sábado, 25 de junho de 2011
"Blade Runner", por Renato Souto Maior
A cidade, de uma tomada geral, de cima, funciona como um grande cartaz onde os pixels vistos de longe configuram uma imagem nítida, compreensível, geral. Ao se aproximar do cartaz – ou da cidade – percebe-se, ao invés de algo uniforme, vários pontos, isolados. Como um macrocosmo a cidade vista de cima é um vislumbre muito importante para qualquer história que se aventure em ser contada neste ambiente; local-chave, cenário de tantas outras produções, encaixadas posteriormente, com certo desconforto, em um pseudo-gênero, não totalmente estabelecido, mas genuíno e repleto de características: o noir. “Blade Runner” começa com uma câmera lenta a adentrar a cidade futurista – uma pretensa Los Angeles do ano de 2019 – tão importante para a história, tamanha a magnitude e detalhismo com que foi criada e pensada. O futuro é reinventado através de carros e painéis pretensamente modernos, mas calcados dentro de uma estética completamente oitentista, década de produção do filme. Essa visão de um futuro não tão distante é incrivelmente desenvolvida por meio de referências dos próprios anos 80, e não só deste período, mas de tantos outros, como o clássico e o barroco. Essa junção feliz e curiosa produz uma obra com força e impacto visuais incontestes no que diz respeito ao deslumbramento diante de um universo lindamente construído e elaborado.
Repleto de características próprias do “gênero” noir – femme fatale, detetive em ação, passagens noturnas, sombras, cidade como vício – “Blade Runner” se encaixa perfeitamente nesta categoria, elevando todos estes elementos a outro patamar artístico e visual. É um noir futurista, com toda sua base muito bem enraizada em um moralismo ancestral. Se os cenários, a estética e a história se desenvolvem em ambiente “moderno” e futuro, as ações e pensamentos dos personagens reproduzem uma arcaica maneira de agir. A personalidade do personagem principal, o detetive caçador de andróides, interpretado por Harrison Ford, é retirada e reutilizada como se fosse a de um detetive qualquer, de algum filme do gênero, com todos os preceitos e semelhanças morais tão comumente presentes em qualquer personagem protagonista masculino das mais diversas produções noir de décadas atrás. A ideia é que o aperfeiçoamento na técnica de fabricar andróides está tão avançado que os modelos mais novos – no caso os Nexus 6 – começam a reproduzir e a de fato vivenciar experiências humanas, como a capacidade de sentir emoções, em geral. Por mais que exista uma tentativa em “humanizar” a personagem femme fatale do filme, ela, de fato, em uma única cena, é colocada dentro de sua devida origem, quando o detive Deckard – Ford – a manipula e a trata como um genuíno “boneco”, ou “robô”. Seu envolvimento afetivo com a andróide é muito bem trabalhado e mostrado, mas apenas no âmbito da misce-en-scene e da coreografia com que os andróides do filme se portam; indo além, em um campo psicológico, tem-se uma retratação frágil e insatisfatória da “robô” que aparentemente pode amar. Suas ações são totalmente subordinadas ao detetive e sua presença no filme funciona muito mais como uma artimanha para criar uma empatia possível entre o espectador e esta andróide em especial, já que os outros são superficialmente criados como seres portadores de uma “rebeldia” e “crueldade” natas a sua natureza robótica.
Se “Blade Runner” peca em aprofundamento na composição de seus personagens, ganha, por outro lado, em direção de arte, trilha sonora e figurinos. São todos impecavelmente arranjados e alinhados, em uma criação “nova”, mas totalmente calcada em elementos clássicos e contemporâneos a década de 80. O caráter oitentista das ruas desta Los Angeles do furuto grita em todas as cenas – o uso do neon, em exagero, tenta remeter a algo de moderno, em um futurismo datado, mas charmoso. Esta condição de tentativa de criação “perfeita” de um futuro já se mostrou impossível de ser alcançada, com total sucesso, em várias outras produções, como, em especial, no filme “2001 – Uma Odisséia no Espaço”. O trunfo destas produções está, justamente, nesta mescla de contemporâneo com uma interpretação de algo que ainda virá a existir. Em “Runner” há, no entanto, uma clara referência a década de 80, e a outros períodos da moda, da arquitetura e da pintura. O pastiche encontrado na sua composição artística o torna jóia rara em meio a outros filmes que, com pretensão de recriar algo totalmente “futurista” se perdem na imprevisibilidade e impossibilidade de uma recriação fiel àquilo que ainda estará por vir. Ao assumir e trabalhar seus cenários, figurinos, objetos de cena e a cidade em uma mistura interessante e crível – até porque a criação de um futuro deve ser calcada no passado, pois a ligação entre os dois mundos sempre existirá, como ainda existe – a produção de Ridley Scott só aumenta sua valia e sua perpetuação como filme de visual esplendoroso e exótico.
A cidade no filme recria e retoma a mesma importância que tem em todos os filmes noir produzidos; em seus becos, ruelas e grandes avenidas, à noite, a trama se desenrola. Aqui a sombra está muito presente em várias cenas, e até o dia retratado no filme é de uma obscuridade particular, como em um pôr-do-sol, em um tom alaranjado, puxado mais para a noite que está prestes a se iniciar. As panorâmicas da cidade são mostradas aos montes, e a ideia do macrocosmo, de algo maior, que engole e sufoca quem, lá embaixo, se encontra “preso” a este universo gigantesco de edificações e arquitetura retumbante, prevalece durante todo o filme. A modernidade apresentada no início, na cena de abertura, onde uma música repleta de sintetizadores com instrumentos clássicos é tocada, enquanto a cidade é apresentada, em seu macrocosmo, remete, inevitavelmente, a qualquer grande megalópole; mas o que vem logo a mente é New York, e não Los Angeles. De fora a aparência desta grande cidade pode até ser algo uniforme, retilíneo, grandioso; mas ao adentrar seu espaço, temos uma cidade calcada na intercessão de algo modernoso com tantas outras localidades presas ao passado, com informações “modernas”, em uma junção que dá vivacidade ímpar a uma cidade que se quer passar por futurista. Não é possível negar o passado, mesmo em uma cidade futura hipotética. Cidade esta imprescindível para o desenrolar de uma trama totalmente fincada no “gênero” noir; onde o espaço urbano enclausura seus personagens em um moralismo iluminado pelas tantas luzes “neon” de um futuro pretensamente criado a partir de material rico dos anos 80. Três tempos brilhantemente trabalhos em toda a riqueza de seus cenários; o passado – noir -, o contemporâneo – anos 80 – e o tema - o futuro.
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"Crepúsculo dos Deuses", por Ricardo Duarte
Se Norma Desmond visse Crepúsculo dos Deuses, detestaria, pois ele é recheado de diálogos, e é neles que o filme encontra grande parte de sua força. Delicioso retrato irônico e ácido da indústria cinematográfica, o filme transforma as grandes estrelas do passado em seres patéticos e dignos de pena.
