segunda-feira, 4 de julho de 2011

Veludo Azul, por Ana Luiza Alencar



Existem muitas coisas sombrias neste mundo e a maioria dos filmes reflete o mundo em que vivemos. Os filmes são histórias, e histórias sempre implicam conflito. David Lynch provoca certo estranhamento pela criação não só de personagens bizarros, mas de um universo cercado pelo misterioso e pela violência. A única forma de entrar no seu universo é através da abstração. Na concepção do diretor, mais importante do que contar uma história é registrar uma atmosfera.

O verdadeiro poder do cinema, segundo o diretor, “não reside no simples fato de contar uma história, mas na maneira como ela é contada, na capacidade que se tem de criar um mundo, uma atmosfera ou uma sensação nas quais o espectador se veja imerso” (Tirard, 2006, p. 142). Em seu livro Em águas profundas, David Lynch comenta seu método de criação e o surgimento das idéias. O filme surge para ele em fragmentos, sendo o primeiro fragmento a peça central do quebra-cabeça, a que orienta todo o resto. Em Veludo Azul, o diretor comenta que isso surgiu primeiramente sob a forma de “lábios vermelhos, gramados verdes e a canção Blue Velvet interpretada por Bobby Vinton”, a idéia seguinte teria sido a visão de uma orelha sob a relva. Lynch enfatiza que ao se apaixonar por esta primeira idéia, logo mais fragmentos surgem, fazendo emergir toda a composição.

A textura é um elemento que Lynch gosta particularmente e usa em seus filmes para imprimir uma atmosfera. O diretor tem uma verdadeira fascinação por tudo o que é textura. A respeito disso, ele escreveu “não gosto necessariamente de corpos decompostos, mas existe uma textura extraordinária em um corpo decomposto, quando se filma isso em close, as texturas são maravilhosas” (2008, p.129).

Nelson Brissac Peixoto em seu livro América: imagens, observa que David Lynch foi diretamente influenciado pelo fotografo William Eggleston, identificado pelo autor como o principal mapeador dos subúrbios, dentre os fotógrafos americanos contemporâneos. Em Eggleston, assim como em Lynch, “os objetos e ambientes parecem tomados de tensão e violência, emanando a sensação de eminente tragédia. As imagens procuram fazer aflorar as fissuras que existem sob a fina camada de normalidade que recobre aquele ordeiro universo residencial. Estes subúrbios, a princípio uma reserva de tranqüilidade e paz, revelam-se ameaçadores e claustrofóbicos. O céu azul e cristalino que normalmente domina estas fotos vira indício de um terrível tormento interior”. (1989, p. 58)

Peixoto ressalta que Eggleston converte o local da domesticidade num lugar sinistro e nos conduz através dos mistérios escondidos no mais familiar (1989, p. 60). Veludo azul é de acordo com o autor, um dos mais argutos retratos cinematográficos da vitalidade e violência que se ocultam sob a aparente placidez da América interiorana. Peixoto enfatiza o uso da cor, uma vez que a subúrbia postula imediatamente a questão da cor.

Cercas brancas, gramados verdes, canteiros de flores, donas de casa... Toda a iconografia que nos remete a subúrbia. Porém são elementos da superfície, que camuflam sua verdadeira essência. É um mundo estranho, como dizem Jeffrey (Kyle MacLachlan) e Sandy (Laura Dern) repetidas vezes, se dando conta eles próprios de que a realidade que lhes cerca abriga mais mistérios do que fazia crer. A música acentua o clima de mistério, as ruas escuras e aparentemente calmas parecem ocultar algum perigo.

Como observa Frederic Jameson, o filme expressa a ideologia do “excepcionalismo americano”, da cidadezinha do interior que é muito melhor preservada em seus detalhes como um “simulacro”. Jameson ressalta que Lynch ao completar essa atmosfera, com uma high school e tudo o mais, “imita o mais autêntico dos filmes dos anos 50. Até uma psicanálise pop, bem ao estilo dos anos 50, pode ser evocada para explicar o conto de fadas, uma vez que além da perspectiva mítica e sociobiológica da violência da natureza, os acontecimentos do filme também são emuldorados pela crise da função paterna” (1997, p. 300).



REFERÊNCIAS

LYNCH, David. Em águas profundas: criatividade e meditação. Rio de Janeiro: Gryphus, 2008.
JAMESON, Frederic. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1997.
PEIXOTO, Nelson Brissac. América: imagens. São Paulo: Companhia das Letras; Rio de Janeiro: Videofilmes, 1989.
TIRARD, Laurent. Grandes diretores de cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

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