quarta-feira, 29 de agosto de 2007

"Terra estrangeira e os estudos culturais" por Diogo Stanley e Juliana Galvão


Oh, sim! Eu estou tão cansado, mas não pra dizer
que eu não acredito mais em você
Com as minhas calças vermelhas
meu casaco de general, cheio de anéis
Eu vou descendo por todas as ruas
e vou tomar aquele velho navio
Eu não preciso de muito dinheiro
graças a Deus! E não me importa, honey
Oh, minha honey baby !("Vapor Barato", de Jardes Macalé)




1. Introdução aos Estudos Culturais: Multiculturalismo, Identidade Pós-Colonial, Minorias Sociais e Subalternidade

A expressão “Cultural Studies” (Estudos Culturais) surgiu de forma sistematizada a partir do final da década de 50, na Inglaterra, após a Segunda Guerra Mundial. Seu reduto inicial foi o Center for Contemporary Cultural Studies (CCCS) ligado ao English Department da Universidade de Birmingham. Três autores são considerados fundadores dessa corrente de pesquisa: Richard Hoggart, Raymond Williams e E.P. Thompson que, em linhas gerais, pretendiam estudar as relações de cultura e sociedade a partir de uma perspectiva multidisciplinar que agregou, inicialmente, a Literatura Inglesa, a Sociologia e a História. Ana Carolina Escoteguy no livro Cartografias dos Estudos Culturais acredita que ao recusar as divisões disciplinares propondo uma visão holística das relações culturais, tal corrente de pesquisa rompe com as barreiras impostas pela academia, tornando-se um campo de estudo “antidisciplinar”. (Escostegut, 2001).
No campo ideológico, os Estudos Culturais foram influenciados pelos ideais políticos propagados pela New Left (Nova Esquerda), pelo movimento de educação de adultos e, sobretudo, pelo colapso da noção de integridade nacional do império britânico pós-guerra. No campo conceitual,
“podemos qualificar, portanto, a emergência dos Cultural Estudies como a de um paradigma, de questionamento teórico coerente. Trata-se de considerar a cultura em sentido amplo, antropológico, de passar de uma reflexão centrada sobre o vínculo cultura-nação para uma abordagem de cultura dos grupos sociais [...] a questão central é compreender em que a cultura de um grupo, e inicialmente a das classes populares, funciona como contestação da ordem social, ou, contraditoriamente, como modo de adesão às relações de poder” (Escosteguy, 2001, p.13)

Ao considerar as contribuições culturais que estão à margem do centro, os Estudos Culturais rompem com o tradicionalismo canônico do pensamento clássico, ao dar voz às chamadas minorias sociais, tão presentes nas sociedades contemporâneas. Tal linha de pesquisa permite que as expressões subalternas sejam inseridas na arena das relações sócio-políticas, abordando o conceito de cultura “como um espaço de negociação, conflito, inovação e resistência dentro das relações sociais das sociedades dominadas pelo poder e fraturadas por divisões de gênero, classe e raça [...]” (Green apud Mattelart, 2004, p.35). Nessa perspectiva, os símbolos e signos culturais das sociedades contemporâneas pós-coloniais são socialmente construídos e historicamente transformados. Todavia, as diferenças não se restringem ao binarismo metrópole-colônia e colonizador-colonizado, uma vez que o cidadão atual
“se sente enraizado na sua cultura local [...], mas essa cultura da cidade é ponto de interseção de múltiplas tradições nacionais – as dos migrantes reunidos em qualquer metrópole – que por sua vez são reorganizadas pelo fluxo transnacional de bens e mensagens.” (Canclini, 2001, p.60)

Por apresentar um caráter multidisciplinar, atualmente, os Estudos Culturais podem ser utilizados como marco teórico para refletir o papel dos meios de comunicação na construção das identidades culturais de vários grupos sociais, que cada vez mais se diversificam e se fragmentam. Sob a ótica dos Estudos Cultuirais, analisaremos os conceitos, de multiculralismo, identidade pós-colonial, minorias sociais e subalternidade presentes na narrativa fílmica de Terra Estrangeira, de Walter Sales e Daniela Thomas.