A premissa da história é bastante simples: protagonista reconta seu passado, sendo o diferencial a questão do seu narrador estar morto enquanto narra. O filme tem momentos de humor sutil, não dependente dos diálogos, como podemos perceber na cena em que o diretor DeMilles fala para Norma que as coisas mudaram, a câmera recua, e nós vemos que ele está usando botas de equitação, coisa bastante antiquada. Tudo se encaixa perfeitamente no filme: figurino, locações e atores (fator de destaque, pois eles são todos espetaculares).
Tendo como enredo a recontagem da história do protagonista, a questão das memórias é bastante importante. Porém, ao contrário de filmes como Amarcord (Federico Fellini) ou Eu me Lembro (Edgar Navarro), a memória aqui não é o elemento principal da narrativa, sendo apenas o meio de contar e dar prosseguimento a narrativa, não tendo a verdadeira força caótica e inexplicável das lembranças humanas (característica que os dois filmes citados tentam mostrar), mas apenas apresentado-a como um encadeamento lógico de fatos.
Vem-se até agora falando apenas da memória como forma estrutural do filme, entretanto, tão importante (e talvez mais fecunda) é a memória como elemento presente na própria história. Não apenas a memória, mas, especialmente, a nostalgia.
Temos em Norma Desmond uma personagem extremamente nostálgica, e completamente assombrada pelo fantasma do passado. Tendo suas memórias dos tempos de grandeza como força e maldição, a atriz vive num mundo de recordações e saudades. Na sua busca por seu tempo perdido, isolada em sua mansão, apenas com um mordomo (quer coisa mais anacrônica?) e seus velhos filmes como companhia, aliena-se dos tempos modernos, mantendo-se presa em formas de pensamentos de sua época, desprezando as atuais. Desprezo que fica claro no roteiro escrito por ela, que prioriza as expressões faciais em detrimento dos diálogos (que, para ela, é a ruína do “verdadeiro cinema”). Norma é a própria representação da grande estrela de outrora que, ao ver que seu tempo passou, entra em desespero, culpando o “novo cinema” (“Eu sou grande, os filmes é que ficaram pequenos”) e o desaparecimento da época dos grandes atores (“Eles pegaram os ídolos e os destruíram, os Fairbankses, os Gilberts, os Valentinos! E quem eles têm agora? Uns ninguéns!”). Importante também lembrar a última cena, uma das coisas mais perturbadoras da história do cinema: numa mistura de horror-drama, vemos uma Norma completamente louca achar que está atuando, enquanto, na verdade está sendo presa. O diretor ainda nega-lhe o seu último pedido (um close-up), pois quando ela se aproxima da câmera, perde-se o foco e o filme acaba.
Mas não apenas Norma é louca no universo do filme. Ela apenas externaliza algo que é presente em quase todos os personagens. Billy Wilder deixa transparecer que só há duas possibilidades de futuro para as pessoas que trabalham naquela indústria de fantasias: a loucura ou a total perda de moralidade. A Hollywood demonstrada no filme cumpre um papel determinista no comportamento das pessoas, moldando-as e quase sempre mostrando o que elas têm de pior. A cidade aqui cumpre seu papel na decadência humana.
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sexta-feira, 24 de junho de 2011
Desencanto (1946) – David Lean, por Stamberg Junior
“Sou uma mulher simples. Achei que essas coisas tão arrebatadoras não acontecessem com pessoas comuns.” Essas são as palavras da personagem Laura Jesson, protagonizada por Celia Johnson, em um de seus flashbacks. Laura é uma mulher de meia-idade, classe média, casada e mãe de dois filhos. Tem o hábito de todas as quintas-feiras ir a Milford fazer compras, assistir um filme, alugar um livro, tomar um chá. Mas o destino comumente traz surpresas e a sua rotina está prestes a ser quebrada para sempre: tudo por causa de um grão de areia em seu olho. O incidente levou-a a conhecer na estação de trem da cidade o Dr. Alec Harvey (Trevor Howard), também comprometido, pai de dois filhos e ambicioso em fazer o bem através de sua profissão.
A partir desse encontro surge uma amizade ingênua e pura que mais tarde se transformará em amor impossível. Mas, nenhum dos dois é livre para amar. Estão presos a valores sociais, e a traição ainda é vista como sórdida e repugnante na sociedade em que vivem. Há ainda o sentimento de culpa que consome os personagens e os deixa relutantes, trazendo conflitos nessa relação extraconjugal. Apesar disso, o amor deles é inabalável e ambos preferem continuar, e pagar o preço. É quando, Alec recebe uma proposta de emprego na África e terá que deixar a sua amada em tempo indeterminado e sem probabilidade desse tempo tornar-se determinado. A cidade no filme é dividida em dois momentos. No primeiro momento, é uma cidade que liberta as pessoas para o amor. Uma cidade comercial, urbanizada e suburbana, que abre suas portas à felicidade do casal e que proporciona momentos divertidos e agradáveis: seja no cinema, no bosque ou na cantina da estação. O segundo momento é uma cidade bastante parecida com o filme noir: negra, sombria, com chão escorregadio, com sua chuva triste, seu trem escuro e seu amor trágico, insatisfeito e frustrado. A viagem no trem até seu destino final, que antes era repleta de sonhos e almejos, agora é simplesmente passageira, assim como foi o relacionamento do casal. Isso remete a uma música da banda pernambucana Mombojó, que tem o mesmo título do filme:
No meu quarto deixei as lágrimas
E o desencanto
Carreguei comigo a minha solidão
As cores mudaram de tom
E as luzes cegaram minha vista
Passo um passo
Mas eu não encontro o chão
Pois ainda estou a sonhar
Com você a me beijar
Perdi os sentindos
Não tenho mais direção
Todos os caminhos
Me levam à oração
Ah, desencanto
Ah, desencanto
(Desencanto – Mombojó)
Sob a direção de David Lean, Brief Encounter ou Desencanto, é baseado em um roteiro teatral de Noel Cowards e apesar do longa não ser uma superprodução cinematográfica é um dos melhores melodramas do mundo. Esse gênero apelidado de “filme para mulher chorar” tendo geralmente o feminino como público alvo, traz uma introspecção e melancolia típicas do mesmo. Pelo próprio roteiro, percebe-se a fusão da melosidade com o drama, característica principal do gênero. O longa também traz o flashback da protagonista, fazendo o filme “começar pelo fim” e o próprio back projection. Vale a pena citar a atuação das personagens secundárias, como a amiga insuportável Dolly Messiter (Everley Gregg), o casal ‘enrolado’ Albert Godby (Stanley Holloway) e Myrtle Baron (Joyce Carey), além claro, do marido da Laura o Sr. Fred Jesson (Cyril Raymond), um homem amável, mas nem um pouco delicado.
