domingo, 9 de outubro de 2011

"A morte anunciada", por Igor Calado


Sobre seu filme de estreia, O Pântano (La Ciénaga, 2001), a diretora e roteirista Lucrecia Martel disse em entrevista: “Para mim, não é um filme realista. É algo estranho, meio esquisito. É o tipo de filme onde você consegue dizer o que vai acontecer, e eu queria que a audiência ficasse bem incomodada desde o começo” . Isso sintetiza bem a fórmula que a obra emprega.

Da razoável quantidade de personagens da película, a maioria são mulheres, sobre as quais recai a ênfase da narrativa. Dentre os personagens masculinos, há Luciano (Sebastián Montagna), apelidado Luchi, de 11 anos, cuja primeira aparição no filme é com um corte na perna. Apesar do ferimento não parecer grave, sua mãe Tali (Mercedes Morán) leva-o ao médico, onde recebe pontos. No mesmo hospital está a amiga de longa data de Tali, Mecha (Graciela Borges), que, bêbada, caiu sobre copos e também sofreu cortes de gravidade maior. Essa coincidência levará as famílias a uma série de encontros, muito bem explorados por Martel, que combina acurada análise de relações familiares e interpessoais da classe média decadente do norte da Argentina com uma mise-en-scène e história “estranhas”, muito além de um olhar unicamente social.

Muitas personagens femininas de Martel apresentam agouros de uma velhice com problemas de saúde, entre outras más notícias. No entanto, nenhum personagem tem seu destino tão fatalmente marcado quanto Luchi. Mobilizando desde artifícios narrativos até a montagem, o filme reforça repetidas vezes o caráter lúgubre do personagem, cuja morte parece ser anunciada diversas vezes até sua efetiva realização ao final do filme.

Das várias construções “proféticas”, destaco três, por sua maior relevância: numa das visitas à casa de Mecha, brincando à beira da piscina suja com as crianças da casa, Luchi escuta de Vero (Leonora Balcarce) uma história um pouco aterrorizante: uma senhora leva para casa um cão desprotegido, mas no dia seguinte todos seus gatos desapareceram e o cão está ensangüentado; a senhora leva-o ao veterinário, ele parte o animal ao meio com um machado, revelando vários dentes, e diz que não é um cachorro, mas uma “rata africana” – traduzido nas legendas como “rato-do-banhado”. Luchi passará a associar os cães à rata africana, tendo deles medo – e, no caso do cachorro de seu vizinho, mais medo do que já tinha.

Mais adiante, Luchi acompanha os filhos de Mecha numa caçada na serra. O grupo se depara com um boi atolado num lamaçal, do qual Luchi se aproxima. Os dois garotos mais velhos levantam as armas e as apontam na direção do animal e de Luchi, que as olha sem parecer compreender, enquanto eles pedem que ele saia da frente. A cena, construída de forma tensa, termina com um plano geral da serra onde ouvimos um disparo. Só na cena seguinte temos confirmação de que Luchi está vivo.

Um último caso: depois de uma briga numa festa de Carnaval, José (um dos filhos de Mecha, interpretado por Juan Cruz Bordeu), está caído no chão, machucado, sendo aparado por seus amigos; um corte seco muda o ambiente para o quarto de Luchi, onde o pai ajeita na cama a criança adormecida. O corte seco é um match cut, criando associação visual direta entre o corpo machucado de José e o de Luciano.

No primeiro caso, os recursos manipulados dizem respeito estritamente à narrativa: a história da rata africana retornará para assustar Luchi em diversos momentos da história. Pode ainda ser traçado um paralelo entre a história da rata africana e da própria vida de Luchi: está nascendo um dente a mais em sua boca e, no final de cada história, Luchi e o rato morrem.

Essa interpretação é reforçada por uma cena onde Tali e seu marido observam intrigados uma radiografia dos dentes de Luciano, ao lado de uma construção que faz um barulho desagradável. O ruído parece fazer um mal especial ao ouvidos de Tali; um plano de Luchi mexendo a boca faz parecer que ele está emitindo os sons, semelhantes aos de um animal estranho.

