domingo, 9 de outubro de 2011

“Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo”, por Amanda Beça



Um canal no Rio São Francisco vai ser construído no sertão árido para que toda uma população interiorana do Nordeste possa suprir carências básicas. José Renato, então, é mandado numa viagem no intuito de estudar a geologia local por quase um mês. Mas em menos de dez minutos de filme, percebemos que o protagonista está tão carente quanto as pessoas que moram ali. A princípio, o que parecia ser apenas uma grande saudade de casa, se mostra, na verdade, uma saudade nostálgica e melancólica de uma vida que ele teve que deixar pra trás. Depois de ver um cartaz colado na parede escrito “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo”, Renato transborda suas sensações e faz do espectador um diário de bordo e da viagem uma terapia. Montanhas, relevos e rochas são trocados por “galega”, casamento e flores. Ele sofre de amor e nos confidencia suas maiores angústias, lembranças e sentimentos, de modo que conhecemos Renato inteiro, por mais que nunca vamos vir a saber como é seu rosto.

Com nome retirado daquele cartaz, o filme de Karim Ainouz e Marcelo Gomes resume uma década em setenta e cinco minutos. As gravações são datadas entre os períodos de 1999 a 2009, numa mistura de digital com analógico. Dentro da narrativa, os dez anos se transformam em 53 dias na vida de José Renato, que parecem durar muito mais sempre que ele pensa em Joana e todo o tempo que passaram juntos. “Duração” e “Afecção” são as constantes do filme, tanto em forma quanto em conteúdo. Estética e temática estão tão bem harmonizados, que é impossível falar de um sem comentar o outro. A mistura de formatos e de linguagens (documental e ficcional) ressignificam as imagens, dialogando com a própria ressignificação da essência do personagem. Se Bergson diz que o presente é tudo o que fomos no passado para poder agir pro futuro, e que isso interfere na maneira como interpretamos as coisas, não existe alguém mais imerso nisso tudo do que Renato. Embora este seja um momento de vazio e de dúvidas em que ele precisa reembaralhar tudo pra trazer ele mesmo de volta a si.

A dor constante da lembrança altera toda a sua percepção do ao redor. José Renato muito provavelmente já era acostumado a ver o árido nordestino, mas nesta viagem a paisagem se confunde com o sensível e ele consegue ver ali outras coisas. A solidão das pessoas, a beleza do sertão, a fé do povo, as prostitutas na beira da estrada, ele percebe as coisas dentro de um sensível que o permite sair das camadas superficiais das imagens para ir mais além. Sempre com o seu passado – melhor intitulado Joana – na memória, a complexidade e diversidade do sertão floresce dentro dele.
Mas é justamente do passado que o faz transcender, que Renato quer se desprender. Uma coisa leva a outra: por causa de doloridas memórias-virtuais tão presentes quanto a própria memória-usual, Renato entra num dissenso com si mesmo e se torna capaz de suspender seu “eu” e viver num momento de anarquia pessoal, num vazio, para poder descobrir um novo sentido de si e se transformar. Pra isso, sua viagem tem função sine qua non. Primeiro repudiada, aquela vontade doida de voltar pra casa, Renato conta os dias pra ir embora. Mas o que era pra ser uma viagem de 27 dias termina o dobro disso. Através do seu sensível à flor da pele, ele consegue imergir naquela realidade aparentemente vazia e descobre naquele povo simples, uma grande complexidade. Seu estudo sobre a geografia local se perde e ele termina aprendendo muito mais sobre aquela atmosfera do que poderia aprender observando a composição das rochas. A câmera sempre subjetiva e a narração constante do personagem faz com que vejamos o Nordeste que ele vê, e assim percebemos aquelas imagens literalmente no mundo idealista.

O público, além de assistir ao dissenso do personagem, também vive um. O sertão é tema saturado no cinema brasileiro e possui um estereótipo desgastado para o espectador alfabetizado pelo cinema estrangeiro. Para dificultar, a estética “câmera-olho” do filme é dura de engolir e causa estranhamento pra quem pensa o audiovisual como quem vê apenas simplicidade no sertão. Tudo isso se resume em um advérbio: a princípio. Porque com o passar do tempo, o público é embalado pelo sensível junto com Renato e a mesma sensação que ele tem para com o fim da viagem é a nossa quando o filme termina: transcendência.

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