Desencanto é um filme repleto de aforismos (que vêem da personagem principal) e que deixa os sentimentos à flor da pele. Questões intrigantes são levantadas no longa: Afinal, o importante é amar e desrespeitar “os papéis sociais coercitivas” ou viver neles e ser infeliz? A distância pode separar e acabar com um amor verdadeiro? A própria personagem responde:“Não pode durar. Esta amargura não pode durar. Tenho que me lembrar disso e me controlar. Nada é eterno. Nem a felicidade, nem a amargura... nem mesmo a vida dura muito.Chegará um dia em que deixará de ser importante.Eu poderei olhar para trás e dizer calma e alegremente: ‘Como fui boba’. Não, que esse momento não chegue.Quero lembrar-me sempre, de cada minuto...até o final...até o final da minha vida.”
Referências:
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Biutiful, por Houldine Nascimento
Quando da passagem de “Babel” pelo Festival de Cannes, em 2006, tanto Alejandro González Iñárritu quanto Guillermo Arriaga reivindicaram a idealização do projeto. Eles brigaram e ao que parece quem levou a pior foi o roteirista, porque, dois anos depois, Arriaga dirigiu e escreveu um longa ignorado tanto pelo público quanto pela crítica: “Vidas Que Se Cruzam”.
Biutiful é o primeiro longa que Iñárritu realizou sem a colaboração habitual do antigo parceiro. Seus filmes têm a marca de mergulhar fundo no sofrimento das personagens. Este aqui vai além do que estávamos acostumados a ver, deixando de lado as histórias cruzadas. Passado no submundo de Barcelona, conta a história de Uxbal (Javier Bardem), um sujeito que vive de negócios ilícitos, tem o dom de falar com os mortos e tira proveito financeiro disto.
Ele descobre que sofre de um tipo de câncer terminal, restando-lhe apenas dois meses de vida. Isso se torna um dilema, Uxbal tem um casal de filhos com uma mulher instável chamada Marambra (Maricel Álvarez), prostituta viciada em drogas e que não detém a guarda das crianças. É um bom pai e fica preocupado por não tê-los com quem deixar.
O drama discorre sobre uma realidade desagradável ao ser humano: a morte. Não há como escapar dela. Com a câmera na mão, Iñárritu faz questão de destacar isto. Morte de diversas maneiras: acidente, assassinato, doença. Tudo isso mostrado através de uma narrativa lenta, o que talvez seja a grande sacada. E assim como o personagem central, poucos têm a oportunidade de saber quando ela acontecerá. Encontramos também, embora não seja o objetivo principal, denúncia no que diz respeito à situação dos imigrantes ilegais na Espanha, um fato que pouco se atentou. Neste caso, representados por senegaleses e chineses.
Apesar de acreditar que o diretor tenha, de certa forma, se perdido no roteiro (que é assinado por ele, Armando Bo e Nicolás Giacobone), é um trabalho interessante. O título constitui uma espécie de ironia, pois não há nada ou quase nada bonito. Os cenários são feios, a começar pela casa onde vivem o protagonista e as crianças: suja e acabada (o porquê do título se justifica em uma bela cena entre Uxbal e sua filha, Ana). Ou então o frio porão onde vivem os chineses. O ambiente obscuro parece exercer uma influência no comportamento de Uxbal, levando-o a tomar atitudes impensadas, o que configuraria a cidade como vício.
A música de Gustavo Santaolalla chega a ser incômoda em alguns momentos, o que é proposital, evidente, para dar o tom do que é o filme, pesado do início ao fim. A fotografia do sempre excelente Rodrigo Prieto também exerce papel importante na trama. Mas o maior atrativo da fita é mesmo a presença de Bardem, um dos atores mais interessantes do momento e que carrega o fardo de um herói trágico com maestria. Este é o seu personagem mais realista, humano e com grande poder de empatia junto ao público. Por esse motivo, recebeu indicações ao Oscar e Bafta de melhor ator, além de ter vencido Cannes e Goya.
Biutiful talvez seja o filme mais delicado de Iñárritu. Aqui, o diretor nos apresenta um lado obscuro da vida e que muitas vezes fazemos questão de ignorar. Assim como a vida de Uxbal, somos devastados aos poucos, tal qual uma droga acomete seu dependente.
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"Crepúsculo dos Deuses", por Renata Santos
Crepúsculo dos deuses é uma produção noir da Paramount filmes, do austríaco Billy Wilder, que acompanha o drama da lendária estrela do cinema mudo, a gloriosa Norma Desmond. O filme pode ser considerado um retrato sarcástico das estrelas de Hollywood modernas, presas a ambições e ilusões efêmeras da fama.
No filme, o roteirista Joe Gillis está em apuros financeiros e prestes a ver seu carro confiscado, ele tem seu argumento rejeitado. No fundo do poço, Joe conhece inusitadamente a mansão de Norma Desmond, onde é confundido com um coveiro. Depois de resolvido o mal entendido e quando Norma, que pretende voltar as telas, descobre que ele faz argumentos para a Paramount, ela o convida a reescrever o seu roteiro. Apesar de não simpatizar com o estilo excêntrico e fantasioso da atriz decadente, ele aceita o trabalho visando solucionar seus problemas com dinheiro. A relaçaõ entre os dois é muito conturbada, porque Joe Gillis não suporta o mundo nostálgico e de fantasia em que Norma vive metida. Norma responde cartas que o próprio mordomo escreve para alimentar suas ilusões e todo o tempo, exibe uma prepotência irrisória que a afasta de todos e tenta, ridiculamente, seduzir Joe, o que o faz odiá-la ainda mais.
Gills começa a trabalhar paralela e clandestinamente com Betty Schaeffer, uma jovem roteirista que, na verdade é a personagem responsável por mostrar o contraste entre a vida reclusa e fantasiosa em companhia de Norma e o prazer da convivência com a juventude e a alegria.
Toda a trama é excepcionalmente bem elaborada e prende quem assiste através de suas cenas aparentemente cotidianas, mas que mostram claramente a prisão e a ilusão do mundo das celebridades hollywoodianas ou não.
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De volta para o sessenta, por Cecília Shamá
Em seu livro “Pós-Modernismo: A lógica Cultural do Capitalismo Tardio”, Jameson dedica um capítulo para o papel da nostalgia no mundo pós-moderno intitulado, A nostalgia pelo presente. Debatendo sobre arte, representatividade, capitalismo e anos 1950 e 1960, o autor configura um alcance direto ao tom nostálgico com que o homem costuma pincelar suas manifestações artísticas, tentando encontrar o porquê da necessidade de reconstruirmos épocas passadas.
