sexta-feira, 24 de junho de 2011

ATIREM NO PIANISTA (Tirez sur le pianiste), de François Truffaut, 1960, por Ana Luiza Fernandes Alencar


Toda a iconografia inicial de Atirem no pianista, segundo longa metragem de François Truffaut nos leva a crer que se trata de um filme noir. Uma perseguição, a cidade à noite, as ruas escuras, o suspense acentuado através da música, a iminência de algo que está prestes a acontecer. O diretor utiliza seu vasto conhecimento acerca do cinema para confundir o espectador, desnorteando aqueles que esperavam apenas por um filme de gênero. Em Atirem no pianista, vários gêneros se articulam, mas de um modo espontâneo, para compor um filme único.
Segundo Ingram, “a importância do gênero noir não decai, apenas se complica, à medida que elementos de outros gêneros se infiltram na trama.” Como a breve aparição da iconografia do musical, da comédia e do western. Essa mescla de gênero afeta também o tom do filme. O efeito inicial que causa no espectador é de desorientação, porém como indica o autor, Truffaut não fez um filme de gênero, senão para subvertê-lo (2008, p. 31). O diretor presta uma “homenagem” aos chamados filmes B hollywoodianos, das décadas de 40 e 50. O filme é uma adaptação do romance policial do escritor norte americano David Goodis.
O fugitivo, que em sua fuga desnorteada cai na rua ao se chocar com um poste, é ajudado a se erguer por um estranho, com quem em seguida mantém um diálogo insólito sobre amor e casamento, temas explorados na obra do diretor, o amor como um grande tema, ou o tema. O homem esquece a fuga por um momento, até que seu interlocutor dobre a esquina. Chico, o fugitivo em questão, se põe a correr novamente até chegar a um bar, em que lemos a placa “Charlie Koller (bal tous lês jours)”. Charlie Koller, o pianista e atração deste bar, é irmão de Chico, e demonstra pouco interesse e disposição em ajudar-lhe em sua fuga, no entanto, no último instante acaba por fazer-lo.
Por mais que Atirem no pianista não constitua um dos filmes mais realistas do diretor, nele, como ressalta Ingram, está refletido a presença emblemática da Paris contemporânea (ao filme), através de diversos elementos, como o bar, as ruas, o apartamento, os carros, etc. Apesar disso, a Paris do filme, não é aquela que o cinema nos habituou ver, a cidade turística, cartão-postal. Ao contrário, nada de monumentos históricos, nem lugares turísticos facilmente reconhecíveis, nesse sentido ela aparenta mais realismo. Segundo Manevy, um dos aspectos mais relevantes das produções da Nouvelle Vague foi a escolha de locações em Paris, explicitando outra concepção de espaço, de historicidade, de relação com a realidade imediata e documental. A busca da rua, em oposição ao cinema de estúdios e cenários, como responsável em grande medida por trazer um aspecto visual novo ao cinema francês. (2006, p. 224)
O cantor Boby Lapointe faz uma participação, cantando a música “Framboise!”, de sua autoria. Numa interessante composição visual, vemos em primeiro plano Lapointe cantando, ao fundo Charlie com sua expressão melancólica, tendo ao lado um risonho baterista. Até que a câmera se aproxima até enquadrar unicamente no rosto Charlie, de quem escutamos a voz over, seu fluxo de pensamento, em sintonia com o close-up de seu rosto. A voz over é usada no filme, de modo a se fazer ouvir o monólogo interior do personagem. Como lembra Marcel Martin “o primeiro plano nos habituou a um tal poder de penetração que nos parece perfeitamente verossímil ouvir os pensamentos de um individuo que vemos absorvido em uma meditação interna” (Martin 2007, p. 187). Traço marcante também da Nouvelle Vague, “no que se refere a narrativa, os filmes fazem um uso frequentemente inventivo da voz over, do flashback, explicitando intervenções sonoras ou visuais” (Manevy, p. 245).
Atirem no pianista, é nas palavras de Manevy, um “film noir documental”. Em boa medida, a Nouvelle Vague nasceu do encontro do cinema americano com a cultura européia do pós-guerra, em especial a neo-realista italiana. “O negativo em preto e branco e o uso de trucagens como a íris remontam também ao cinema dos primeiros tempos. No entanto, está interditado o recuo à imagem neo-realista, que havia devolvido frescor ao cinema do pós-guerra. Voltar no tempo pela recriação do estranhamento, não da mesma forma, mas com um novo artifício. Esse recuo nascerá como fruto de uma estilização, dentro da textura neo-realista” (2006, p. 246).