Já a cena do boi atolado é feita com suspense deliberado, com closes em rostos tensos e planos ameaçadores, culminando com o disparo assustador. Toda a mise-en-scène é explorada de modo a fazer crer na morte do garoto, desde os avisos anteriores de Mecha sobre os perigos da serra à tensão da montagem, mas essa expectativa será frustrada já no próximo plano. Fica patente para o espectador o descompasso entre a operação estética da cena e os fatos narrativos que nela acontecem, descompasso esse que, claramente, não parece querer ser lido como simples frustração da expectativa.

Por fim, a associação imagética entre os dois corpos, um maltratado de adulto, outro adormecido de criança, é um dos mais simples. O match cut sobrepõe diretamente um corpo a outro e, neste caso, é investido de especial valor semântico.

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No cinema de gênero, as expectativas são parte constitutiva do processo de recepção do filme e se baseiam em regras que delimitam o raio de ação do gênero. Qualquer filme que se proponha participante ou pretenda qualquer relação com determinado gênero irá, portanto, se relacionar de maneira negociada com o leque de opções e regras desse respectivo gênero, que é mutável.

Eventualmente, regras de um gênero transbordam para filmes fora desse gênero ou que não se pretendem de gênero. Assim, quando aparece um close solitário de uma faca em Violência Gratuita (Michael Haneke, 2007), o espectador, através de seu repertório, compreende que aquele objeto provavelmente terá importância em parte futura da narrativa – o filme se propõe precisamente a brincar com esse tipo de expectativa.

Ao longo de O Pântano, a expectativa da morte de Luchi é criada explorando-se recursos cinematográficos e narrativos diversos. É precisamente na forma original como se dão essas associações, que quase nunca se relacionam com os clichês e regras da cinematografia convencional e clássica, que reside um dos pontos mais interessantes do filme.

Na primeira meia hora de filme, já fomos apresentados ao medo que Luciano tem do cão do outro lado da parede – que não vemos; também somos apresentados à escada que a mãe usa e seu perigo. Esses artifícios são usados de maneira bastante convencional e sua leitura, para o espectador médio, não causaria estranheza.

Dali em diante, as associações irão operar de forma distinta. Enquanto que o artifício anterior é lido necessariamente em relação ao clichê hollywoodiano, a falta de referências para as outras operações associativas é precisamente o que lhes confere esse ar incômodo e sobrenatural – e a originalidade do projeto.

Em seu texto “A doutrina das semelhanças” , Walter Benjamin elabora uma teoria da linguagem e da comunicação que postula, grosso modo, que o ato de ler refere-se à capacidade de compreender as semelhanças, como um astrólogo lê as estrelas. Diz que, ao longo do tempo, a humanidade passou a deslocar suas habilidades de leitura para campos cada vez mais racionais e restritos e que, hoje em dia, privilegia-se a língua. Para Benjamin, a leitura da língua (falada e escrita) se baseia, em menor medida que nas ciências ocultas, em “semelhanças extra-sensíveis”, relações aparentemente mágicas, de modo que a passagem do significante para o significado exige certa operação mística para concretizar-se. Tais semelhanças permitiriam acesso a camadas e saberes ocultos da natureza, de caráter sobrenatural – estando implícito que tais camadas não seriam acessíveis pelos métodos racionais.

A filmografia recente de David Lynch tem sido primorosa na exploração de interligações narrativas “supostas” entre diversas histórias de vida aparentemente desconexas, como testemunham Inland Empire (2006) e Lost Highway (1997). O emprego desse artifício pelo autor americano é bastante benjaminiano: eventos na vida de personagens diferentes parecem ter paralelos, semelhanças extra-sensíveis, mas ligações causais dificilmente podem ser estabelecidas.

Exemplo disso são as várias e diferentes referências a coisas e pessoas da Polônia ou do Leste Europeu em Inland Empire, aparentemente sem relação entre si. Neste filme, aos personagens não lhes parece ser dada a oportunidade de realizar essas leituras extra-sensíveis, pelo menos na grande maioria dos casos. Mas ao espectador lhe é oferecida esta alternativa, o que altera completamente a recepção da obra.

O mesmo pode-se dizer d’O Pântano de Martel: a natureza parece abundar de sinais gratuitos, estranhos, cuja compreensão de sua real dimensão, a visão ou intuição de outras camadas de conhecimento, só se realiza para o espectador, enquanto permanecem ocultas aos que habitam a história.