Nesse contexto, o seriado Mad Men pode ser visto como uma volta aos anos 1960, sendo literalmente construído à base de diálogos embebidos em uísque e cigarro, numa época em que a sexualidade é implícita nos escritórios, as voluptuosas secretárias circulam a todo o momento pelo hall da empresa e a venda do american way of life é parte da folha de pagamento dos publicitários que ocupam os lares e os outdoors da Madson Avenue. E que agora ocupam o mais do que nobre horário da televisão norte-americana e do canal AMC, principal concorrente da HBO nos Estados Unidos.
O universo publicitário construído por Mad Men mostra a semeadura das revoluções na década de 1960, o papel feminino nos cargos e no espaço público (com citações a ícones como Marilyn Monroe e Jacqueline Kennedy), e a reformulação das artes plásticas em volta com a Pop Art e o Minimalismo. Mas sempre como manifestações epidérmicas, afastadas do pequeno universo da agência de publicidade Sterling Cooper, onde as intrigas por campanhas, o ego de seus publicitários, o sexo, a bebida, a fumaça do cigarro e as conversas machistas de seus associados imperam o tempo todo.
O seriado retrata o boom da publicidade numa sociedade que descobria a si mesma nos anos turbulentos de 1960, mas sempre, sempre de forma apurada e distanciada dos movimentos populares que explodiam para além das pequenas grandes paredes dos arranha-céus publicitários da Madson Avenue. Como se fosse um tipo de “neo-sessenta”, com doses do escritório de Se meu apartamento Falasse (EUA, 1960) em conjunto com imagens de alta definição das séries e outros programas de televisão de agora.
Quando Jon Hamm (intérprete de Donald Draper, o personagem central do programa) subiu ao palco em uma das premiações que Mad Men abocanhou (o seriado já leva na bagagem três emmys, assim como três globos de ouro de melhor série, categoria drama) o ator agradeceu ao seleto grupo de espectadores do show, entre eles os familiares dos produtores e elenco. Brincadeiras à parte, a dicotômica relação entre sucesso de crítica e público familiariza a visitação do passado como um ato prolixo, de tempos mortos, tal qual o cita Jameson no capítulo referido:
“É correto, ainda, observar que aqui está em jogo essencialmente um processo de reificação através do qual nos afastamos de nossa imersão no aqui e no agora (ainda não identificados como o “presente”, mas um presente que pode ser datado e rotulado como os anos 80 ou 50. Nosso pressuposto foi o de que hoje isso é mais difícil de alcançar do que nos tempos de sir Walter Scott, quando a contemplação do passado parecia capaz de renovar o sentido de nossa própria leitura do presente como uma seqüência, se não especificamente uma culminância, dessa série genética.”
Desde 1950 que o conforto ideológico provado pelos norte-americanos e suas cercas brancas e perfeitas ganha contestação, com a corrida presidencial ganha por Kennedy anos depois, os movimentos de esquerda criticando a ilusória noção de felicidade asséptica que os EUA construíram e exigiram para seus cidadãos e para o mundo, os Beatles acontecendo para o cenário musical e sexual e Kerouac em meio às drogas e falta de lógica literária servindo de inspiração para a literatura beat. A cidade invadindo o escritório, mesmo que a força, e por ele repelido em encartes publicitários de venda de produtos e modos de ser.
Melodramas cinematográficos retratam bem a pequena esfera dos lares, invadida pelos avanços sociais, mesmo que sufocados como em Vidas Amargas (1955), Clamor do Sexo (1961) ou os dramas dos subúrbios floridos e sem individualidade respeitada de Douglas Sirk.
Como se a verdadeira contestação viesse em formato de hiper-realidade. Dos melodramas, do Uivo de Allen Ginsberg, em interiores antes sagrados e agora profanados, por sua fragilidade, numa espécie de felicidade contida nos minutos fora de casa em qualquer lugar que já é nosso por direito e de mais ninguém. Da referência à Thomas Mann quando da fidelidade que concebemos à infelicidade de não sermos correspondidos por quem amamos, ou achamos que amamos por não ser fácil. Da ilusão de proximidade, da intimidade dos segredos ouvidos, dos rompimentos, desejos sexuais reprimidos, sexo ilícito, fingindo sermos completos através dos relacionamentos dos outros, para não nos sentirmos vazios, sem nada para oferecer. Ofertando-nos e ofertando ao outro como mercadorias, cuspidas para a marginalidade dos cinemas, dos programas de televisão, do álcool, da repressão social e familiar, dos desvios de saúde. Numa espécie de compensação sem equilíbrio, estáticos, como pesos de um lado só da balança, perdendo a guerra sócio-cultural e despedaçando os lares e as cidades, grandes ou pequenas, do mundo que nos cerca.
Ironicamente, o passado parece se revelar uma estética visual e não uma lembrança ativa de épocas passadas da existência humana. O sucesso do seriado em sua rica direção de arte inspira passarelas de Nova York a Vogue inglesa, retomando para o agora as saias rodadas, a cintura alta e as as famosas garotas do calendário de antigamente, as pin ups. Até mesmo a Universidade Northwestern, de Chicago, criou um curso intitulado: Consumismo e mudanças sociais da América de 'Mad Men' - 1960-1965", em que assistir às duas primeiras temporadas da série faz parte da ementa do curso.
Como se retomando ao passado, construindo um presente futurista de cidades e países conectados pelos avanços tecnológicos, e pela necessidade de aproximação do modo de contar do cinema dito como “clássico”, onde podemos exagerar, romper os preceitos sociais, e com o mais apurado fetiche cinematográfico, onde permanecermos em nossas cadeiras e posições de espectadores. A periferia do cosmopolitismo, do passado, do presente imperfeito e de um futuro a ser estudado.
"Cidade das Sombras", por Victor Ryan Borges
Cidade das Sombras (Dark City) de 1998 foi um filme pouco visto na época de seu lançamento, e isso é uma pena, pois ele poderia ter sido tão influente quando Matrix lançado apenas um ano depois. Ele é o que podemos chamar de Neo-noir numa fusão com filmes de ficção científica que não deve nada a Blade Runner, grande expoente dessa mistura que transpõe as convenções do filme noir para uma cidade do futuro, apesar de Blade Runner ter uma pegada Cyberpunk.
O filme conta a história de John Murdoch (Rufus Sewell) um homem que acorda sem memória de quem é ou de como chegou ali e acaba sendo perseguido por um grupo de “homens” com poderes especiais. Na verdade eles são uma espécie de alienígena que controla essa cidade formada de uma amálgama de diversos períodos da América dos anos 30 até os 70. Os “Estranhos” como são conhecidos tem diversas habilidades especiais, entre elas reviver mortos, realização de experiências com memória (temática que o filme divide com Blade Runner) para assim entende-los e também o poder de modificar a cidade fisicamente enquanto todos os seres humanos dormem.
Murdoch se envolve numa trama onde ainda fazem parte sua esposa que ele não vê a três semanas, Emma (Jennifer Connely), um cínico inspetor da polícia chamado Bumstead (William Hurt) investigando o assassinato de prostitutas e um médico, Dr. Schreber (Kiefer Sutherland) envolvido com os Estranhos.
