domingo, 7 de novembro de 2010

Arte e Ilusão, por Luiz Marcos de Carvalho


O enigma do estilo: o que vem a ser isso para Gombrich? Por que a representação do mundo visível difere tanto de época para época e de região para região? Será que os pintores do Egito antigo percebiam a natureza de modo diverso do nosso? São questões como essas, relacionadas com o conceito de estilo, que interessam à história da arte, mas cujas respostas estão fora do alcance dos métodos históricos. O historiador da arte completa seu trabalho com a descrição das mudanças ocorridas. Ele não investiga as possíveis causas dessas mudanças. Ele descreve diferenças de estilo entre as diversas escolas de arte, além de identificar e sistematizar as obras de arte desde seus primórdios até a sua respectiva época.

Houve tempo em que a análise dos métodos de representação era tarefa do crítico de arte. Ele, geralmente, partia da premissa de que a exatidão representativa presente nas obras de arte de um determinado período era fruto de uma habilidade que evoluía cada vez mais através das eras. Para os críticos, a arte egípcia revelava métodos infantis de representação porque isso era o melhor que ela podia fazer. Esse modo de enfocar o enigma do estilo, todavia, ruiu por volta da primeira metade do século XX em conseqüência da grande revolução artística que ocorreu na Europa. Chegou ao fim, então, a visão estética que identificava a excelência artística com a exatidão fotográfica, com a representação convincente.

O problema da ilusão na arte foi, então, abandonado como algo irrelevante pelos críticos, ficando dessa forma, completamente órfão, uma vez que também não fazia parte do objetivo dos historiadores da arte.

As diversas formas com que somos enganados pelos nossos sentidos, (ilusão) é um tema que me fascina.

O livro de Gombrich propõe, entre outros objetivos, o estudo dos aspectos ilusórios observados na arte pictórica, através dos tempos.

O tema da ilusão tem profundas raízes na Física e na Psicologia e é fonte de discussões em outros campos bem diversos e, esse é outro aspecto que faz aumentar ainda mais o meu interesse. O autor diz: “Eu nunca imaginei, ao embarcar nas minhas explorações, a que campos longínquos me levaria o assunto “ilusão””.

Desconfio que o tema conduz para ainda mais longe do que pensava o autor.

Tendo sido estudante de Física, embora sem concluir o bacharelado, continuei com meu interesse por ela, como um “outsider”, um autodidata, um amador. Amador,lembra amante e um amante, um apaixonado, jamais perde a atração pela amada, enquanto durar sua paixão, ainda que se encontre bem distante dela.

Penso que falta ainda uma palavra sobre o assunto a ser dada pela Física no futuro mais precisamente pelos princípios da Física quântica, quando ela tiver progredido o bastante para analisar, à luz de seus conhecimentos, os fenômenos mentais e psicológicos, como interações de partículas elementares, em outras palavras quando existir uma nova ciência que se poderia denominar “Psicologia Quântica.“

No contexto da disciplina “Estética e Cultura Visual” foi-nos dada a incumbência de ler e comentar um capítulo do livro de Gombrich, a que nos referimos acima. Há pelo menos duas maneiras de realizar a tarefa: a primeira seria apenas livrar-se do trabalho, juntando e colando idéias expostas pelo autor, modificando aqui e ali algum termo ou frase, cumprir a exigência da professora e ir levando o curso. A segunda seria refletir com maior profundidade, buscar em seu interior as implicações e reverberações daquilo que expõe o autor, associando-o com sua experiência de vida e com seus outros conhecimentos. Optei pela segunda.

O primeiro ponto do texto que me atraiu fortemente foi aquele ilustrado por uma figura que tanto pode ser vista como a cabeça de um coelho, quanto a de um pato. Interessante e muito sugestivo é o fato de que mesmo quando conseguimos identificar um e outro, não o podemos fazer simultaneamente. Existe sempre uma ínfima fração de segundo que transcorre entre uma e outra percepção. Gombrich ilustra esse ponto com a experiência feita por Kenneth Clark, historiador de arte e diretor de museu britânico, ao tentar capturar “de tocaia” uma ilusão, quando observava um quadro de Velásquez. De uma distância, ele via manchas de pigmentos e marcas de pinceladas que se transformavam numa visão de realidade à medida que ele se afastava da tela. Ele queria descobrir uma distância na qual os dois tipos de visão estivessem presentes ao mesmo tempo. Não conseguiu. Não existe essa distância que ele buscava.