Charlie ainda irá compartilhar em outras sequências seus pensamentos com o público, como na cena em que caminha ao lado de Léna, por quem está apaixonado, mas não consegue se aproximar. Ao lado dela, ele parece pequeno e frágil. O medo das mulheres, uma recorrência nos personagens de Truffaut. Mas, como disse o próprio diretor a respeito de Charles Aznavour, “com efeito, pode ser fraco, frágil, vulnerável sem ser uma vítima; eis por que eu quis que o personagem de Atirem no pianista fosse tão completo: rico, pobre, corajoso, medroso, tímido, impulsivo, sentimental, autoritário, egoísta, terno, doce e sobretudo, muito feliz no amor, embora dando apenas os primeiros passos”. Para Truffaut, Charlie era, acima de tudo, um personagem poético (2006, p. 224).
De acordo com Aumont, em 1962, o cineasta declarara renegar a noção de autor completo: “de qualquer modo, ainda que não escreva uma linha do argumento, é o encenador que conta, é a ele que o filme se assemelha, como impressões digitais. O círculo está fechado: quer o cinema adapte ou não fielmente, quer o realizador seja também ou não o argumentista, afinal de contas, o autor do filme é o autor da sua encenação” (2006, p. 75). Como se pode dizer que um filme de Antoine Doinel é um filme de Jean-Pierre Léaud, Atirem no pianista pode ser considerado também um filme de Charles Aznavour. Como escreveu Truffaut, “trazem tamanha verdade que pouco a pouco vão se tornando o filme por si só” (2006, p. 224).
Há uma cena divertida entre Charlie e Clarissa, sua vizinha, em que eles brincam com a metalinguagem. Ela canta “televisão é um cinema que você pode ver em casa”, ao que ele responde no cinema é assim, lhe cobrindo os seios. E ela lhe conta sobre um filme que viu naquela tarde, com John Wayne. Há ainda a referência, ou homenagem a Abel Gance, com uma cena em que a tela se divide em três.
Os gângsters seqüestram Charlie e Léna, e depois Fido, o irmão mais novo de Charlie, de quem este toma conta. O divertido é que estas cenas têm uma atmosfera totalmente leve, o momento em que as coisa deveriam ficar mais tensas, ao contrário, pende mais para o nonsense, frustrando novamente nossa tentativa de classificação. Nesses diálogos estão presentes o humor, assim como os temas de grande interesse do diretor, como as mulheres e o fetiche pelas pernas, no caso do primeiro seqüestro. Os gânsgters são figuras mais cômicas que ameaçadoras. Um momento exemplar disto é quando um deles diz: “se estou mentindo quero que minha mãe caia morta”, no plano seguindo uma senhora, cai literalmente morta, numa composição que lembra os filmes do primeiro cinema.
A inserção de um longo flashback do passado de Charlie, quando ele ainda era Édouard Saroyan, um conhecido concertista de piano clássico, casado com Thérèsa, responsável por impulsionar sua carreira, fato que a levará ao suicídio. Os livros, objetos sempre presentes nos filmes do cineasta, como tema ou elemento, aparecem aqui, com os títulos sobre timidez, que Édouard/Charlie busca para superar aquilo que seu agente chama de doença curável. Léna gosta de Charlie justamente porque ele é tímido, e “respeita as mulheres”. A timidez, como afirma Ingram, era um traço da personalidade de Truffaut, que vários de seus personagens possuíam.
Outro diálogo relevante é o que se passa entre Charlie e seus irmãos Chico e Richard, na cabana, no qual falam sobre as memórias da infância. Charlie como o pequeno virtuoso indo para a academia de música aos 14 anos e os irmãos como os pequenos selvagens, tentando impedir. A volta de Charlie, após matar o dono do bar e fugir, era como sua volta para os selvagens, “um assassino, numa família de ladrões”.
Há um tiroteio entre os gângsters e os irmãos de Charlie, que culmina com a morte de Léna, e seu corpo deslizando na neve. A perseguição entre eles continua, assim como a vida de Charlie ao que era antes. Ele volta a trabalhar no bar, onde lhe é apresentado uma nova garçonete.






Referências bibliográficas:

AUMONT, Jacques. O cinema e a encenação. Lisboa: Texto e Grafia, 2006.
INGRAM, Robert. François Truffaut: filmografia completa. Taschen, 2008
TRUFFAUT, François. O prazer dos olhos: escritos sobre cinema. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
MANEVY, Alfredo. “Nouvelle Vague”. In: MASCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial. Campinas: Papirus, 2006.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2007.

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