Após descobrir que tem alguns dos poderes dos Estranhos, Murdoch sai em busca de pistas sobre seu passado e acaba descobrindo que é de uma pequena cidade costeira chamada Shell Beach. Ele então parte a procura da cidade apesar de nenhum outro personagem ter a informação correta de como chegar lá. Os estranhos ficam cada vez mais preocupados por um humano possuir os mesmos poderes que eles e injetam as memórias de Murdoch num deles no intuito de encontrá-lo. Murdoch acaba encontrando Bumstead no caminho que reconhece a inocência dele e deseja saber a verdade sobre a cidade. Os dois então se reúnem com Dr. Schreber que explica a verdade sobre os Estranhos e como eles são uma raça em extinção que procuram uma forma de sobreviver através de experiências com seres humanos.
O trio então decide ir a Shell Beach mas acabam encontrando apenas um outdoor no fim da cidade. Frustrado Murdoch abre um buraco na parede que revela que eles não estão na terra e sim num habitat espacial. Os Estranhos aparecem e acontece um confronto onde um deles é sugado para o espaço junto com Bumstead. Eles acabam levam Murdoch refém para ter a memória coletiva deles injetada e assim dar fim nas experiências e salvar sua raça.
O Doutor acaba traindo os Estranhos e injeta as memórias de Murdoch, logo após esse incidente ocorre uma batalha entre Murdoch e o líder dos Estranhos que acaba sendo derrotado. Murdoch após descobrir que Emma não tem mais as memórias que eles viveram juntos decide recriar uma Shell Beach dentro do habitat artificial e dar lhe novas memórias para recomeçarem seu relacionamento.
Cidade das Sombras é um filme que apresenta uma atmosfera bem sombria mas nem por isso perde o foco no desenvolvimento de personagens humanos para contar sua história. Ele usa diversas influências notórias entre elas o Noir do seu visual e características de alguns personagens, alguns aspectos góticos derivados do filme anterior do diretor (O Corvo, 1994), Expressionismo Alemão e o pesadelo Kafkiano de viver uma situação sem saída. Alguns críticos também leram o filme como espécie de alusão ao mito da caverna de Platão onde os habitantes da cidade são prisioneiros sem saber e Murdoch é o único a escapar tal qual como na caverna.
A cidade em si do título é uma criação interessante por não ter um lugar específico no tempo e espaço. A sua mais forte influência são os filmes do Expressionismo Alemão como Metropolis, M e Nosferatu. A influência de Metropolis é tão grande que pode ser sentida na arquitetura da cidade, comportamento dos humanos e no tom da película.
Lembrando também de Matrix que foi comentado no início desta resenha, ele foi filmado no mesmo estúdio Australiano e chegou a utilizar alguns sets de Cidade das Sombras na sua produção. Entretanto as comparações não param por aí, fotografia, atmosfera e parte da plot do filme são similares. Outros filmes que também apresentam similaridades são Brazil (1985) de Terry Gilliam e The City of the Lost Children (1995) de Jean Pierre Jeneut.
Cidade das Sombras é um filme extremamente derivado de outros trabalhos mas não se envergonha por conta disso, o próprio diretor reconhece alguma dessas influências como cruciais para a concepção do filme. O resultado final é algo muito maior que soma de suas partes.
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A cidade e “Tudo Que o Céu Permite (1955)” , por Jonathan Wolpert
O filme dirigido por Douglas Sirk, considerado o mestre do melodrama, recebeu muitas criticas negativas na época em que foi lançando (assim como os outros melodramas de Sirk) mas hoje em dia é sem dúvidas aclamado pela crítica especializada. Estrelado por Jane Wyman e Rock Hudson e conta a história de um amor quase impossível entre uma mulher mais velha, Cary Scott (Jane Wyman) mãe de dois filhos e da alta sociedade de uma cidade pequena (retratada como se os moradores tivessem certo conservadorismo quanto às questões civis) que se apaixona pelo seu jardineiro, Ron Kirby (Rock Hudson), um homem mais novo que a sociedade não aceita ser o substituto do falecido marido da Cary Scott.
A história do filme é muito simples, consiste dos momentos de dificuldade que Cary passa em relação com seus amigos e filhos por causa de Ron. Temos momentos em que podemos perceber que Cary realmente se importa com a relação da idade, já que é 15 anos mais velha que Ron. Também podemos notar que ela não parece se importar muito com o que as pessoas da alta sociedade falam, mas dá extremo valor a opinião dos filhos, chegando até a romper o namoro com Ron para manter uma relação estável com os filhos.
A trama chega a seu ponto crítico quando Cary decide interromper seu relacionamento com Ron e logo após o rompimento Ron sofre um acidente e entra em coma. Cary se arrepende de ter acabado o relacionamento com Ron, vendo que realmente o ama e não quer perder o amor da sua vida. Ela volta para o moinho (que foi transformado em uma casa para os dois viverem juntos) e espera Ron acordar, trazendo um final feliz para o filme.
Podemos analisar diversas relações entre a cidade e este filme do Douglas Sirk, como a cidade mostrada de forma conservadora e até mesmo “perfeita de mais” ao mesmo tempo em que temos uma cidade festeira, mostrada tanto pelo lado da alta sociedade quanto pelo lado da sociedade operária. Quando mostrado o lado da alta sociedade, podemos ver certa seleção quanto a quem participa das festas e também o tipo de vestimenta luxuosa usada pelos convidados, mostrando uma cidade talvez um pouco conservadora de mais.
Quando é mostrada a cidade em seus momentos de festa junto com os amigos de Ron, podemos notar um tom mais animado, ressaltado pelo diretor, mostrando que as pessoas mais humildes conseguem se divertir mais, o que nos leva a refletir sobre a situação atual das cidades em que geralmente as pessoas de classes mais baixas conseguem fazer festas mais animadas.
Podemos notar uma visão muito mais clássica da cidade, mostrada demasiada conservadora pelo diretor, provavelmente para causar o impacto e passar a mensagem da quebra de fronteiras entre classes. Notamos também que a vegetação se torna algo muito importante a ser mostrado por Sirk, o mesmo faz diversas tomadas (como o início do filme) mostrando muitas árvores e algumas casas de madeira, e também no final do filme mostrando o inverno na cidade como algo bonito e com certo tom nostálgico.
Quebrando preconceitos numa época cheia de preconceitos raciais e sexuais, além de tradições antigas que impediam a felicidade, Sirk se mostra como um diretor visionário, influenciando filmes mais atuais como “O Medo Devora a Alma” (1974) e “Longe do Paraíso” (2002). Douglas Sirk estava à frente de seu tempo.
