sábado, 25 de junho de 2011

"Blade Runner", por Renato Souto Maior



A cidade, de uma tomada geral, de cima, funciona como um grande cartaz onde os pixels vistos de longe configuram uma imagem nítida, compreensível, geral. Ao se aproximar do cartaz – ou da cidade – percebe-se, ao invés de algo uniforme, vários pontos, isolados. Como um macrocosmo a cidade vista de cima é um vislumbre muito importante para qualquer história que se aventure em ser contada neste ambiente; local-chave, cenário de tantas outras produções, encaixadas posteriormente, com certo desconforto, em um pseudo-gênero, não totalmente estabelecido, mas genuíno e repleto de características: o noir. “Blade Runner” começa com uma câmera lenta a adentrar a cidade futurista – uma pretensa Los Angeles do ano de 2019 – tão importante para a história, tamanha a magnitude e detalhismo com que foi criada e pensada. O futuro é reinventado através de carros e painéis pretensamente modernos, mas calcados dentro de uma estética completamente oitentista, década de produção do filme. Essa visão de um futuro não tão distante é incrivelmente desenvolvida por meio de referências dos próprios anos 80, e não só deste período, mas de tantos outros, como o clássico e o barroco. Essa junção feliz e curiosa produz uma obra com força e impacto visuais incontestes no que diz respeito ao deslumbramento diante de um universo lindamente construído e elaborado.

Repleto de características próprias do “gênero” noir – femme fatale, detetive em ação, passagens noturnas, sombras, cidade como vício – “Blade Runner” se encaixa perfeitamente nesta categoria, elevando todos estes elementos a outro patamar artístico e visual. É um noir futurista, com toda sua base muito bem enraizada em um moralismo ancestral. Se os cenários, a estética e a história se desenvolvem em ambiente “moderno” e futuro, as ações e pensamentos dos personagens reproduzem uma arcaica maneira de agir. A personalidade do personagem principal, o detetive caçador de andróides, interpretado por Harrison Ford, é retirada e reutilizada como se fosse a de um detetive qualquer, de algum filme do gênero, com todos os preceitos e semelhanças morais tão comumente presentes em qualquer personagem protagonista masculino das mais diversas produções noir de décadas atrás. A ideia é que o aperfeiçoamento na técnica de fabricar andróides está tão avançado que os modelos mais novos – no caso os Nexus 6 – começam a reproduzir e a de fato vivenciar experiências humanas, como a capacidade de sentir emoções, em geral. Por mais que exista uma tentativa em “humanizar” a personagem femme fatale do filme, ela, de fato, em uma única cena, é colocada dentro de sua devida origem, quando o detive Deckard – Ford – a manipula e a trata como um genuíno “boneco”, ou “robô”. Seu envolvimento afetivo com a andróide é muito bem trabalhado e mostrado, mas apenas no âmbito da misce-en-scene e da coreografia com que os andróides do filme se portam; indo além, em um campo psicológico, tem-se uma retratação frágil e insatisfatória da “robô” que aparentemente pode amar. Suas ações são totalmente subordinadas ao detetive e sua presença no filme funciona muito mais como uma artimanha para criar uma empatia possível entre o espectador e esta andróide em especial, já que os outros são superficialmente criados como seres portadores de uma “rebeldia” e “crueldade” natas a sua natureza robótica.

Se “Blade Runner” peca em aprofundamento na composição de seus personagens, ganha, por outro lado, em direção de arte, trilha sonora e figurinos. São todos impecavelmente arranjados e alinhados, em uma criação “nova”, mas totalmente calcada em elementos clássicos e contemporâneos a década de 80. O caráter oitentista das ruas desta Los Angeles do furuto grita em todas as cenas – o uso do neon, em exagero, tenta remeter a algo de moderno, em um futurismo datado, mas charmoso. Esta condição de tentativa de criação “perfeita” de um futuro já se mostrou impossível de ser alcançada, com total sucesso, em várias outras produções, como, em especial, no filme “2001 – Uma Odisséia no Espaço”. O trunfo destas produções está, justamente, nesta mescla de contemporâneo com uma interpretação de algo que ainda virá a existir. Em “Runner” há, no entanto, uma clara referência a década de 80, e a outros períodos da moda, da arquitetura e da pintura. O pastiche encontrado na sua composição artística o torna jóia rara em meio a outros filmes que, com pretensão de recriar algo totalmente “futurista” se perdem na imprevisibilidade e impossibilidade de uma recriação fiel àquilo que ainda estará por vir. Ao assumir e trabalhar seus cenários, figurinos, objetos de cena e a cidade em uma mistura interessante e crível – até porque a criação de um futuro deve ser calcada no passado, pois a ligação entre os dois mundos sempre existirá, como ainda existe – a produção de Ridley Scott só aumenta sua valia e sua perpetuação como filme de visual esplendoroso e exótico.

A cidade no filme recria e retoma a mesma importância que tem em todos os filmes noir produzidos; em seus becos, ruelas e grandes avenidas, à noite, a trama se desenrola. Aqui a sombra está muito presente em várias cenas, e até o dia retratado no filme é de uma obscuridade particular, como em um pôr-do-sol, em um tom alaranjado, puxado mais para a noite que está prestes a se iniciar. As panorâmicas da cidade são mostradas aos montes, e a ideia do macrocosmo, de algo maior, que engole e sufoca quem, lá embaixo, se encontra “preso” a este universo gigantesco de edificações e arquitetura retumbante, prevalece durante todo o filme. A modernidade apresentada no início, na cena de abertura, onde uma música repleta de sintetizadores com instrumentos clássicos é tocada, enquanto a cidade é apresentada, em seu macrocosmo, remete, inevitavelmente, a qualquer grande megalópole; mas o que vem logo a mente é New York, e não Los Angeles. De fora a aparência desta grande cidade pode até ser algo uniforme, retilíneo, grandioso; mas ao adentrar seu espaço, temos uma cidade calcada na intercessão de algo modernoso com tantas outras localidades presas ao passado, com informações “modernas”, em uma junção que dá vivacidade ímpar a uma cidade que se quer passar por futurista. Não é possível negar o passado, mesmo em uma cidade futura hipotética. Cidade esta imprescindível para o desenrolar de uma trama totalmente fincada no “gênero” noir; onde o espaço urbano enclausura seus personagens em um moralismo iluminado pelas tantas luzes “neon” de um futuro pretensamente criado a partir de material rico dos anos 80. Três tempos brilhantemente trabalhos em toda a riqueza de seus cenários; o passado – noir -, o contemporâneo – anos 80 – e o tema - o futuro.

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