domingo, 9 de outubro de 2011

"A estrada perdida", por Rayssa Costa


O longa-metragem A Estrada Perdida de David Lynch é um filme que até em seu gênero abre espaço para multiplicidade quando mistura drama, suspense e inclusive um pouco de terror. Fred Madison (interpretado por Bill Pullman) é acusado pela morte de sua esposa Renee (Patrícia Arquette), mas não se sabe exatamente como isso aconteceu e, a fim de não clarear as idéias do espectador, a história de desenrola na transformação de Fred em outro homem e vivendo uma nova vida – agora ele é Pete Dayton. No corpo desse segundo homem, o personagem principal dessa trama passa por experiências também misteriosas, o que leva o público, ao fim da exibição, a não conseguir assimilar o que viu de maneira completamente consciente.

Isso (a imagem não assimilada de forma completa ou hermética) pode ser claramente relacionado ao dual conceito de imagem de Bergson – filósofo francês –, quando ele fala de resumo e abertura. O que foi visto é apenas o resumo da película e, sendo o mundo um conjunto de imagens e de partículas em expansão, a imagem fílmica abre-se para o imaginário do homem. A partir disso, busca-se na memória argumentos e situações que de alguma maneira clarifiquem o filme; faz-se, ao mesmo tempo daquilo que foi assistido, memória para o que ainda está por vir.

Um parêntese apenas para discutir sobre uma possível classificação do Cinema. Seria ele, o audiovisual, um ótimo exemplo de resumo e abertura? Mesmo com o som, já que de algum tempo para cá esta arte é tida também como uma experiência sonora, o filme pode aderir e exemplificar este conceito? Não adentrarei no longo e complexo conflito do que é mais importante e do que se sobrepõe: o que é visto ou o que é escutado. Até onde o filme resume uma história e se faz abertura no imaginário do espectador? Talvez, seja o cinema um modelo que capte apenas parte de determinado universo e, a partir da visão do espectador, se transforme em um todo – incomensurável – não visível ou não classificável para o outro, que não ele mesmo ou aqueles que compartilham da sua visão e opinião.

Voltando para as impressões do filme e aplicando as mesmas ainda a conceitos de importantes personalidades cinematográficas, outra alusão importante que se pode fazer é a respeito de lembranças. Quando se fala em abertura (imagem), a fim de se fincar relações para elucidar o conteúdo assistido, pode-se pensar na memória. Em Matéria e Memória, Bergson destaca importantes conceitos que potencializam as análises sobre o audiovisual e seus diversos discursos: a memória e sua relação com as imagens. Para pensar a memória como agente possível na criação de subjetividades é preciso que se observem as funções do corpo e suas potencialidades em relação às imagens que lhe são exteriores. Com o corpo construímos, de forma subjetiva, os objetos e as relações com o mundo. Imagem, então, é também memória, pois é a partir daquela que extraímos os fatos e os acontecimentos que configuram formas de relação em sociedade ou com outros objetos, portanto a ação sobre as coisas identificando-as como imagem-lembrança ou remidiatizando-as como imagem-ação (esta só depois de existir uma percepção consciente).

Portanto, é por meio das imagens-lembrança que nasce o reconhecimento dos objetos: sua comunicabilidade. Por ela [imagem-lembrança] se tornaria possível o reconhecimento inteligente, ou melhor, intelectual, de uma percepção já experimentada; nela nos refugiaríamos todas as vezes que remontamos, para buscar aí certa imagem, a encosta de nossa vida passada (página 62 de Matéria e Memória). É essa mesma imagem, então, que se faz como uma maneira de mediação entre o mundo e o homem.

Henri Bergson

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