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"O medo devora a alma", por Jéssica Fantini
O medo devora a alma (Angst essen Seele auf) é um filme de 1974, dirigido por Rainer Werner Fassbinder. O diretor alemão faz uma critica ao racismo, à xenofobia, à hipocrisia e a outros aspectos referentes aos preconceitos do pós II guerra. O grande diferencial do filme é a utilização dos componentes melodramáticos, através do casal Emmi e Ali, para retratar temáticas que, infelizmente, ainda são extremamente recorrentes na sociedade.
O próprio Fassbinder afirma que o filme é baseado no modelo melodramático desenvolvido por Douglas Sirk. Na opinião de críticos, como a teórica Laura Mulvey, o cineasta conciliou enredo e recursos técnicos ao clássico “Tudo que o céu permite”. As relações entre eles ficam claras pela história com o intuito moralista, pelo enfoque exacerbado a encenação, como nas passagens do espelho, e até pelo enquadramento de planos simétricos em ambos os filmes. Os pontos divergentes na obra de Fassbinder são os momentos melodramáticos intercalados de “quebras” do sentimentalismo e a pouca utilização de técnicas apelativas do gênero, como a trilha sonora emocionante que nesse caso é quase ausente.
A narrativa é o ponto mais interessante. As características de raça, cultura e faixa etária que comumente são rechaçadas na sociedade estão presentes no casal. Emmi (Brigitte Mira) é uma viúva idosa que trabalha como zeladora e Ali (El Hedi Ben Salem) é um operário marroquino, que depois do trabalho vai sempre a um bar especifico para imigrantes árabes. A união dos dois acontece mais pela solidão que por paixão, pois ambos já eram excluídos socialmente antes do encontro. No entanto, ao encontrar uma companhia, eles criaram um “universo” insuportável de descriminação, que é sentido pelo espectador todo o tempo e fica evidente nos diversos planos que enfocam a reação dos outros na aparição do casal. Vale salientar que, como o próprio nome do filme destaca, o preconceito da sociedade causa medo e receio nos personagens que chegam a renegar o sentimento devido à opressão sofrida.
Outro fator é a imagem de Berlim no filme. Realizado na Alemanha ocidental, o filme mostra que os personagens são diretamente afetados pelo ambiente do pós guerra. Fassbinder faz jus à imagem de ícone do cinema novo alemão, retratando a crise urbana através de tipos que conservam as ideologias pregadas pelos preconceitos nazistas em um quadro de crise.
A carga dramática é destacada também pelo aspecto visual. No cenário é determinante o azul, o amarelo e o vermelho, ou seja, as cores primárias e o propósito parece ser intensificar o drama pelo estimulo à percepção das imagens. A fotografia feita por Jürgen Jürges, de certa forma, retrata a força de tudo que cerca os personagens principais, representa os fatores externos que submetem o casal e influenciam nas suas decisões. Nesse contexto o cenário representa a força, tanto da sociedade quanto do medo dos personagens por serem vitimas da pressão social.
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ATIREM NO PIANISTA (Tirez sur le pianiste), de François Truffaut, 1960, por Ana Luiza Fernandes Alencar
Toda a iconografia inicial de Atirem no pianista, segundo longa metragem de François Truffaut nos leva a crer que se trata de um filme noir. Uma perseguição, a cidade à noite, as ruas escuras, o suspense acentuado através da música, a iminência de algo que está prestes a acontecer. O diretor utiliza seu vasto conhecimento acerca do cinema para confundir o espectador, desnorteando aqueles que esperavam apenas por um filme de gênero. Em Atirem no pianista, vários gêneros se articulam, mas de um modo espontâneo, para compor um filme único.
Segundo Ingram, “a importância do gênero noir não decai, apenas se complica, à medida que elementos de outros gêneros se infiltram na trama.” Como a breve aparição da iconografia do musical, da comédia e do western. Essa mescla de gênero afeta também o tom do filme. O efeito inicial que causa no espectador é de desorientação, porém como indica o autor, Truffaut não fez um filme de gênero, senão para subvertê-lo (2008, p. 31). O diretor presta uma “homenagem” aos chamados filmes B hollywoodianos, das décadas de 40 e 50. O filme é uma adaptação do romance policial do escritor norte americano David Goodis.
O fugitivo, que em sua fuga desnorteada cai na rua ao se chocar com um poste, é ajudado a se erguer por um estranho, com quem em seguida mantém um diálogo insólito sobre amor e casamento, temas explorados na obra do diretor, o amor como um grande tema, ou o tema. O homem esquece a fuga por um momento, até que seu interlocutor dobre a esquina. Chico, o fugitivo em questão, se põe a correr novamente até chegar a um bar, em que lemos a placa “Charlie Koller (bal tous lês jours)”. Charlie Koller, o pianista e atração deste bar, é irmão de Chico, e demonstra pouco interesse e disposição em ajudar-lhe em sua fuga, no entanto, no último instante acaba por fazer-lo.
Por mais que Atirem no pianista não constitua um dos filmes mais realistas do diretor, nele, como ressalta Ingram, está refletido a presença emblemática da Paris contemporânea (ao filme), através de diversos elementos, como o bar, as ruas, o apartamento, os carros, etc. Apesar disso, a Paris do filme, não é aquela que o cinema nos habituou ver, a cidade turística, cartão-postal. Ao contrário, nada de monumentos históricos, nem lugares turísticos facilmente reconhecíveis, nesse sentido ela aparenta mais realismo. Segundo Manevy, um dos aspectos mais relevantes das produções da Nouvelle Vague foi a escolha de locações em Paris, explicitando outra concepção de espaço, de historicidade, de relação com a realidade imediata e documental. A busca da rua, em oposição ao cinema de estúdios e cenários, como responsável em grande medida por trazer um aspecto visual novo ao cinema francês. (2006, p. 224)
O cantor Boby Lapointe faz uma participação, cantando a música “Framboise!”, de sua autoria. Numa interessante composição visual, vemos em primeiro plano Lapointe cantando, ao fundo Charlie com sua expressão melancólica, tendo ao lado um risonho baterista. Até que a câmera se aproxima até enquadrar unicamente no rosto Charlie, de quem escutamos a voz over, seu fluxo de pensamento, em sintonia com o close-up de seu rosto. A voz over é usada no filme, de modo a se fazer ouvir o monólogo interior do personagem. Como lembra Marcel Martin “o primeiro plano nos habituou a um tal poder de penetração que nos parece perfeitamente verossímil ouvir os pensamentos de um individuo que vemos absorvido em uma meditação interna” (Martin 2007, p. 187). Traço marcante também da Nouvelle Vague, “no que se refere a narrativa, os filmes fazem um uso frequentemente inventivo da voz over, do flashback, explicitando intervenções sonoras ou visuais” (Manevy, p. 245).