Suponhamos uma alteração do projeto de Martel, onde os personagens se tornariam capazes de efetuar a leitura dessas semelhanças extra-sensíveis. Enquanto que muitos dos signos que permitem essa leitura já habitam o mundo diegético, a leitura em si, não é nele realizada; quando efetuamos a modificação citada, o valor semântico dessas “coincidências” passaria ao mundo diegético e perderiam completamente sua aura sobrenatural, pois esta reside obrigatoriamente na sensação facultada ao espectador de poder ler esse mundo, a posição privilegiada de clarividência, enquanto que esta é negada aos seus próprios habitantes, criando-se a desconfortável impressão de obviedade e fatalidade, enquanto os personagens permanecem alienados.

É interessante notar que, a medida que os artifícios cinematográficos que engendram semelhanças se aproximam cada vez mais da técnica e menos da narrativa, menos “sobrenaturais” soam os artifícios. O match cut dos corpos, por exemplo, atrai muito mais atenção para o meio e para o caráter construído do discurso que a história da rata africana, pois a narrativa verossimilhante desfavorece a auto-reflexividade. Assim, quanto mais técnicos, os artifícios parecem cair menos na leitura extra-sensível benjaminiana e mais no campo racional da semiótica – onde, a bem da verdade, estará tudo incluso, caso compreendamos o projeto místico de Walter Benjamin como inadequado para a compreensão do fenômeno da linguagem hoje em dia.

O texto de Benjamin data de 1933, bem posterior, portanto, à publicação do seminal Curso de Linguística Geral de Ferdinand de Saussure, ocorrida em 1916. O alemão cita nominalmente a semiótica (àquela época ainda baseada no estruturalismo saussuriano), tentando equacionar sua abordagem mística com o racionalismo desse campo: “Essa dimensão – mágica, se se quiser – da linguagem e da escrita não se desenvolve isoladamente da outra dimensão, a semiótica” . Entretanto, a tentativa me parece bastante inadequada, visto que a arbitrariedade da relação entre significante e significado é um dos postulados de base da pesquisa de Saussure, ao passo que Benjamin ainda acredita numa relação intrínseca entre os dois, o que claramente não se aplica aos sistemas escritos que visam representar o significante (os símbolos que representam, como próprio Alemão, de onde o autor tira o exemplo, em oposição, por exemplo, ao sistema ideogramático).

Apesar de talvez não ser interessante enquanto proposta de ciência da linguagem, o texto de Benjamin ainda pode ser produtivo por sua elaboração do conceito de “semelhança extra-sensível”, mesmo que de forma diferente da prevista pelo autor. O que ele compreende como a capacidade dos “antigos” de ler os signos da natureza pode ser tida como um transbordamento do princípio humano da procura do sentido, em especialmente, pela narrativa – mesmo que teleológica.

Aplicado especificamente à arte, a idea de semelhança extra-sensível cai como uma luva para descrever regimes de leitura particulares, especialmente os empregados por David Lynch e, em menor medida, por Lucrecia Martel. Esses artifícios provavelmente continuarão criando impacto somente enquanto não se disseminarem e forem absorvidos pelo repertório canônico da linguagem do cinema, perdendo aí sua originalidade primordial, essas dos filmes de Lynch e Martel, para virar uma referência tanto na prática quanto na recepção, os efeitos então sendo produzidos em relação com o artifício.

Esse extra-sensível benjaminiano parece habitar especialmente os artifícios narrativos, a história da rata africana mais que o match cut, porque se baseia na leitura dos signos dentro do universo diegético, enquanto que o corte e a manipulação da mise-en-scène existem de forma mais clara para o espectador fora deste mundo diegético, não reproduzindo assim esse “dom da apreensão mimética”, da interpretação das correspondências extra-sensíveis que Walter Benjamin admira nos “antigos”.

Referências bibliográficas

Entrevista com Lucrecia Martel no The Telegraph, http://www.telegraph.co.uk/culture/4725891/Great-pool-of-talent.html (em Inglês, tradução livre).

Walter Benjamin, "Obras Escolhidas, vol 1 – Magia e Técnica, Arte e Política" (Ed. Brasiliense, 3ª edição).

"Aborder la linguistique", de Dominique Maingueneau (Éditions du Seuil, 2009).

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