domingo, 9 de outubro de 2011
"A cicatriz interior", por Douglas Deó Ribeiro
Há uma diferença clara entre as caminhadas no deserto do adulto e da criança em A cicatriz interior (Garrel, 1972). Para ilustrar, no plano em que o próprio Garrel larga Nico suplicante e parte numa marcha para a esquerda, acompanhada por um travelling correspondente, ele acaba retornando duas vezes para a mesma mulher em prantos no chão, numa circularidade evidente, como um retorno ao passado curto daquele próprio plano. Na caminhada da criança, o menino, diante, também, de Nico – esta, montada num cavalo e cercada por um círculo de fogo –, parte numa marcha incessante, à semelhança do adulto, porém em direção oposta, para a direita, e sem nunca retornar ao ponto de onde partiu. Um ano antes, numa discussão sobre o roteiro de Macbeth (Polanski, 1971), o diretor franco-polonês decidiu filmar a marcha do exército inglês, vitorioso, da esquerda para a direita. A explicação: no ocidente, o movimento para a direita é percebido como mais fluente e o para a esquerda, como antinatural, dificultoso – a escrita ocidental se faz da esquerda para direita e até em animações infantis, observou Polanski, a subida de uma montanha íngreme é frequentemente posta da direita da esquerda, reverberando o esforço do alpinista.
Subentende-se, assim, que Garrel tenha optado pelas direções do movimento de seus personagens fundamentado nesse princípio? Talvez sim, talvez não. De fato, há sentido na observação de Polanski. E as escolhas do diretor francês em seu filme podem, de fato, ter partido desses signos do ocidente. Mas diversos outros signos estão dispersos pelo filme, sem uma conexão estrutural(ista) evidente: as vestes medievais; a música e a própria Nico, ícones da época; o deserto (paisagem utilizada igualmente como não-lugar, ou lugar mítico, em tantos outros, como Jodorowski, Antonioni, Pasolini); as oposições entre fogo e água (gelo); as alusões cristãs (as ovelhas e o nu cristiforme). Símbolos do passado (distante ou até próximo, quase imediato) que se unem, abertos às mais diversas interpretações e dificilmente cabíveis numa leitura única, linear, progressivamente discursiva.
Nessa soma ou sobreposição de símbolos, a diegese do filme parece sem futuro: tanto pela não-narratividade, estrutura que, naturalmente, não impele o espectador para o que haverá depois do filme com aqueles personagens; quanto pela elaboração daquelas próprias imagens - planos longos que, estáticos ou com movimentos monótonos, depois de algum tempo de fruição não parecem ter futuro porque nada acontece além do que já está acontecendo e o que sobrevive são os signos do plano e os movimentos anteriores que o geraram, ou seja, seu passado. Tal perspectiva acaba por ser reflexo, imagem e condensação do mundo (daquele tempo), que, principalmente a Europa, sofria com algumas dolorosas mortes recentes: Barthes “matara” o autor em 68 e a utopia agonizava mais ou menos naquela época.
Por isso, talvez, os movimentos opostos do homem feito e do homem por fazer (criança): o menino anda numa direção fácil e fluida, tem futuro, ou, pelo menos, imagina ter, tanto que não retorna ao círculo de fogo do princípio, não sofre da circularidade paralisante (o fogo envolve e aprisiona a mulher), do eterno retorno nietzscheano do qual padece o adulto; este último segue, em seu plano, andando pesadamente para a esquerda, numa dificuldade simbólica que sempre retorna ao passado que tenta deixar para trás. Talvez Garrel esteja chamando os utópicos da geração precedente de infantis, por acreditarem num futuro melhor, talvez queira mostrar que a maturidade leva à consciência da paralisação inexorável da existência, mas essas interpretações soam um tanto limitadoras e estruturalistas para um filme que, já se disse, se mostra tão aberto quanto (e para) o mundo.
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