Atirem no pianista, é nas palavras de Manevy, um “film noir documental”. Em boa medida, a Nouvelle Vague nasceu do encontro do cinema americano com a cultura européia do pós-guerra, em especial a neo-realista italiana. “O negativo em preto e branco e o uso de trucagens como a íris remontam também ao cinema dos primeiros tempos. No entanto, está interditado o recuo à imagem neo-realista, que havia devolvido frescor ao cinema do pós-guerra. Voltar no tempo pela recriação do estranhamento, não da mesma forma, mas com um novo artifício. Esse recuo nascerá como fruto de uma estilização, dentro da textura neo-realista” (2006, p. 246).
Charlie ainda irá compartilhar em outras sequências seus pensamentos com o público, como na cena em que caminha ao lado de Léna, por quem está apaixonado, mas não consegue se aproximar. Ao lado dela, ele parece pequeno e frágil. O medo das mulheres, uma recorrência nos personagens de Truffaut. Mas, como disse o próprio diretor a respeito de Charles Aznavour, “com efeito, pode ser fraco, frágil, vulnerável sem ser uma vítima; eis por que eu quis que o personagem de Atirem no pianista fosse tão completo: rico, pobre, corajoso, medroso, tímido, impulsivo, sentimental, autoritário, egoísta, terno, doce e sobretudo, muito feliz no amor, embora dando apenas os primeiros passos”. Para Truffaut, Charlie era, acima de tudo, um personagem poético (2006, p. 224).
De acordo com Aumont, em 1962, o cineasta declarara renegar a noção de autor completo: “de qualquer modo, ainda que não escreva uma linha do argumento, é o encenador que conta, é a ele que o filme se assemelha, como impressões digitais. O círculo está fechado: quer o cinema adapte ou não fielmente, quer o realizador seja também ou não o argumentista, afinal de contas, o autor do filme é o autor da sua encenação” (2006, p. 75). Como se pode dizer que um filme de Antoine Doinel é um filme de Jean-Pierre Léaud, Atirem no pianista pode ser considerado também um filme de Charles Aznavour. Como escreveu Truffaut, “trazem tamanha verdade que pouco a pouco vão se tornando o filme por si só” (2006, p. 224).
Há uma cena divertida entre Charlie e Clarissa, sua vizinha, em que eles brincam com a metalinguagem. Ela canta “televisão é um cinema que você pode ver em casa”, ao que ele responde no cinema é assim, lhe cobrindo os seios. E ela lhe conta sobre um filme que viu naquela tarde, com John Wayne. Há ainda a referência, ou homenagem a Abel Gance, com uma cena em que a tela se divide em três.
Os gângsters seqüestram Charlie e Léna, e depois Fido, o irmão mais novo de Charlie, de quem este toma conta. O divertido é que estas cenas têm uma atmosfera totalmente leve, o momento em que as coisa deveriam ficar mais tensas, ao contrário, pende mais para o nonsense, frustrando novamente nossa tentativa de classificação. Nesses diálogos estão presentes o humor, assim como os temas de grande interesse do diretor, como as mulheres e o fetiche pelas pernas, no caso do primeiro seqüestro. Os gânsgters são figuras mais cômicas que ameaçadoras. Um momento exemplar disto é quando um deles diz: “se estou mentindo quero que minha mãe caia morta”, no plano seguindo uma senhora, cai literalmente morta, numa composição que lembra os filmes do primeiro cinema.
A inserção de um longo flashback do passado de Charlie, quando ele ainda era Édouard Saroyan, um conhecido concertista de piano clássico, casado com Thérèsa, responsável por impulsionar sua carreira, fato que a levará ao suicídio. Os livros, objetos sempre presentes nos filmes do cineasta, como tema ou elemento, aparecem aqui, com os títulos sobre timidez, que Édouard/Charlie busca para superar aquilo que seu agente chama de doença curável. Léna gosta de Charlie justamente porque ele é tímido, e “respeita as mulheres”. A timidez, como afirma Ingram, era um traço da personalidade de Truffaut, que vários de seus personagens possuíam.
Outro diálogo relevante é o que se passa entre Charlie e seus irmãos Chico e Richard, na cabana, no qual falam sobre as memórias da infância. Charlie como o pequeno virtuoso indo para a academia de música aos 14 anos e os irmãos como os pequenos selvagens, tentando impedir. A volta de Charlie, após matar o dono do bar e fugir, era como sua volta para os selvagens, “um assassino, numa família de ladrões”.
Há um tiroteio entre os gângsters e os irmãos de Charlie, que culmina com a morte de Léna, e seu corpo deslizando na neve. A perseguição entre eles continua, assim como a vida de Charlie ao que era antes. Ele volta a trabalhar no bar, onde lhe é apresentado uma nova garçonete.
Referências bibliográficas:
AUMONT, Jacques. O cinema e a encenação. Lisboa: Texto e Grafia, 2006.
INGRAM, Robert. François Truffaut: filmografia completa. Taschen, 2008
TRUFFAUT, François. O prazer dos olhos: escritos sobre cinema. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
MANEVY, Alfredo. “Nouvelle Vague”. In: MASCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial. Campinas: Papirus, 2006.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2007.
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Prazeres Desconhecidos, de Jia Zhang-ke – a globalização na China periférica, por Renan Brito
É preciso, antes de tudo, deixar clara a pretensão de Jia Zhang-ke em retratar a China com olhos críticos, porém generosos. Como já disse em entrevista, a modernização, a globalização tem suas vantagens e desvantagens. Não interessa a ele dardejar contra essa globalização e promover a volta a uma tradição cultural fechada e imóvel. Em Prazeres Desconhecidos, somos introduzidos no submundo (sempre ligado ao universo pop – o próprio título do filme foi retirado de uma canção pop) de três jovens: os amigos Xiao Ji e Bin Bin e a garota Qiao Qiao. Jovens que vivem a globalização a partir de seus resquícios, da música pop, da boate, das roupas que Xiao Ji usa ou mesmo do dólar que encontram. Qiao Qiao é dançarina e modelo que participa das promoções da casa de bebidas Mongolian King. Bin Bin e Xiao Ji estão desempregados. A dupla passa seus dias à toa, quando Xiao Ji descobre Qiao Qiao e se apaixona. O filme traz episódios de vida desses jovens, muitas vezes desconexos entre si, apesar de conduzirem uma narrativa.
É difícil, no entanto, estabelecer uma trama, já que os personagens não parecem saber o que querem; há desejos, vontades e ambições, mas eles estão sempre em segundo lugar. Os personagens de Jia Zhang-ke sobrevivem, antes de tudo, a cada dia. Diz um dos personagens em resposta à massagista, que não aceita as regras da partição de sobreviver a cada dia: “o que podemos fazer senão sobreviver dia a dia?”. Não sobra muito tempo para outra coisa. A verdade é que as perspectivas quase inexistem, ou os personagens não se preocupam com elas. Xiao Ji deseja Qiao Qiao; Bin Bin perambula por aí e discute com a mãe. São sujeitos mínimos, sobreviventes à margem da sociedade, e que vivem a História do país muito distante dela, através das matérias nos telejornais (há sempre uma TV ligada em cena).
