Quando se assiste a “Faça a Coisa Certa”, de 1989, do Spike Lee, é impossível não sair do filme um pouco mais racista, a princípio; mas depois de pensar um pouco – porque sim, eu penso, às vezes, sobre os filmes a que assisto – a gente vê que o erro não é dos negros. O erro não é de uma raça ou de um grupo etnicamente homogêneo. Há negros bons e negros maus, brancos bons e brancos maus, coreanos bons e, bem, todos os coreanos são bons, o que responde ao fato de serem também bem sucedidos. Mau mesmo é o Spike Lee.
É difícil falar de como as minorias são representadas nesse filme que tão bem separa as pessoas pelo caráter, antes de separar por outro grupo qualquer. O Bairro é o Brooklin, e todo o contexto do filme é o contexto do bairro. Lá, naturalmente há milhares de negros. E os negros chamam aquele de seu bairro; eles são os donos ali, eles têm o poder, eles são hegemônicos. O “prefeito” do bairro é negro, o radialista é negro, e nomes de negros famosos são enumerados como algum mantra, como se a luta ou fama deles justificasse algo hoje. Por serem maioria, os vilões do filme são negros, que lutam por causas bastante imbecis, como forçar Sal, o dono de uma pizzaria, a colocar fotos de negros na “parede da fama”, em que só ítalo-americanos estavam representados, por vontade do dono, ítalo-americano. Um negro que não tinha mais o que fazer interpreta o nacionalismo de Sal como racismo e planeja um boicote à pizzaria – algo a que tem direito, ok, não o questiono, todos podem ser imbecis como quiserem –, mas acaba fazendo muito mais que isso, porque é canalha. Um canalha que seria igualmente canalha se fosse branco ou de qualquer nacionalidade, menos coreano, porque os coreanos são bondosos. Todos os dois.
As minorias, no micro-cosmos do filme (e me sinto um retardado usando “micro-cosmos” em um texto, mas parece melhor que “no universo do filme” ou algo do gênero. Céus, como é difícil manter o estilo! [Desculpem pelo grito, não se repetirá]), acabam sendo os trabalhadores, os honestos, os decentes, que ininterruptamente são abordados pelos maus, a maioria, com poder consolidado no bairro, e obrigados a fazer algo de que não gostam ou que não querem. Quando a maioria, má, encontra resistência na minoria, boa, a vingança é bruta, e só pode ser contida por uma maioria ainda maior – uma das poucas vezes em que um elemento externo ao bairro entra no filme –, representada pela polícia.
Parece que o pensamento de minoria em relação ao ambiente mais amplo (a cidade ou o país) traumatizou o grupo de negros do mal, que por isso se mantém, mesmo no ambiente em que eles são obviamente maioria e detêm todo o poder, na defensiva contra todos, por menores que sejam – até contra os pobres coreanos, coitados, que só querem trabalhar honestamente, e sofrem preconceitos raciais dos black-nigga-dark-skinned-badass malvadões: “aprende a falar inglês, motherfucker!!!”, grita o negão do rádio quando vai comprar pilhas, com cada uma das três interrogações recheada de ódio e trauma, e depois obriga a coreana gentil a recontar o número de pilhas que ele está comprando – 20! – e ver a validade delas, mui grosseiramente.
Subverte-se (e eis-me aqui chateado novamente com a escolha de palavras que tomo neste dia de pouca inspiração) o sentido de minoria no filme: dos grupos organizados e explorados, a minoria se torna indivíduo, dupla ou trio, que, apesar de possivelmente bem representados em nível nacional, não têm participação ou representação local. O filme parece levar a cabo a interpretação de minorias, ao último dos patamares, que exclui do critério minoritário os grupos organizados e entra pelo ambiente individual, e de como um indivíduo, por mais que tenha sua classe bem representada em todos os aspectos, pode não ser representado de forma alguma, porque as classes, as raças, as etnias são rótulos demasiado abrangentes em que as pessoas são inclusas, às vezes precipitadamente, de forma a se unirem contra um “inimigo comum”, que pode estar em qualquer lugar – é preciso estar sempre alerta –, como se fosse impossível que todos ganhassem, e como se as pessoas fossem obrigadas a defender os valores arbitrários impressos nesses rótulos – caso contrário um nigga não é mais um nigga, ele não consegue “stay black”, e se torna algo menos que um filho da puta (sem desculpas pela palavra. Quem vê esse filme sai contaminado pelos palavrões e, como quem gripa precisa espirrar, é preciso pôr fora essas más palavras antes que se tornem crônicas ou pneumônicas. Alguém tem um lenço?).