2. A Narrativa Fílmica de “Terra Estrangeira” e a Relação com os Estudos Culturais

Terra Estrangeira (1995), filme dos diretores Walter Salles e Daniela Thomas, conta a história de brasileiros que na época do governo Collor fazem o caminho inverso dos colonizadores e migram para Portugal na busca por uma vida melhor. Lá chegando, ao invés de encontrarem prosperidade, se deparam com o exílio, a subalternidade e a solidão. Em uma terra desconhecida perdem seus sonhos e ilusões. Sem esperança e desolados, os personagens não reconhecem sua identidade cultural. Mesmo compartilhando alguns símbolos com os brasileiros (idioma), Portugal torna-se para eles uma terra hostil e nada familiar. Os personagens passam a viver como não-pessoas em um não-lugar, se refugiando em quimeras ligadas ao retorno a sua pátria. Nas palavras de um dos personagens do filme, em Portugal, eles encontram um “lugar ideal para perder alguém ou para perder-se de si próprio”.
O filme se passa na década de 90, e narra paralelamente duas histórias: a do jovem estudante universitário Paco, que mora com sua mãe, uma espanhola que ainda pequena veio morar no Brasil e sonha voltar para sua terra (San Sebastian - Espanha), e a da garçonete brasileira Alex, que junto com o namorado Miguel, um músico envolvido com o contrabando e viciado em heroína, foram morar em Portugal na ilusão de alcançar prosperidade financeira. Durante a narrativa fílmica, as histórias desses dois brasileiros se cruzam dando início a um complicado romance. No desenrolar do enredo fica claro que a decisão de deixar seu país e ir morar em uma terra estrangeira modifica substancialmente a vida dos personagens.
Ao longo do roteiro de Terra Estrangeira pode-se notar a presença de conceitos que se com os relacionam Estudos Culturais. Fica perceptível o discurso pós-colonialista à medida que a relação Brasil-Portugal, ou seja, metrópole-colônia é construída e desconstruída no decorrer do filme. Num processo de tradução cultural, as demarcações que separam o hegemônico e o subalterno do sistema colonial cedem espaço para um transculturalismo, no qual as diferentes culturas do centro e da periferia se reorganizam e moldam umas as outras.
Outra relação perceptível no enredo é a presença de diferentes povos e costumes convivendo juntos em uma mesma sociedade. Em uma Portugal multicultural, envolta na contemporaneidade e na globalização, portugueses, brasileiros, angolanos e espanhóis tentam sobreviver na subalternidade e à margem da lei. A imagem preto e branco do filme reforça ainda mais essa noção de ilegalidade transmitida pela narrativa fílmica e absorvida pelos personagens.
Terra Estrangeira é um filme realista, rodado alguns anos após o governo Collor, pois revela situações vividas pelos brasileiros que desacreditados no novo plano econômico do governo e sem perspectivas no Brasil, buscaram no estrangeiro alternativas para driblar a crise financeira que assolava o país.
A narrativa do filme é marcada pelo constante deslocamento dos personagens pelas ruelas lusas, reforçando a presença das minorias sociais esquecidas pelo centro hegemônico. Nas palavras do diretor, o público ao ver este longa-metragem percebe que se trata de um “um filme de observação social”, pois sua narrativa foi construída a partir da análise do cotidiano suburbano de Portugal. A presença dos negros africanos no enredo torna visível uma imagem lusa desconhecida por muitos: uma terra que antes colonizava, agora serve de “colônia” para este refluxo de povos esquecidos e invisíveis aos olhos dos cineastas portugueses. Na tentativa de dar voz a esta minoria, Walter Salles e Daniele Thomas aliam-se (sem intenção?) aos Estudos do Subalterno, ao utilizarem um instrumento de conscientização hegemônico, o cinema, para mostrar a autonomia e a participação deste povo na formação da cultura e sociedade portuguesa.