O mais importante não está dentro dos personagens, pois estes são quase impenetráveis, tamanha a economia de expressões. Na verdade, há uma tentativa de resgatar a realidade através da desdramatização das situações mais fortes. A suposta namorada de Bin Bin diz que eles devem parar de se encontrar, pois os exames para universidade estão próximos. Ele aceita, sem comoção. Quando é revelado a Bin Bin que ele não pode entrar para o exército porque tem hepatite, nem ao menos vemos seu rosto. Vendo o pai chorar, acidentado na cama do hospital, tudo o que Qiao Qiao diz é que ele está velho demais para chorar. Não é uma questão de indiferença, mas de penetrarmos nas particularidades dos personagens, de conhecermos os termos de suas relações.
O mais importante, para Zhang-ke, é nos fazer sentir o mundo dos seus personagens, por isso as longas tomadas, os planos-sequências e principalmente a escolha da paisagem, dos espaços. A cidade, ou ao menos o bairro em que se passa o filme, de Prazeres Desconhecidos é uma cidade precária, os condomínios são monótonos, há ruas e terrenos baldios, destroços ao longo das ruas. Mas, em contraposição, há novas construções, vemos tratores e maquinarias pela estrada em construção. Temos aí algumas das metáforas recorrentes de Zhang-ke. O que se pode ter entre os destroços e as novas construções (a modernidade a caminho)?
Em Prazeres Desconhecidos, esse espaço, essa região de destroços, monótona e cheia de poeira e terra, serve mais para abarcar os personagens em uma condição social do que como metáforas visuais. A condição social a que estão inseridos, no entanto, não os impede de viver cada situação. Os personagens passam por momentos belos tanto quanto por incômodos da vida. E um momento não necessariamente implicará em outro. Aqui, a lei newtoniana de causa-efeito é rompida. E a cena que melhor desafia essa lei é a que, após apanhar do chefão do local, Xiao Ji reúne companheiros para uma vingança, mas é logo impedido pelo amigo Bin Bin. A vingança não é consumada e o fato é esquecido. Os personagens não se deixam submeter a essa condição social precária. Eles não se sentem vítimas, não procuram nem pregam a justiça e igualdade social (não são ativistas). Mas em diversos momentos, eles resistem à submissão: seja quando Xiao Ji resiste aos tapas dos capangas do chefe mafioso, ou quando não desiste de subir um morro com a moto só para olhar para o nada; seja quando a garota Qiao Qiao tenta deixar o chefe mafioso. Nunca desistem, pois sabem que são capazes de sobreviver às adversidades, a esses espaços destroçados.
Em Prazeres Desconhecidos, os espaços se repetem numa rotina quase inquebrantável, mas permeada por experiências diversas. A casa dos personagens, o clube, as ruas, a boate, todos esses lugares se repetem, mas nós somos cada vez mais absorvidos por eles. Nos espaços externos, temos sempre ao fundo os edifícios monótonos, a paisagem desértica que os perseguem, mas que não os prendem, pois eles sabem muito bem se virar, apesar da ingenuidade.
E através dos planos-sequências, dos planos longos, sentimos não só o tempo particular e cotidiano desses personagens, mas o espaço em que habitam. Os destroços, as paredes áridas, a terra e a poeira, os terrenos baldios, as ruas vazias etc. E apesar do espaço parecer tão real, tão físico, temos a sensação do não-pertencimento dos personagens, que parecem destoar da coletividade, como percebemos na cena em que Beijing é anunciada para abrigar as Olimpíadas de 2008, e todos pulam e gritam contentes, enquanto Xiao Ji e Bin Bin simplesmente observam, inexpressivos.
E, como o realismo/naturalismo de Jia Zhang-ke não se define pelas características ilustradas pela literatura do fim do século XIX, a cidade em Prazeres Desconhecidos não é palco de lutas de classe, mas de organismos que ora se repelem ora se atraem ora simplesmente destoam da paisagem, como os três protagonistas do filme. Não é uma cidade monolítica, e os destroços compõem somente o cenário, mas não definem os personagens. As cores rotineiras daquele mundo sofrem distorções quando olhamos, por exemplo, para suas roupas, que remetem à globalização, os desenhos de fogo na camisa de um dos personagens, ou para suas ideias: o assalto ao banco com bombas de mentira armadas na cintura (influência de filmes hollywoodianos). O espaço então se transforma (as destruições e as construções), é palco de diversos fatores, de diversas influências culturais, que na maioria das vezes destoam da paisagem. Mas, ainda assim, a cidade é viva.
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"O Fabuloso Destino de Amélie Poulain", por Marina Didier
Na França, locação comum de milhares de filmes, um se destaca pela maneira como transmite o sentimento da cidade. O filme do francês Jean Pierre Jeunet gravado em 2001, cativou admiradores da cidade do amor, pelo modo simples de retratar uma Paris de pessoas comuns, que vivem suas vidas desfrutando de pequenos prazeres. Eis que surge Amélie Poulain, a história da sua vida começa desde o momento da sua gestação, que acontece de forma natural, num dia como outro qualquer. Uma mosca, uma taça de vinho, uma agenda telefônica que perde mais um número. É assim que a narrativa começa. Despretensiosa, a forma de enxergar os fatos da vida, acaba por atrair o público para uma história que poderia ser a de qualquer um.
Amélie também transforma o espaço de Paris. Antes vivia com o pai numa casa mais afastada do centro urbano. Na vida adulta, decide sair de casa e ir morar no bairro do Montmartre, é como se a cidade crescesse nas telas junto com a moça. Ela se liberta dos excessos de cuidado do pai, e descobre que a vida que leva ordinariamente, pode ser fantástica a partir de ações altruístas em favor de estranhos. Seus amigos cultivam prazeres simples, observados por ela como gostos e desgostos. Isso constrói na narrativa, um conjunto de qualidades que criam o caráter das personagens. A satisfação de Amélie ao realizar os desejos dos outros é imensa, contudo, a moça percebe que a sua felicidade não é completa. É nessa fase do enredo, que Amélie percebe o quanto é infeliz por não conseguir resolver seus próprios problemas. A cidade de Paris torna-se então um agente na história, tornando possível o encontro casual de Amélie e Nino no metrô de Paris.
Por se tratar de um filme pós-moderno, não há uma visão da cidade como virtude nem como vício, apenas existe a cidade com toda sua heterogeneidade, para além do bem e do mal talvez. É interessante como se apresentam os fatos urbanos da cidade, a personagem principal usa a cidade como um objeto de sedução através desses “fatos”. A basílica du Sacré-Cœur, é um exemplo dessa atração por mediação da cidade.
Toda fantasia e romance da história sugere um retorno a valores da infância, pureza, generosidade e amor, é como se a cidade da lembrança nostálgica trouxesse a verdadeira felicidade.
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