quarta-feira, 26 de setembro de 2018

"Blonde", por Lúcio Souza





Praticamente toda a arte nasce das experiências do artista, mas Blonde (2016), do californiano Frank Ocean, traz a bagagem de vida do cantor quase que de forma palpável. Embora nascido na costa oeste, Ocean, aos cinco anos de idade, se mudou com a família para a cidade de Nova Orleans, no sul dos Estados Unidos, um local marcado pelas culturas europeias, latino-americanas e, principalmente, afro-americanas, além de ser conhecida como um dos berços e principais polos do Jazz e do Rythm and Blues (R&B). É nesse ambiente de uma negritude tão presente na cultura que Frank é criado.

De origem humilde, ele passou parte de sua juventude trabalhando, fazendo “bicos” para os vizinhos, tudo para custear alguns instantes dentro de um estúdio. Entretanto, com a passagem do furacão Katrina em 2005, os estúdios de sua cidade foram destruídos, levando-o a ter de se mudar temporariamente para Los Angeles a fim de concluir seu trabalho, e é nesse meio-tempo que Ocean faz contatos, dentre eles Tyler, the creator e seu grupo de hip-hop alternativo OFWGKTA.

Blonde (Boys Don’t Cry) é o seu segundo álbum de estúdio com 17 faixas que versam sobre negritude, desigualdades sociais e também sobre desilusões amorosas.

Ocean abre o álbum com Nikes, cantando com a voz distorcida e uma base de R&B sobre ganância. A faixa começa com uma crítica social falando da ganância em relação ao dinheiro, para num momento posterior falar sobre drogas e, por fim, sobre o valor que o próprio Frank teria para a pessoa para a qual ele está se declarando.

O último refrão de Nikes termina com os seguintes dizeres:
I'll mean something to you
You got a roommate he'll hear what we do
It's only awkward if you're fucking him too”

Esse trecho se conecta com a faixa seguinte, Ivy, para falar da traição sofrida pelo cantor, que assumiu em 2012, por meio de uma carta aberta no seu tumblr, que seu primeiro amor e decepção amorosa foi com um homem. No documento, o cantor ainda agradeceu o responsável por partir o seu coração, pois isso deu material para produzir tais músicas.

Em “Ivy”, ele começa falando que parecia estar sonhando quando conheceu e se apaixonou por um determinado alguém. Essa sensação de estar sonhando pode ser interpretada como a ilusão de Ocean em não perceber que estava sendo traído. Apesar da traição, a música deixa a entender que ainda há algum sentimento de afeto pelo traidor. Esse resquício de amor é demonstrado em Pink+white, uma canção inteira sobre saudade, sobre a experiências com esse alguém de quem está a se afastar.

Essa primeira sequência de músicas é dotada de uma certa narrativa sobre amor, traição e desilusão, mas não somente isso. Frank Ocean fala de uma relação homoafetiva, ele abre um espaço importantíssimo para a comunidade LGBTQ no meio hip-hop, um ambiente que é tão fortemente atravessado pelo machismo.

Be Yourself, a canção de número 4, abre um novo bloco na narrativa do disco. Ela versa, muito provavelmente, sobre o breve período do cantor na faculdade. A faixa é somente uma ligação de telefone da mãe do eu lírico falando sobre ser você mesmo e sobre vício em drogas, exceto pelas que tenham sido passadas por recomendação médica. Be Yourself é sobre aceitação de si mesmo e sobre como estamos sempre performando de diferentes maneiras em meios sociais distintos a fim de nos sentirmos incluídos.

Logo em seguida, também falando sobre drogas, vem Solo, uma das músicas mais importantes do álbum. Ela também fala de solidão e talvez da tentativa do eu lírico de preencher o vazio deixado após sofrer a traição com drogas. Há uma dualidade na palavra “solo”, que muitas vezes na música e pronunciada quase que como “so low”, que podemos traduzir como sóbrio, daí pode se pensar que Ocean está a todo momento tentando se manter “alto” (drogado) para compensar a solidão.

Após toda a intensidade de Solo, vem Skyline To, uma canção subestimada que muitos dizem ser parada e chata. Mas a faixa é justamente sobre a passagem do tempo. As primeiras linhas deixam claro que eu lírico ainda lida com as dores da traição passada. Essa faixa está posicionada justamente entre as duas mais importantes de todo o álbum e serve de conexão entre elas.

Por que logo depois vem Self Control, o momento mais importante do álbum junto com Solo. A canção é um grande lamento pelo término de um ou mais relacionamentos, não se sabe precisar a quem Ocean está se referindo, mas uma coisa é certa, Frank aqui está perdendo seu autocontrole e implora para ainda ter um espaço no coração da pessoa amada. Este também é um dos momentos em que podemos testemunhar a potência vocal do cantor, que muitas vezes é mascarada pelo constante uso de sintetizadores e efeitos de voz.