3. Elementos de Composição de “Terra Estrangeira”

Os elementos de composição são partes fundamentais do enredo de Terra Estrangeira, completando os significados dos diálogos e em alguns momentos passando a desempenhar papel de protagonista da história. Com roteiro linear, explorando os planos abertos, o diretor demonstra a desesperança e a permanente situação de fuga dos personagens. Numa cena à beira da praia, Alex e Paco parecem estar sozinhos e perdidos diante da imensidão do oceano atlântico. Na fala de Alex fica claro que a idéia de estar no fim da Europa reverbera na idéia de estar no começo do nada:
“-Você não tem idéia de onde você está, não é? Isso aqui é a ponta da Europa. Isso aqui ó... é o fim.”
A estética do filme oscila entre o documentário, o roadmovie, e o estilo noir - marcadamente por sua fotografia preto e branco - o que possibilita maior leveza na narração, porém sem tirar sua marca do real. Além da escolha pelo preto e branco, outro aspecto que ajuda a demarcar melhor o contexto no qual o filme está inserido, no caso a época do plano Collor, foi o uso de imagens reais do anuncio do confisco das cadernetas de poupança.
A fotografia do filme e suas locações estão intimamente relacionadas com os sentimentos dos personagens, tornando-se um elemento essencial na construção e no desenrolar da história. A cena em que Alex e Paco se encontram em uma praia deserta e observam um navio estrangeiro encalhado funciona na narrativa como uma metáfora à solidão migrante condenada a encarar o peso de uma terra estrangeira. Esta imagem ganha sentido quando o carro dos dois cruza a fronteira Portugal/Espanha, e Alex com Paco quase morrendo em seu colo diz a ele que fica tranqüilo pois ela está levando-o para casa, no caso a pátria de sua mãe, Manoela.
O figurino dos personagens, sobretudo o de Paco quando está em Portugal, são desleixados, dando a impressão que suas roupas não são suas. Segundo a diretora, Daniela Thomas, os trajes de Paco ajudam a enfatizar o lado desconcertante de um estrangeiro em Portugal. É como se suas vestimentas não lhe pertencessem, assim como aquele lugar. A moda dos personagens é o sentimento de estranheza, de exílio e desconforto numa terra que se mostra hostil.
Outro elemento que acrescenta maior poeticidade ao filme é sua trilha sonora, que elaborada por José Miguel Wisnick tem seu grande destaque na música Vapor Barato, de José Macalé. A música permeia toda a história, fazendo uma relação entre a geração dos anos 70, que lutou contra o exílio, e a geração dos anos 90, que sem esperança de viver no Brasil, vai buscar exílio em Portugal, finalizando-a metaforicamente com a imagem de Alex cantando-a para Paco, quase morrendo em seu colo, simbolizando que para os dois a esperança que resta é o amor. A canção de Mascalé foi incluída no filme por acaso. Fernanda Torres, atriz que interpreta Alex, estava cantando esta música antes de gravar e Walter Salles percebeu que através da letra de Vapor Barato era possível compreender os principais sentimentos dos personagens de Terra Estrangeira: perda, exílio, desterro e solidão. Por conta disso, o final do longa foi reescrito. Na voz de Gal Costa, sua última cena ganhou um ar poético e antológico: a estrada pode levar Alex e Paco para o fim ou para o lugar desejado.


4. Personagens do Filme e sues Sonhos Estrangeiros

Os personagens de Terra Estrangeira não seguem uma escala rígida de importância. Apesar de a narrativa girar em torno de Paco e Alex, os demais personagens contribuem substancialmente para a sistemática do filme. Movidos pela subalternidade de Portugal, africanos (Cabo Verde e Angola), brasileiros e portugueses compartilham o mesmo idioma, mas na maioria das vezes que interagem, seja entre si ou com outros grupos, se embatem na tensão colonial: eu (português) X o outro (imigrante). Nesse aspecto, o título do filme já é um indicador da intenção do diretor de explorar tal situação. Nas palavras da pesquisadora Janaina Freire,

“...Esta tensão não perpassa apenas as relações entre portugueses e africanos. As personagens brasileiras trafegam acuadas pelas velhas ruas de Lisboa, esgueiram-se por vielas, equilibram-se em subempregos, enfrentam o ressentimento de uma inadequação que lhes serve de constante companhia. Em nada diferem, nesse sentido, dos angolanos ou dos caboverdianos, especialmente em suas condições de ex-colonizados e, agora, de exilados...” (FREIRE, 2004)

Durante a narrativa de Terra Estrangeira, os personagens compartilham o sentimento de não pertencerem a lugar nenhum. Nesse contexto, característico da modernidade, as identidades e nacionalidades são perdidas pelo multiculturalismo contemporâneo. Este anseio invade a subjetividade dos personagens que pode ser exemplificado numa conversa de Alex com seu namorado Miguel, sobre seu desejo de voltar a sua terra para poder “se achar novamente”, na qual ela diz: “o problema não é o lugar não... é que quanto mais o tempo passa mais eu me sinto estrangeira”.
Os personagens do filme alimentam sonhos ligados a sua terra natal, que no decorrer da narrativa são dilacerados, numa espécie de catarse, pelo fatalismo da morte e pela obscuridade das relações subalternas da periferia lusa. No filme, as atitudes dos personagens estão alicerçadas na tentativa incessante pela busca da realizarem de seus sonhos. Nessa perspectiva pouco importa a via para que isso seja alçado.