Depois, associada à formação dessas imagens, há a questão do que é “ver” e qual a diferença para o que se entende por “sensação visual”. Os raios luminosos que emanam de um dado objeto convergem para os nossos olhos e formam uma imagem do objeto no fundo de nossa retina. É a “sensação visual” Essa imagem é então transmitida, através dos nervos óticos, para o cérebro, que a interpreta e reenvia a mensagem decodificada e assim “vemos” o referido objeto. Qual a “realidade concreta” do objeto? Não sabemos o que isso quer dizer. A única “realidade do objeto”, com a qual temos contato, é proveniente dessa interação entre raios luminosos, retina, nervos óticos e cérebro.

Algo similar ocorre em relação aos demais sentidos. As percepções oriundas da audição, olfato, paladar e tato, são também decorrentes de interações análogas. Mudam apenas os sentidos que promovem o contato com os objetos, as terminações
nervosas e também as regiões cerebrais ativadas.

Estariam certos os pintores impressionistas quando afirmavam que “viam o mundo como o pintavam, que reproduziam a imagem na retina?”

Gombrich examinou, em seu livro, apenas a ilusão visual, uma vez que se restringiu à arte pictórica. Mas, a análise científica sobre o que ocorre na formação de nossas percepções, já nos leva a questionar o que é realidade e a rejeitar a interpretação dos pintores impressionistas.

A Física, estudando cada vez mais profundamente a matéria, descobriu que toda ela era formada de pequenas partículas, a que chamou de átomos (do grego, indivisíveis), os quais, por sua vez, se mostraram ser constituídos por outras partículas ainda menores e, que entre elas a maior parte era espaço vazio. Os cientistas viram, por assim dizer, a matéria, ou sua “realidade concreta”, escorrer por entre seus dedos, de tal modo que passaram a questioná-la.

Isso vem ao encontro da doutrina budista exposta há mais de 2.500 anos, que afirma:”Forma é vazio e vazio é forma. Do mesmo modo, sensação, concepção, discriminação e consciência são também assim.” Para os budistas o nosso mundo “real” é ilusório, onírico e, sendo um sonho em que estamos enredados, a libertação vem apenas com o “despertar”. Buda significa “aquele que despertou”.

Após essa enorme digressão, voltemos ao texto. Uma ilusão visual muito interessante mencionada nele é aquela que pode ser demonstrada diante de um espelho. Quando vemos nossa imagem num espelho meio embaçado como o de um banheiro após um banho quente, poderemos verificar que, para nossa grande surpresa, a área da região no espelho que corresponde ao nosso rosto, não tem as mesmas dimensões deste, mas que é bem menor. Para isso basta fazer clarear no espelho a área que corresponde ao rosto. Veremos então que, a nossa impressão de que ela seria do tamanho de nosso rosto real, desaparece tão facilmente quanto os vapores de água que embaçavam o espelho. Com conhecimentos de geometria elementar, aquela que se aprende ou deveria se aprender no curso médio, pode-se demonstrar que as dimensões do rosto no espelho correspondem exatamente à metade das dimensões do rosto real. Para completar, a imagem virtual “atrás do espelho” tem as mesmas dimensões do objeto real (no caso, nosso rosto), mas a região delimitada por essa imagem no espelho é que é igual à metade, embora, ilusoriamente nos cause a impressão de que ambas têm as mesmas dimensões. Outra forma de verificar esse fato é que podemos ver nosso rosto inteiro em um espelho que tenha a metade de suas dimensões.

Os antigos gregos diziam “que se maravilhar é o primeiro passo no caminho da sabedoria”.

Segundo Gombrich o principal objetivo de seu livro é “restaurar o sentido do maravilhoso diante da capacidade do homem para conjurar graças a formas, linhas, nuances ou cores, aqueles misteriosos fantasmas da realidade visual a que chamamos pinturas”.

A “mimesis”, ou imitação permeava toda discussão sobre arte na antiguidade. Alguns historiadores da arte, entre eles Vasari (1511-1574) cometeram o erro de não separar a idéia de invenção dos meios de representação, da idéia de imitação da natureza. Quem daria a palavra final sobre a história da Arte, seria por acaso, a psicologia da percepção? Esse debate mostrou que a ciência permaneceria neutra e, que caberia exclusivamente ao artista a decisão de apelar para as descobertas científicas e de que forma utilizá-las em seu trabalho, tudo por sua conta e risco.

