segunda-feira, 4 de julho de 2011

O estranho mundo de Lynch, por Cecília Shamá


“A candy colored clown they call the sandman, Tiptoes to my room every night” – Roy Orbison


Quem assiste e gosta de Lynch pode se considerar um pervertido protegido pela espessura da película cinematográfica. Deixamos na mão do cineasta nossos maiores fetiches, os assassinatos que gostaríamos de cometer, os desvios sexuais dos quais não falamos em voz alta, a atração pela violência e a nudez dos corpos e dos vergonhosos gostos e prazeres sensoriais. Os filmes de David Lynch são como um mural no qual podemos tocar as texturas e camadas, um Pollock neo-noir, um lugar onde assinamos um contrato de permanecer com a mente aberta, deixando qualquer vergonha e tiques sociais do lado de fora da porta. Veludo Azul (1986) é puro Lynch e, portanto, puro prazer cinematográfico tântrico.

A primeira tomada do longa nos mostra as cercas brancas e os jardins perfeitos, onde casinhas iguais integram seres humanos comuns em diferentes quatro paredes. Pois são nos interiores das construções onde encontramos a verdade, sobre quem somos e como vivemos. Não nas cercas impecáveis que dividem os vizinhos espacial e emocionalmente, mas nas formigas que carregam pedaços de transgressões nossas como lhes foi resignado a fazer. Os pequeninos insetos retiram nossas sujeiras numa metáfora perfeita: quando acumulamos desvios, eis que eles surgem nos mostrando que alguém está observando, de vez em quando limpando o trabalho sujo, invariavelmente evidenciando a gente para nós mesmos e pro mundo.

Nessa mesma seqüência nos é mostrado um homem regando seu jardim e, escatologicamente sofrendo um acidente com a mangueira. Este homem é o pai de nosso protagonista, Jeffrey (Kyle MacLachlan) uma espécie de filho pródigo que retorna para a monotonia de sua cidadezinha natal para averiguar o estado do pai. Em suas andanças por outros gramados, encontra uma orelha e o fio condutor da narrativa de Veludo Azul. A sujeira que as formigas lhe entregam o levam a pessoas e vontades bizarras. Mesmo nas pequenas cidades, (que o diga a série Twin Peaks) como a esperar a pureza através da pequeneza geográfica, erroneamente configuramos monotonia, distanciamento, valores ultrapassados, à figura da cidade do interior, bucólica, casta e, portanto, segura.
Pois todo o filme poderia ser resumido em uma palavra: voyeurismo. De quando Jeffrey observa a cantora Dorothy Vallens (Isabela Rossellini) em cena quando da linda fotografia ao vermos literalmente o nome do filme se materializar na pele da atriz, em seu vestido e pele de um erótico veludo azul. Ou na cena do apartamento de Dorothy, quando assim como Jeffrey espionamos pela fresta da porta sua relação esdrúxula com Frank (Dennis Hopper) que estapeia a mulher seminua à sua frente, esta entregue numa espécie de torpor irritante, tanto para Frank quanto para nós, em um sexo projetado através da exacerbação do recalque da libido. De ambos, Dorothy e Frank, diga-se. E enquanto Jeffrey busca respostas para a dependência doentia da cantora para com aquele homem desconhecido, invadindo lugares proibidos, escutando através de portas, olhando pela ótica de alguém que está dentro de um carro para um prédio cheio de possibilidades, nos posicionamos como espectadores do desconhecido, curiosos em saber os segredos sombrios dos outros, para que justifiquemos os nossos.

É quando entra em cena, paradoxalmente à morena Rossellini, a loirinha virginal do filme e namoradinha de Jeffrey, Sandy, interpretada pela musa do diretor Laura Dern. Estabelecendo mais um jogo de fotografia física, a oposição entre o claro e o escuro, mas sem tanta oposição, uma vez que Dorothy se mostra mais vulnerável e prejudicial à si e aos outros do que a mocinha de cabelos dourados e vestidos florais, Lynch passa a perna em qualquer significado sensorial que busquemos a curto prazo. Decantar a experiência é o essencial em todos os seus trabalhos, seja em Império dos Sonhos (2006), no tocante O homem elefante (1980), no romântico Coração Selvagem (1990) ou no sonhador e desiludido Cidades dos Sonhos (2001), David Lynch existe, pois nós existimos, e vice-versa.

O epílogo do filme soa como uma expressão resignada de um artista que não se oprime pelo mundo estranho e pelas cidadezinhas que nos cercam (a frase "é um mundo estranho” fecha o filme) e sabemos que a leitura escatológica e deturpada do mundo pelos olhos de Lynch toma forma fílmica através das múltiplas personalidades que escondemos por baixo dos panos, quando o veludo enfim, é encontrado e carregado para longe pelas formigas impiedosas. Da cidade grande para as metrópoles, de David Lynch para seu cinema e para seus espectadores.

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