domingo, 9 de outubro de 2011
"A estrada perdida", por Lorena Arouche
Logo no início do filme A Estrada Perdida – Lost Highway – de David Lynch, percebe-se a imagem de um carro em movimento numa auto-estrada, aparentemente qualquer, à noite. Entretanto o que sinto ao ver essa imagem é a condução do olhar adentrando o universo da psique humana, ou especificamente, o universo extra-sensorial e metafísico das personagens principais da trama Fred x Pete e toda uma gama de “semelhanças” entre si que se desdobram a partir dessa abertura imagética bergsoniana. Tal concepção de Bergson se contrapõe à concepção de imagem como resumo, como síntese do real, de forma que a abertura proporciona “ir além do que se vê” que, conseqüentemente, incute gerar leituras e construções individuais diversas. Ao mesmo tempo em que David Lynch convida, ele também adverte, como se dissesse: “Abra sua mente para uma nova dimensão”. Essa imagem se repete várias vezes, aproximadamente na metade do filme, a fim de pontuar a transição para a segunda parte, quando a personagem de Pete é apresentada, e, mais adiante, nas proximidades da conclusão e ainda pela última vez ao final, todas as vezes com funções sempre bem específicas de imagem-semelhança (passado) ou imagem-ação (presente).
Lynch, propositalmente, dilui a noção espaço-tempo da mesma forma como dilui suas personagens por uma força da “semelhança” extra-sensível, entendida a partir da concepção de Walter Benjamin; na medida em que elas se afastam bilateralmente se integram e se confundem numa alusão a um possível alter-ego que vem à tona nos momentos de tensão e cujo ego reprime, sublimando a memória, a imagem-lembrança ao esquecimento.
A maneira como os planos são montados, os cortes, o silêncio vazio, a escuridão, somados à eminente perturbação, tensão das personagens, tudo gera uma estranheza que constitui um fio condutor à ambientação de uma realidade fantástica, que beira à atmosfera onírica, muito particular, paralela, características dos filmes de Lynch. Há nessas características, algo que pude correlacionar, outra vez, ao conceito de imagem-ação bergsoniano, ativo na construção subjetiva do que seria o momento presente na trama; além disso, uma interdependência extrema entre os fatos que compõem a trama, perceptíveis através do texto que se repete, de personagens chave (Laurent, Andy) e da exposição prévia de algumas imagens em sobreposição ou em montagem paralela. Em determinados momentos, não se sabe ao certo se a imagem que se vê é uma memória, imagem-lembrança, ou se é uma imagem-ação atuante no presente, como se o filme todo evocasse do começo ao fim o processo de duração conceituado por Bergson, em outras palavras, as imagens-lembrança estão eternamente se redimensionado em imagem-ação, modificando a matéria fílmica. No filme, a imagem todo tempo se reforça como memória, como, por exemplo, no solo do sax tenor executado na primeira parte do filme por Fred e que, na segunda parte, volta soando do rádio na oficina, perturbando Pete, os nos diálogos de Fred e Pete com o homem desconhecido, a cabana pegando fogo, o quarto 26, etc. A imagem ou é memória ou está na iminência de sê-la.
O portal da memória ou pra outra dimensão fica ainda mais evidente com o recurso da cortina cênica que brinca com a idéia do revelar e esconder, o acesso à memória mais fácil, sinestésica, ou à mais difícil.
No decorrer da trama, as personagens de Pete e Fred se fundem, confundem, parecem ser uma só pessoa, uma vez que suas memórias e ações se misturam, se correlacionam. Mais adiante, o homem desconhecido parece compor com os dois uma trindade de egos. São tão semelhantes que fica extremamente difícil dissociá-los, assim como acontece com Renée e Alice que são duas faces bipolares da mesma pessoa, seja no plano real, ou em algum lugar, na estrada perdida da mente de Fred.
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