Good Guy, 8° faixa, abre a questão da homossexualidade de Frank num meio tão marcado por estereótipos de masculinidade como o hip-hop. A canção começa falando de um encontro cego num bar gay, no qual o eu lírico se decepciona, já que eu seu par não se parece nada com o que ele aparentava ser através de mensagens. Ele esperava, ao mesmo tempo, encontrar um novo amor, mas seu parceiro está somente em busca de uma noite de sexo. E aí a canção muda para um diálogo entre o eu lírico e um amigo falando sobre se relacionarem com mulheres. Enquanto esse amigo hétero se mostra frustrado por ter o coração quebrado pelas mulheres, o eu lírico fala, após um longo período de pausa em desconforto, “Sim, eu não tenho mais vadias”.

Nights é a faixa que marca exatamente o meio do álbum. Com 5:07 minutos de duração, a faixa, que começa falando sobre a tristeza e fracassos do dia a dia, muda completamente de ritmo aos 3:30, o exato momento em que o álbum chega aos seus 30 minutos. Entrando, aqui, num clima mais melancólico.

Solo (reprise), é faixa de número dez e a primeira após a virada dos 30 minutos em Nights. A canção também fala de sobriedade, tal qual sua contrapartida no início do álbum, mas desta vez se trata de um rap agressivo, um torrente de palavras despejando toda a raiva acumulada ao longo de todo esse período de melancolia.

E então vem Pretty Sweet, também com um rap agressivo, desta vez falando sobre autodestruição e com algumas referências religiosas (“This is the blood, the body, the life right now”). A canção é talvez a revolta do cantor em ter passado tanto tempo do armário. A música é uma cacofonia paranoica e agressiva, é um grande conflito de ideias, é um apelo por aceitação (To the fathers of the Earth be kind). Em discussões no Reddit alguns apontam que toda essa paranoia é causada pelo uso de drogas, que, ao invés de trazerem um estado de torpor, intensificam a tempestade de sentimentos. A música se encerra em um momento de calma, com um coro de crianças

Em 12° vem Facebook Story, uma canção que talvez conte como Frank descobriu ter sido traído. Esse é mais um diálogo na voz de outra pessoa, dessa vez falando de uma garota que disse estar sendo traída por não ter sido aceita no Facebook pelo seu amado, ao passo que este alega que está com ela pessoalmente todos os dias.Close To You é uma das faixas mais curtas e talvez a que menos teve significância para mim. A letra aparente falar dos vestígios que ainda mantém o eu lírico preso ao seu amor passado

A última parte do álbum é a mais confusa de toda a obra. White Ferrari, Siegfried e Godspeed giram em torno da aceitação do término do relacionamento.White Ferrari é sobre a percepção de como o relacionamento foi morrendo, e de como Ocean pensava que manter a relação em seus princípios primários (sexo), poderia sustentá-la. Ao mesmo tempo em que a relação está presa num mesmo nível, sem progressão, e o parceiro dele enfrenta uma insegurança que o impede se entregar.

Siegfried é o encontro com esse amor que se foi e que agora está vivendo uma nova vida. Frank se questiona logo de início se deveria enveredar numa vida mais pacata, constituir família. Para depois vir numa das últimas estrofes afirmando seu estilo de vida e se negando a mudar:

Spin this flammable paper on the film's that my life
High flights, inhale the vapor, exhale once and think twice
Eat some shrooms, maybe have a good cry, about you
See some colors, light hangglide off the moon

Godspeed é um complemento dessa aceitação. Ocean, aqui, deixa seu amor ir, mas também fala que sempre vai amar este alguém.

I let go of my claim on you, it's a free world
You look down on where you came from sometimes
But you'll have this place to call home, always

Futura Free, com pouco mais de 9 minutos encerra o álbum. A faixa compila tudo que foi dito ao longo do álbum. Fala de seu sucesso enquanto artista, se refere à mãe e também ao amor que se foi. Mas, devido a sua extensão, a canção mais difícil de toda a obra, é difícil perceber todas as camadas colocadas por Ocean.

Com 17 faixas o álbum é um tanto difícil de ser consumido, é preciso tempo para digeri-lo, principalmente por causa do uso excessivo de sintetização e efeitos na voz, o que pode, em alguns momentos, ser irritante, e até mesmo monótono. Blonde é um álbum difícil, mas isso é uma de suas melhores qualidades. Frank Ocean traz inúmeras referências artísticas, históricas e culturais em suas músicas, falando com maestria de questões ligadas à família, sexualidade, abuso de drogas e o fim de um amor. É uma obra para ser ouvida com carinho e paciência, da mesma maneira que se constrói uma relação amorosa.

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