Essa individualização da minoria parece ser a principal contribuição do filme, pois rompe a idéia de grupo organizado, mostra matizes diferentes dentro do grupo, e individualiza os indivíduos, se me é permito falar assim, em um ambiente em que o pensamento de classe oprime mais que as próprias hegemonias, e se torna hegemônico, regendo as relações interpessoais. O filme mostra o fim a que levam os movimentos minoritários quando orquestrados por pessoas demasiado cegas pela própria opressão que sofrem. Além disso, o filme mostra bondade e maldade, superioridade e inferioridade, gentileza e brutalidade, em todo tipo de gente. Italiano bom, italiano nigga, italiano racista, nigga simpática, nigga violento, nigga pacifista. Por um momento parece que Spike Lee quis quebrar com o conceito mais imbecil que Marx legou, o da luta de classes; o de que pra que se ganhe alguém perde.
Mas naturalmente estou sendo bondoso com o filme, que não tem a intenção de dizer nada disso. Antes, o filme quer ser o contrário disso. Como é mostrada, a destruição da pizzaria parece algo decente, parece algo que tinha que ser feito, mesmo que o dono da pizzaria em nada contribuísse para a continuidade dos negros como minoria – Sal só estava fazendo o trabalho dele, sem atrapalhar ninguém. Spike Lee parece indecente querendo transformar brutalidade em legítima defesa, e só se percebe esse aspecto de legítima defesa quando se vê a – bonita, correta, damn right – frase de Malcolm X, que diz que violência em legítima defesa não é violência, é inteligência. Aquilo só não se aplica ao filme.
Faz-se necessário um breve spoil, então não leia os dois parágrafos que seguem se você quiser ver esse – péssimo – filme, que não recomendo, e recomendo que leia o resto da resenha, que tem muita opinião cheia de wit ‘n wisdom: O rapaz do rádio, que se chama Radio, se negava a abaixar o volume do som com que andava por aí, como retardado, mesmo dentro da pizzaria de Sal. Sal o expulsa da pizzaria por causa do som, mas ele não sai. Então Sal do the right thing, justificando o título na hora errada, acabando com aquela música do Public Enemy ao quebrar o rádio com um taco de beisebol – nada mais americano, hã? Acontece que Radio se irrita muito e tenta matar Sal. É isso. Ele tenta matar um homem por causa de um rádio. E não quer ser chamado de delinqüente. Como os negros são maus, não separam a briga – alguns, não tão maus, tentam separar, mas são poucos e não se esforçam muito –, sendo necessário que a polícia chegue e pum!, tire Radio, pelo pescoço, do pescoço de Sal. O trabalho policial é eficiente demais, e Radio acaba morrendo por resistir à prisão, estrangulado pelo cassetete do policial malvado. No cômputo geral, foi a vida de um pretenso homicida pela de um italiano trabalhador, a fair trade, ‘f may say.
Como a polícia matou Radio, e os policiais são white people, os negros decidem, em comportamento de manada, que o certo a se fazer é destruir a pizzaria do white man, Sal. Na verdade, o próprio Spike Lee, como Mookie, entregador nigga da pizzaria de Sal, tratado como filho por ele, decide isso, e começa por quebrar a vidraça. Depois a manada acaba com tudo, incendeia, atrapalha os bombeiros, uma confusão só. E é pra enxergarmos isso como the proper thing to do que Spike Lee fez o filme, até porque a quebra do rádio se encaixaria no título “Don’t do the right thing, they’ll kill ya for doin’ that”. A coisa certa é a violência sem sentido. Foi pra apoiarmos essa violência que o filme foi feito. A manada tenta destruir os coreanos bondosos também, mas alguém intervém e impede – inclusive porque os coreanos diziam ser niggas como os niggas themselves, e céus, como estavam longe disso!
A conclusão desta resenha, que vem anunciada como em uma redação de estudante secundarista, não poderia ser diferente, e imagino que todas as resenhas sobre esse filme terminem assim. No meu mundo ideal elas terminam todas assim, pelo menos, porque qualquer outra conclusão é inválida: Spike Lee parece odiar mais os negros do que seus personagens racistas, e parece confundir valores éticos com sentimentos de classe, e parece não saber construir um roteiro de qualidade, e parece ser incapaz de falar de racismo de um ângulo realmente importante, parece desejar, mais que acabar com qualquer hegemonia, construir uma hegemonia negra, a vingança do black people ao invés da igualdade racial. E isso é triste. Mais triste que a morte de Radio, porque, mais que uma pessoa, é a morte de um caráter.