Nos fins do século XIX, “a confortável noção da imitação da natureza, ruiu por completo deixando perplexos artistas e críticos”, graças principalmente, a dois pensadores alemães, Konrad Fiedler e Adolf Von Hildebrand. Este publicou em 1893 o livro “O problema das Formas nas Artes Figurativas”, que teve tremenda repercussão. Nele , o autor se propunha a analisar o complexo processo psicológico responsável pela transformação das impressões dos sentidos em “fatos mentais”.

Esta última frase traduz aquilo que é um dos maiores enigmas para a ciência e para a medicina ainda hoje. É verdade que se fez grande progresso nesse campo nas últimas décadas, porém, a transformação das impressões visuais em “fatos mentais” ainda é cercada de mistério e está longe de uma explicação definitiva, se é que ela existe.

Recordo um livro de um famoso neurologista, Oliver Sacks, no qual relatava casos curiosos e intrigantes de problemas neurológicos que modificavam radicalmente a percepção das pessoas afetadas. Um dos casos, que deu título ao livro era o de um “Homem que confundiu sua mulher com o chapéu”. Nesse caso, o homem possuía visão normal, a imagem que se formava em sua retina quando olhava para sua mulher era perfeita, porém, da retina ao cérebro havia a misteriosa transformação e, uma determinada região do seu cérebro, com uma lesão específica, decodificava aquela imagem de sua mulher, a qual era então percebida, ou “vista”, como um chapéu.

Voltando à questão da imitação da natureza na arte, encontramos uma palestra
proferida por Gombrich no XX Congresso Internacional de História da Arte, em 1983, com o título: “História da Arte e Psicologia em Viena há 50 anos “.

Gombrich, que foi discípulo de Schlosser, transcreve em seu artigo a seguinte afirmação de seu mestre: “o que importa na arte primitiva não é a imitação da natureza, mas (exatamente como acontece com a arte infantil) “as noções gravadas (Vorstellungen) que habitam a imaginação”. Mais adiante acrescenta: “Meu querido mestre Schlosser era especialmente escrupuloso com a crítica. Era extremamente cauteloso ao fazê-la. Mas aqueles que o conheceram também sabem que essa atitude reservada encobria um imenso conhecimento e muitos anos de experiência também no campo aqui referido. É verdade que depois que ele se identificou com o pensamento de Benedetto Croce, os problemas na fronteira entre a psicologia e a teoria da arte, ficaram relegados a um segundo plano, mas quem abre a coleção dos seus ensaios publicados sob o título de “Präludien” ( e também verifica as referências bibliográficas) logo descobrirá como ele era completamente entendido nessas questões.

O texto de Gombrich nos ensina muitas coisas, nos dá muitas informações sobre pintores, historiadores de arte, críticos, pensadores e filósofos que têm alguma relação com o tema do livro, e, o que relacionei acima é apenas o que me chamou mais a atenção, sem que tenha a pretensão de fazer um trabalho exaustivo ou sistemático. Como diz Lin Yutang, escritor chinês, naturalizado americano em seu livro, “A importância de Viver”, falando da arte de escrever: “O que se escreve é bom ou mau, segundo seu encanto e sabor, ou falta de encanto ou sabor. Para esse encanto não podem fixar-se regras. O encanto surge do escrito como sobe o fumo do fornilho de um cachimbo, ou como se eleva uma nuvem do alto de uma colina, sem saber aonde vai. O melhor estilo é o “das nuvens flutuantes e das águas fluentes”, como a prosa de Su Tungp’o. Penso que muitos que escrevem suas teses de mestrado ou doutorado poderiam aprender com ele a torná-las mais interessantes e mais lidas na medida em que começassem a fazer a separação do que é essencial daquilo que não importa verdadeiramente. Muitos confundem um estilo obscuro de escrever com profundidade. Pensam que o escritor que é difícil de ser de ser compreendido, que escreve de modo obscuro é o mais profundo, e que os leitores é que não têm a capacidade para alcançar o seu elevado patamar. Pode até haver uma situação como essa, porém na grande maioria dos casos o que ocorre é que o escritor não sabe bem do que está falando e, por isso se esconde atrás de um estilo rebuscado e confuso. “A simplicidade é, pois, paradoxalmente, o signo externo e o símbolo da profundidade do pensamento” (Lin Yutang, op. Cit, pg. 85.)

Com isso, mais uma vez, saí da estrada oficial do trabalho escolar, mas, ao escolher um atalho ou uma trilha nova para chegar ao destino, encontrei mais prazer em realizá-lo, do que se o tivesse feito de forma mais convencional. Como dizia o meu guru OSHO: “ o único critério que importa, que deve servir de orientação na vida é o da felicidade.”

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