quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

“Cinema, tempo e memória”, por Maiara Mascarenhas

                         
“Ceci est l'histoire d'un homme marqué par une image d'enfance. La scène qui le troubla par sa violence, et dont il ne devait comprende que beaucoup plus tard la signification, eut lieu sur la grand jetée D'Orly quelques années avant le début de la Troisième Guerre Mondiale” - Chris Marker em La Jetée, 1’52’’.

“Nada distingue as lembranças de outros momentos. Só mais tarde eles se fazem reconhecer” – IDEM, 2’43’’.

“Ele compreendeu que não havia como escapar do tempo. E que esse momento que lhe haviam concedido ver e que nunca deixara de obcecá-lo era o momento de sua própria morte” – IDEM, 27’38’’.

Representações cinematográficas têm influenciado o mundo da vida[1]. “Filmes se tornaram a arte de definição para a experiência temporal da modernidade” (CHARNEY apud KILBOURN, 2010, p. 2, livremente traduzido).
Ora, as transformações da modernidade pós-1870 geraram um clima perceptivo de superestimulação, distração e sensação tão contíguo à vida humana que escorre até os dias atuais. Esse nosso tempo de “massa civilizada” (BENJAMIN, 2000, p. 104), como entende Georg Simmel, é marcado pelo “rápido agrupamento de imagens em mudança, a descontinuidade acentuada no alcance de um simples olhar e a imprevisibilidade de impressões impetuosas” (CHARNEY apud CHARNEY; SCHWARTZ, 2001, p. 386).
Em meio a esse ambiente, a Filosofia procurou se apropriar da “verdadeira experiência” demonstrando que, através da categoria do instante, o indivíduo torna-se capaz de viver por completo, experimentando uma sensação imediata e tangível tão forte que esvaece quando é sentida pela primeira vez.
Ora, é fato que

o conceito de instante forneceu um meio de fixar um momento de sensação, no entanto esse esforço de estabilidade teve que confrontar o fato inevitável de que nenhum instante podia permanecer fixo. Tal o dilema conduziu [...] a dois conceitos interligados que definiram suas investigações do moderno como momentâneo: o esvaziamento da presença estável pelo movimento e a resultante separação entre a sensação, que sente o instante no instante, e a cognição, que reconhece o instante somente depois de ele ter ocorrido (IDEM, p. 387).

            Juntos, esses dois aspectos do instante (sensação e cognição) moderno criaram uma forma de experiência muito cara ao Cinema: a memória. Primeiramente porque, como entende Russel Kilbourn (2010), a memória é uma espécie de procedimento através do qual recordamos e recuperamos imagens. Em segundo lugar, Walter Benjamin destaca que é justamente a memória o lugar no qual reside a sensação do instante e a sua cognição: “o antagonismo existente entre a vita activa e a específica vita contemplativa se abre na memória” (BENJAMIN, 2000, p. 105).
            Mas, como entendem esses dois teóricos, as inquietações da nossa vida interior não têm um caráter exclusivamente subjetivo, isto é, onde há lembrança de um momento individual (dentro de mim), há lembrança de um momento coletivo (fora de mim).
Ademais, convém considerar que memória e imaginação são processos mentais semelhantes (CRUZ, 2011) e que não é possível pensar sem imagens (PLATÃO apud KILBOURN, 2010, livremente traduzido). Donde se pode entender como, ao assistir a um filme, a mente pareça atingida por imagens mentais correspondentes à própria memória: as imagens do presente puro nada mais são do que a atualização das imagens do passado invisível consumindo as imagens do futuro.
Ou seja, durante a sessão, o passado coexiste com o presente que ele foi e, mais que isso:

o que se vê numa tela de cinema, [...], o que uma criança imagina na exploração de seus prazeres e terrores é atual – ou dado – da mesma maneira que uma cena “real”. [...] Pois, se o imaginário não se opõe mais ao real, salvo no caso da metáfora ou da fantasia arbitrária, o real por sua vez não é mais atualidade pura, mas “coalescência”, segundo o termo de Bergson, de virtual e atual. É pelos caminhos do imaginário que o cristal de uma obra ou de uma obsessão infantil revela o real em pessoa (ZOURABICHVILI, 2004, p. 21-22).

            O importante é, portanto, o tipo de relação que o Cinema mantém com o público. Isto é, a relação por meio da qual as imagens cinematográficas se atualizam através dos seus espectadores e, estes, concomitantemente, atualizam as suas próprias imagens através do aparato tecnológico.
            Por isso, mais do que perceber como o cinema nos permite formar uma suposta compreensão da memória, a ponto de muitas vezes sermos incapazes de pensar/lembrar “como seria o mundo antes do cinema; assim como, antes, leitores do século XIX, também tinham dificuldade de imaginar um mundo sem a mediação das novelas” (KILBOURN, 2010, p. 9, livremente traduzido), devemos analisar o conceito de “memória protética”[2], procurando entender como a nossa relação com o dispositivo fílmico afeta as instâncias individuais e coletivas da nossa vida.
Afinal, como essa “memória protética” nos permite conhecer e construir o processo histórico e os eus contemporâneos no curso do tempo? A partir da subversão ou da paródia, das enunciações alternativas ou não convencionais (DIJCK, 2007)?

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. 3ª edição, 2ª reimpressão.

CHARNEY, LEO; SCHWARTZ, Vanessa R. (org.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.

CRUZ, N. V.. Fotografia de família e memória: deslocamentos da arte contemporânea. In: Discursos fotográficos, v. 7 - n. 11. Londrina: 2011.

DIJCK, José van. Mediated Memories. Stanford, California: Stanford University Press, 2007.

KILBOURN, Russell J. A.. Cinema, memory, modernity: the representation of memory from the art film to transnational cinema. New York: Routledge, 2010.

ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro, 2004. Tradução de André Telles. Disponível online (http://claudioulpiano.org.br.s87743.gridserver.com/wp-content/uploads/2010/05/deleuze-vocabulario-francois-zourabichvili1.pdf), acesso em 22/12/2013.







[1] Para Jürgen Habermas, o mundo da vida é concebido como o mundo pré-científico imediatamente dado. Isto é, é um lugar no qual os objetos se dão à intencionalidade intuitiva da consciência e é papel da Fenomenologia ver os objetos como coisas do mundo da vida. A escolha pelo conceito de "mundo da vida" nesse parágrafo dá-se por este ensaio manter afinidade com a Filosofia de Bergson, Filosofia esta para a qual a Fenomenologia é matriz conceitual da fundamentação teórica.
[2] "Os modernos teóricos da memória, há muito tempo, reconheceram que, ao falar de uma memória, estamos descrevendo não um fenômeno subjetivo unitário, mas um agrupamento de funções cognitivas - ou, em outros termos, uma constelação de metáforas interconectadas" (KILBOURN, 2010, p. 5). Ora, essas metáforas não apenas persistem: elas continuam contribuindo ativamente para a própria poética do pensamento à medida que a evolução das "tecnologias de representação" (Fotografia, Cinema etc) determina metáforas dominantes no discurso social. Por isso, dizemos que a "memória cinematográfica" ou o "Cinema, na condição de memória protética" permite à memória humana naturalizar o técnico e o artificial, uma vez que a linguagem cinematográfica parece ser capaz de representar a (re)experiência do subjetivo no passado.

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