A tabela da página a seguir resume os sonhos dos principais personagens:









PERSONAGEM
CARACTERÍSTICA INICIAL
SONHO
CATARSE
Manoela
Costureira residente no Brasil
Voltar para sua cidade natal San Sebastian, na Espanha.
Morre de um enfarte do Brasil, na era Collor
Paco
Filho de Manoela, é estudante universitário da área de exatas
Ser um ator e após a morte da mãe, deseja conhecer San Sebastian
Morre a caminho de San Sabastian
Alex
Imigrante ilegal brasileira que trabalha como garçonete
Voltar para o Brasil
Continua longe de seu país, sem destino e sem identidade. Continua sendo uma estrangeira
Miguel
Músico envolvido com contrabando
Ser um músico famoso e enriquecer
É assassinado por um membro do contrabando internacional
Pedro
Possui loja de livros de música em Lisboa
É apaixonado por Alex.
Morre na sua loja de música para proteger Alex


Através dos personagens africanos também é possível explorar a temática pós-colonial do filme. Na cena em que o português e traficante Igor se dirige aos africanos indagando sobre o paradeiro de Paco fica visível o entrelace metrópole-colônia pretendido por Igor. No entanto, ao ameaçar denunciar os negros à deportação, os africanos reagem com desdém e afirmam que estão vivem legalmente me Portugal. E interessante observar nessa cena, o “pretoguês” falado pelos guetos africanos em Portugal.















5. Conclusão

Terra Estrangeira é um exemplo da realidade subalterna pós-colonial contemporânea. A interação entre os personagens, as locações, a trilha sonora e a fotografia do filme denotam o multicuralismo e as tensões sócio-culturais da periferia lusa. A película, mesmo desprentesiosa, é um excelente objeto de estudo os Estudos Culturais por concatenar vários elementos abordados por essa linha de pesquisa: subalternidade, identidade pós-colonial, minorias sociais e multicuralismo.
Tomando como pano de fundo o colapso econômico vivido na era Collor, Terra Estrangeira torna evidente a mentalidade, as dúvidas e os dilemas contemporâneos. As agruras vividas pelos personagens evidenciam o sentimento de exílio, solidão e austeridade que marcam a narrativa do filme.
Segundo Daniela Thomas, uma das diretoras, o filme foi feito por quem viveu no Terra Estrangeira sua primeira viagem na terra do cinema, já que muitos de seus colaboradores eram na época estreantes no formato longa metragem - Luis Fernando Pinto (Paco), José Miguel Wisnick (Trilha Sonora) e a própria Daniela Thomas.

















6. Referências Bibliográficas

· CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e Cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: UFJ, 2001.

· ESCOTEGUY, Ana Carolina. Cartografias dos Estudos Culturais: uma visão latino-americana. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

· FREIRE, Janaína Cordeiro. Identidade e exílio em Terra Estrangeira, 2004. Tese (Mestrado) – Programa de Pós Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco.

· HALL, Stuart. "A questão multicultural" in Da diáspora: identidade e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003. p. 51-100

· HALL, Stuart. "Quando foi o pós-colonial" in Da diáspora: identidade e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003. p. 51-100

· JAMESON, Frederic. Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2002.

· MATTELART, Armand; NEVEU, Érik. Introdução aos Estudos Culturais. São Paulo: Parábola, 2004.

· PAIVA, Raquel e BARBALHO, Alexandre (orgs.). Comunicação e cultura das minorias. São Paulo: Paulus, 2005.

· TERRA estrangeira. Direção de Daniela Thomas e Walter Salles. Brasil: 1995. DVD

Um comentário:

J. W. disse...

Parabéns pelo trabalho!
Bacana ver que a reflexão sobre o Terra não se esgota. Eu já desconfiava...
Abs,
Janaina Freire