórico, detendo-se nas experiências pessoais de seus personagens, aos quais dedica respeito e admiração mesmo quando são vadios e desleixados. Aliás, aí há uma curiosidade, pois não é que seus personagens sejam anti-heróis, não obedeçam às leis éticas e morais, mas por serem diferentes é que promovem um encontro e um confronto com nossas qualidades. Ao espectador, portanto, é que cabe esse confronto, do qual desponta uma experiência, uma memória. 

Linda Hutcheon

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