É difícil falar de como as minorias são representadas nesse filme que tão bem separa as pessoas pelo caráter, antes de separar por outro grupo qualquer. O Bairro é o Brooklin, e todo o contexto do filme é o contexto do bairro. Lá, naturalmente há milhares de negros. E os negros chamam aquele de seu bairro; eles são os donos ali, eles têm o poder, eles são hegemônicos. O “prefeito” do bairro é negro, o radialista é negro, e nomes de negros famosos são enumerados como algum mantra, como se a luta ou fama deles justificasse algo hoje. Por serem maioria, os vilões do filme são negros, que lutam por causas bastante imbecis, como forçar Sal, o dono de uma pizzaria, a colocar fotos de negros na “parede da fama”, em que só ítalo-americanos estavam representados, por vontade do dono, ítalo-americano. Um negro que não tinha mais o que fazer interpreta o nacionalismo de Sal como racismo e planeja um boicote à pizzaria – algo a que tem direito, ok, não o questiono, todos podem ser imbecis como quiserem –, mas acaba fazendo muito mais que isso, porque é canalha. Um canalha que seria igualmente canalha se fosse branco ou de qualquer nacionalidade, menos coreano, porque os coreanos são bondosos. Todos os dois.
As minorias, no micro-cosmos do filme (e me sinto um retardado usando “micro-cosmos” em um texto, mas parece melhor que “no universo do filme” ou algo do gênero. Céus, como é difícil manter o estilo! [Desculpem pelo grito, não se repetirá]), acabam sendo os trabalhadores, os honestos, os decentes, que ininterruptamente são abordados pelos maus, a maioria, com poder consolidado no bairro, e obrigados a fazer algo de que não gostam ou que não querem. Quando a maioria, má, encontra resistência na minoria, boa, a vingança é bruta, e só pode ser contida por uma maioria ainda maior – uma das poucas vezes em que um elemento externo ao bairro entra no filme –, representada pela polícia.
Parece que o pensamento de minoria em relação ao ambiente mais amplo (a cidade ou o país) traumatizou o grupo de negros do mal, que por isso se mantém, mesmo no ambiente em que eles são obviamente maioria e detêm todo o poder, na defensiva contra todos, por menores que sejam – até contra os pobres coreanos, coitados, que só querem trabalhar honestamente, e sofrem preconceitos raciais dos black-nigga-dark-skinned-badass malvadões: “aprende a falar inglês, motherfucker!!!”, grita o negão do rádio quando vai comprar pilhas, com cada uma das três interrogações recheada de ódio e trauma, e depois obriga a coreana gentil a recontar o número de pilhas que ele está comprando – 20! – e ver a validade delas, mui grosseiramente.
Subverte-se (e eis-me aqui chateado novamente com a escolha de palavras que tomo neste dia de pouca inspiração) o sentido de minoria no filme: dos grupos organizados e explorados, a minoria se torna indivíduo, dupla ou trio, que, apesar de possivelmente bem representados em nível nacional, não têm participação ou representação local. O filme parece levar a cabo a interpretação de minorias, ao último dos patamares, que exclui do critério minoritário os grupos organizados e entra pelo ambiente individual, e de como um indivíduo, por mais que tenha sua classe bem representada em todos os aspectos, pode não ser representado de forma alguma, porque as classes, as raças, as etnias são rótulos demasiado abrangentes em que as pessoas são inclusas, às vezes precipitadamente, de forma a se unirem contra um “inimigo comum”, que pode estar em qualquer lugar – é preciso estar sempre alerta –, como se fosse impossível que todos ganhassem, e como se as pessoas fossem obrigadas a defender os valores arbitrários impressos nesses rótulos – caso contrário um nigga não é mais um nigga, ele não consegue “stay black”, e se torna algo menos que um filho da puta (sem desculpas pela palavra. Quem vê esse filme sai contaminado pelos palavrões e, como quem gripa precisa espirrar, é preciso pôr fora essas más palavras antes que se tornem crônicas ou pneumônicas. Alguém tem um lenço?).
Essa individualização da minoria parece ser a principal contribuição do filme, pois rompe a idéia de grupo organizado, mostra matizes diferentes dentro do grupo, e individualiza os indivíduos, se me é permito falar assim, em um ambiente em que o pensamento de classe oprime mais que as próprias hegemonias, e se torna hegemônico, regendo as relações interpessoais. O filme mostra o fim a que levam os movimentos minoritários quando orquestrados por pessoas demasiado cegas pela própria opressão que sofrem. Além disso, o filme mostra bondade e maldade, superioridade e inferioridade, gentileza e brutalidade, em todo tipo de gente. Italiano bom, italiano nigga, italiano racista, nigga simpática, nigga violento, nigga pacifista. Por um momento parece que Spike Lee quis quebrar com o conceito mais imbecil que Marx legou, o da luta de classes; o de que pra que se ganhe alguém perde.
