sexta-feira, 24 de junho de 2011

Desencanto (1946) – David Lean, por Stamberg Junior


“Sou uma mulher simples. Achei que essas coisas tão arrebatadoras não acontecessem com pessoas comuns.” Essas são as palavras da personagem Laura Jesson, protagonizada por Celia Johnson, em um de seus flashbacks. Laura é uma mulher de meia-idade, classe média, casada e mãe de dois filhos. Tem o hábito de todas as quintas-feiras ir a Milford fazer compras, assistir um filme, alugar um livro, tomar um chá. Mas o destino comumente traz surpresas e a sua rotina está prestes a ser quebrada para sempre: tudo por causa de um grão de areia em seu olho. O incidente levou-a a conhecer na estação de trem da cidade o Dr. Alec Harvey (Trevor Howard), também comprometido, pai de dois filhos e ambicioso em fazer o bem através de sua profissão.

A partir desse encontro surge uma amizade ingênua e pura que mais tarde se transformará em amor impossível. Mas, nenhum dos dois é livre para amar. Estão presos a valores sociais, e a traição ainda é vista como sórdida e repugnante na sociedade em que vivem. Há ainda o sentimento de culpa que consome os personagens e os deixa relutantes, trazendo conflitos nessa relação extraconjugal. Apesar disso, o amor deles é inabalável e ambos preferem continuar, e pagar o preço. É quando, Alec recebe uma proposta de emprego na África e terá que deixar a sua amada em tempo indeterminado e sem probabilidade desse tempo tornar-se determinado. A cidade no filme é dividida em dois momentos. No primeiro momento, é uma cidade que liberta as pessoas para o amor. Uma cidade comercial, urbanizada e suburbana, que abre suas portas à felicidade do casal e que proporciona momentos divertidos e agradáveis: seja no cinema, no bosque ou na cantina da estação. O segundo momento é uma cidade bastante parecida com o filme noir: negra, sombria, com chão escorregadio, com sua chuva triste, seu trem escuro e seu amor trágico, insatisfeito e frustrado. A viagem no trem até seu destino final, que antes era repleta de sonhos e almejos, agora é simplesmente passageira, assim como foi o relacionamento do casal. Isso remete a uma música da banda pernambucana Mombojó, que tem o mesmo título do filme:

No meu quarto deixei as lágrimas
E o desencanto
Carreguei comigo a minha solidão
As cores mudaram de tom
E as luzes cegaram minha vista

Passo um passo
Mas eu não encontro o chão
Pois ainda estou a sonhar
Com você a me beijar

Perdi os sentindos
Não tenho mais direção
Todos os caminhos
Me levam à oração

Ah, desencanto
Ah, desencanto
(Desencanto – Mombojó)

Sob a direção de David Lean, Brief Encounter ou Desencanto, é baseado em um roteiro teatral de Noel Cowards e apesar do longa não ser uma superprodução cinematográfica é um dos melhores melodramas do mundo. Esse gênero apelidado de “filme para mulher chorar” tendo geralmente o feminino como público alvo, traz uma introspecção e melancolia típicas do mesmo. Pelo próprio roteiro, percebe-se a fusão da melosidade com o drama, característica principal do gênero. O longa também traz o flashback da protagonista, fazendo o filme “começar pelo fim” e o próprio back projection. Vale a pena citar a atuação das personagens secundárias, como a amiga insuportável Dolly Messiter (Everley Gregg), o casal ‘enrolado’ Albert Godby (Stanley Holloway) e Myrtle Baron (Joyce Carey), além claro, do marido da Laura o Sr. Fred Jesson (Cyril Raymond), um homem amável, mas nem um pouco delicado.

Desencanto é um filme repleto de aforismos (que vêem da personagem principal) e que deixa os sentimentos à flor da pele. Questões intrigantes são levantadas no longa: Afinal, o importante é amar e desrespeitar “os papéis sociais coercitivas” ou viver neles e ser infeliz? A distância pode separar e acabar com um amor verdadeiro? A própria personagem responde:“Não pode durar. Esta amargura não pode durar. Tenho que me lembrar disso e me controlar. Nada é eterno. Nem a felicidade, nem a amargura... nem mesmo a vida dura muito.Chegará um dia em que deixará de ser importante.Eu poderei olhar para trás e dizer calma e alegremente: ‘Como fui boba’. Não, que esse momento não chegue.Quero lembrar-me sempre, de cada minuto...até o final...até o final da minha vida.”

Referências:




Nenhum comentário: