domingo, 9 de outubro de 2011

"Notas sobre Estrada Perdida", por Álvaro Brito


É como uma revelação que parece soar a última frase de A Estrada Perdida, pronunciada pelo personagem Fred Medison (Bill Pullman): “Dick Laurent is dead”. Não é somente o desfecho de uma trama que se entretece através de encontros de personagens e seus duplos, de elementos e personagens que de alguma forma se ligam aos protagonistas, em inflexões esquizofrênicas da narrativa etc. Não é nem mesmo um desfecho, na medida em que a frase só completa um labirinto cíclico indecifrável. A frase é pronunciada nas primeiras sequências do filme e quem a escuta, através do interfone de sua casa, é o próprio Fred Medison. Essa frase, que conecta dois espaços diferentes (o lado de dentro e o lado de fora da casa), também conecta o começo ao fim; e é uma revelação, não apenas para Fred Medison de dentro (que nem desconfia do que se trata a revelação), mas para o espectador: não se trata do encontro do mesmo personagem em espaços diferentes, não somente, mas também, e principalmente, do encontro de dois tempos diferentes: passado e futuro. Não é que Fred Medison tenha se duplicado, pois isso pressupõe um axioma newtoniano (dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço) e um espaço euclidiano (de coordenadas e pontos definidos). David Lynch, nesse caso, subverte e transforma a lei newtoniana, que podemos expressar nestes termos: dois corpos idênticos podem ocupar espaços diferentes. Mas como já disse, não se trata do espaço, ou somente do espaço, mas do tempo.

Se David Lynch consegue amarrar o fim ao começo, numa trama construída a partir de curtos-circuitos no tempo, de modo a torná-lo cíclico, então não há sentido em usar termos como passado e futuro. Podemos falar de Bergson que, numa radicalidade extrema de suas teorias, chegou a abolir essas instâncias; mas em Estrada Perdida, passado e futuro são tempos que se apagam na relatividade dos acontecimentos, posto que se ordenam de forma cíclica e pressupõem uma repetição. Mesmo que esses acontecimentos fossem ordenados de forma simples, ainda assim não seria possível estabelecer passado e futuro, causa e efeito, já que um implica no outro e vice-versa. Mas em Estrada Perdida há muitas lacunas e muitos curtos-circuitos (por isso a recorrência de lâmpadas e seus ruídos durante o filme). No mais estranho dos casos, temos Fred Medison transformado em Peter Dayton, em sua cela, no corredor da morte. São pessoas diferentes, mas que se conectam através de alguns elementos (Dick Laurent, Renee Medison/Alice Wakefield, as crises esquizofrênicas dos personagens etc).

O espaço deixa de ser euclidiano em Lynch porque se configura como um problema, pois não segue os princípios de economia dos quais falava Deleuze. No espaço euclidiano, como nos fala Deleuze, os elementos que provocam tensão são facilmente localizáveis; tal espaço mantém suas coordenadas de maneira a evitar qualquer descontinuidade. Mas em Estrada Perdida, não temos apenas uma descontinuidade, mas uma exacerbação da tensão pelo mistério. Desconhecemos os personagens, não sabemos do que são capazes nem quais serão seus próximos passos; a todo momento uma trilha sonora vibra dissonante, exacerbando esse clima de tensão. Não são pólos opostos, no entanto, que provocam tensão, mas a indefinição desses pólos, que nos desconcertam, que minam nossos pontos de segurança. Os inimigos não são facilmente localizáveis. As situações e o espaço sofrem uma espécie de desnaturalização, pois tudo é passível de driblar nossas expectativas. Mesmo o espaço que supostamente oferece mais segurança, o lar dos Medison, abriga uma atmosfera estranha, seja pelo relacionamento duvidoso entre marido e mulher, seja pelos vídeos estranhos de sua casa.

Para ilustrar melhor o que falo sobre a experiência do tempo em Estrada Perdida, cabe lembrar uma passagem do conto O jardim dos caminhos que se bifurcam, de Jorge Luis Borges, quando o sinólogo Stephem Albert explica ao fugitivo chinês o inextricável romance de Ts’ui Pen, seu antepassado:

“Em todas as ficções, cada vez que um homem se drefronta com diversas alternativas opta por uma e elimina as outras; na do quase inextricável Ts’ui Pen, opta – simultaneamente – por todas. Cria assim diversos futuros, diversos tempos, que também proliferam e se bifurcam.”

Deleuze
também se refere a essa proliferação de tempos no capítulo 6, As potências do falso, de Imagem-tempo. Nele, assim como no resto do livro, ele trabalha as novas narrativas que negam o movimento sensório-motor em detrimento das potências do falso, de possibilidades na ficção. Ou seja, a narrativa não se sucede através de causas e consequências, e seus personagens não se submetem a ela (à maneira de um discurso); mas são as situações que se moldam aos personagens. Por exemplo, em Estrada Perdida, o homem misterioso que ameaça Fred Medison é o mesmo que o ajuda na luta contra o gangster. Fred Medison é condenado à morte por assassinar sua esposa, mas no corredor da morte outra pessoa é encontrada em sua cela. Fred escapa a um destino fatal para reaparecer mais tarde, fugindo por sua vida. Essas situações sugerem o encontro entre realidades paralelas (o que já é uma contradição), entre tempos que tomam outros caminhos e que, afinal, acabam por completar um movimento circular, no qual passado se torna futuro e vice-versa.

Gilles Deleuze

Nenhum comentário: