domingo, 9 de outubro de 2011

"Registro de um certo tempo: Marker, Godard e Ujica", por Heitor Dutra


Walter Benjamin, na nona tese de Sobre o Conceito da História fala de uma pintura de Paul Klee. Um anjo que encara algo fixamente, e tem os olhos esbugalhados pelo que vê. Ele tenta se afastar mas não consegue. Benjamin diz acreditar que este anjo olha para o passado e abre as asas tentando fugir, tentando de alguma maneira escapar. Mas parece que ele não é feliz na sua tentativa. O que dizer de Chris Marker ao fazer um especial para a televisão francesa sobre um velho cineasta russo esquecido, e praticamente ignorado até nos círculos mais intelectualizados de cinéfilos? E de Andrei Ujica, que na década de noventa lança em parceria com Harun Farocki uma revisão da revolução romena, que pôs fim a ditadura de Nicolae Ceasescu em 1989?

Falamos, no caso de um filme que se volta três anos no passado, um acontecimento (que, imagine, se hoje ainda têm suas sequelas que povoam a mente dos romenos, avalie em 1992) fresco nas mentes de todos. Fresco na mente de todos também devem ser as imagens da invasão da tv romena, com os manifestantes deixando o povo que estava em casa por dentro de tudo que acontecia no país naquele momento, naquele estado de exceção. Para o mundo isso não estava assim tão evidente. Ao pôr isso num filme Ujica e Farocki deixam circular uma história particular, vivida num pequeno país europeu, e mais intensamente ainda em sua capital, Bucareste, mas que diz respeito a toda década de oitenta e noventa, com o desmembramento dos países do leste europeu. Com sua intenção de não adotar nenhuma entrevista com pessoas ligadas ao acontecimento, Ujica nos confidencia uma vontade: a de mostrar, não os bastidores do acontecimento de maneira geral (apenas se isso tenha sido registrado pelos cinegrafistas da época), mas os registros daquele momento. Ele conta a história daquele inverno romeno, mas não se interessa se você, que assiste ao filme, sabe alguma coisa sobre a Romênia. As imagens nos contam tudo que devemos saber, é a história sendo escrita só com os registros em vídeo das pessoas que documentaram o evento, e o nome do filme já deixa isso bem claro: Videogramas de uma Revolução. Ujica adota essa mesma "técnica" em seu filme de 2010, Autobiografia de Nicolae Ceasescu, onde durante três horas são rodadas imagens do ex-ditador romeno desde que assume o poder, até seu julgamento improvisado.


O caso de Chris Marker em Elegia a Alexandre é semelhante. Há toda a tomada de imagens de arquivo, mas elas não são a totalidade: há imagens gravadas exclusivamente para o filme também. Há entrevistas com pessoas ligadas diretamente a Alexandre, o cineasta em questão. Mas, creio, é importante no filme de Marker a vontade de retomar algo esquecido, nós lembramos e estudamos muito Einseinstein, Pudovkin, Kuleshov, enfim. Mas o que nos leva a esquecer alguém, ao desinteresse completo; que fatores levam uma personalidade a desaparecer do cenário dos estudos sobre cinema? Creio também numa certa saudade, uma nostalgia, no sentido próprio da palavra, no filme, apesar de ser francês o realizador, e de não ter vivido diretamente os fatos que acometeram o cineasta russo, há um interesse, uma investigação presente e evidente no filme de mostrar, não como era maravilhoso, ou como era verde o vale. Mas como se vivia, o que se fazia, um homem que fazia seus filmes, a tentativa da mudança com a revolução, e de como isso foi fundamental para toda uma geração de artistas, (de todas as pessoas). E ao mesmo tempo como isso foi passando e se dissolvendo, até chegar no ponto em que o país acaba, surge a nova Rússia, uma Rússia que Alexandre não viu, portanto, é questionável para Marker se ela importa ou não para ele, em seu filme.


Acredito que em Godard a coisa acontece de maneira um pouco diferente, durante dez anos ele trabalha numa série para a televisão francesa (A tv francesa realmente me surpreende), Histoire(s) du Cinéma, em oito episódios o projeto tenta de sua maneira própria contar um século de cinema, contar a história do cinema como nunca se fez antes, com imagens. Godard não faz como Ujica em "Videogramas", ou na "Autobiografia de Nicolae Ceasescu", ele não pega as imagens e simplesmente as edita. As imagens estão lá, trechos curtíssimos de filmes, pinturas, fotografias e músicas. Pode se pensar também na imagem que é evocada pela voz do próprio Godard com suas frases de efeito, ora completamente incompreensíveis, ora tão próximas, e mesmo aquelas que não se pode entender de maneira evidente, às vezes nos toca de alguma forma, num lugar que não é atingido facilmente. Há também as legendas, que são fundamentais para lançar certos "conceitos" (com grandes aspas) que serão de certa forma trabalhados, não são óbvias, Godard faz questão de não ser.

Interessante é pensar que Godard já com certa idade, quando começa a série tem quase cinquenta anos, e quando termina quase sessenta, tenha se lançado nessa empreitada, num projeto desse tamanho: contar a história de algo que ele participou de maneira tão marcante, e de forma única. Há um trecho do primeiro episódio que é muito interessante para exemplificar, se for possível, a forma como ele trabalha a idéia de história e do que acontece no cinema no século XX: Intercalando a imagem de Gilda dançando, e a da senhora que é lançada na fogueira em "Dias de Ira", Godard questiona a bruxaria, o feitiço no cinema, quem pratica, de certa maneira, esse encanto, mas não é encantadora, talvez mereça ser queimada, não sei. As duas são bruxas, ou talvez apenas Gilda, quem sabe.

Benjamin fala em determinado momento sobre o historiador, citando Coulanges, o que tem tudo a ver com todos esses três cineastas: Marker com seu retorno a Alexandre, Godard com seu século a trabalhar e Ujica com a vida do ditador a contar sem nenhum comentário por parte de narrador: "Ao historiador interessado em ressuscitar uma época, esqueça tudo o que sabe sobre fases posteriores da história" Benjamin pregava uma história diferenciada, que não fosse tão burocrática e amontoada de fatos. Talvez para Godard isso não seja tão notável, mas eu acredito, que ao se debruçar sobre cada momento ele tenha prestado atenção a tudo que se passava, e ao olhar pra trás, em seu caminho, certamente o passado mais recente ficou evidente. O que com certeza caberia aos três: "Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminescência, tal como ela relampeja no momento de um perigo".

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