Mas naturalmente estou sendo bondoso com o filme, que não tem a intenção de dizer nada disso. Antes, o filme quer ser o contrário disso. Como é mostrada, a destruição da pizzaria parece algo decente, parece algo que tinha que ser feito, mesmo que o dono da pizzaria em nada contribuísse para a continuidade dos negros como minoria – Sal só estava fazendo o trabalho dele, sem atrapalhar ninguém. Spike Lee parece indecente querendo transformar brutalidade em legítima defesa, e só se percebe esse aspecto de legítima defesa quando se vê a – bonita, correta, damn right – frase de Malcolm X, que diz que violência em legítima defesa não é violência, é inteligência. Aquilo só não se aplica ao filme.
Faz-se necessário um breve spoil, então não leia os dois parágrafos que seguem se você quiser ver esse – péssimo – filme, que não recomendo, e recomendo que leia o resto da resenha, que tem muita opinião cheia de wit ‘n wisdom: O rapaz do rádio, que se chama Radio, se negava a abaixar o volume do som com que andava por aí, como retardado, mesmo dentro da pizzaria de Sal. Sal o expulsa da pizzaria por causa do som, mas ele não sai. Então Sal do the right thing, justificando o título na hora errada, acabando com aquela música do Public Enemy ao quebrar o rádio com um taco de beisebol – nada mais americano, hã? Acontece que Radio se irrita muito e tenta matar Sal. É isso. Ele tenta matar um homem por causa de um rádio. E não quer ser chamado de delinqüente. Como os negros são maus, não separam a briga – alguns, não tão maus, tentam separar, mas são poucos e não se esforçam muito –, sendo necessário que a polícia chegue e pum!, tire Radio, pelo pescoço, do pescoço de Sal. O trabalho policial é eficiente demais, e Radio acaba morrendo por resistir à prisão, estrangulado pelo cassetete do policial malvado. No cômputo geral, foi a vida de um pretenso homicida pela de um italiano trabalhador, a fair trade, ‘f may say.
Como a polícia matou Radio, e os policiais são white people, os negros decidem, em comportamento de manada, que o certo a se fazer é destruir a pizzaria do white man, Sal. Na verdade, o próprio Spike Lee, como Mookie, entregador nigga da pizzaria de Sal, tratado como filho por ele, decide isso, e começa por quebrar a vidraça. Depois a manada acaba com tudo, incendeia, atrapalha os bombeiros, uma confusão só. E é pra enxergarmos isso como the proper thing to do que Spike Lee fez o filme, até porque a quebra do rádio se encaixaria no título “Don’t do the right thing, they’ll kill ya for doin’ that”. A coisa certa é a violência sem sentido. Foi pra apoiarmos essa violência que o filme foi feito. A manada tenta destruir os coreanos bondosos também, mas alguém intervém e impede – inclusive porque os coreanos diziam ser niggas como os niggas themselves, e céus, como estavam longe disso!
A conclusão desta resenha, que vem anunciada como em uma redação de estudante secundarista, não poderia ser diferente, e imagino que todas as resenhas sobre esse filme terminem assim. No meu mundo ideal elas terminam todas assim, pelo menos, porque qualquer outra conclusão é inválida: Spike Lee parece odiar mais os negros do que seus personagens racistas, e parece confundir valores éticos com sentimentos de classe, e parece não saber construir um roteiro de qualidade, e parece ser incapaz de falar de racismo de um ângulo realmente importante, parece desejar, mais que acabar com qualquer hegemonia, construir uma hegemonia negra, a vingança do black people ao invés da igualdade racial. E isso é triste. Mais triste que a morte de Radio, porque, mais que uma pessoa, é a morte de um caráter.
2 comentários:
Que merda ein cara! Ser cego seria uma grande vantagem pra vc, ja que não sabe analizar politicamente o que vê.
O ponto de vista mais fraco que já vi sobre este filme.
Análise fajuta, rapaz. Se queria se ser ironico, soubesse utilizar-se da ironia, seu excesso de sarcasmo deu um tom de ingenuidade quanto ao verdadeiro conteudo que simplismente o desagradou. a estoria vai além do seu desagrado.
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