domingo, 9 de outubro de 2011
"A hora dos oprimidos de Gregg Araki", por Vinícius Gouveia
Como tratar do presente e expor suas vísceras sem soar alienado ou moralista? O cinema independente e os movimentos dentro dele se tornaram uma das vozes encontradas pelos artistas para falar francamente para o grande público. Sem cair na pieguice mainstream ou na hermeticidade das ditas “vanguardas”, as rupturas temáticas e avanços técnicos recentes colaboraram para uma profusão de novos olhares e tentativas (de erros e acertos) de novos cineastas nas últimas décadas.
Foi nesse período que em 1987 Gregg Araki lançou o seu primeiro filme, Three Bewildered People in the Night. Nesse primeiro momento, o diretor já insinuava o tipo de história que queria tratar em suas obras. Não foi uma surpresa quando em 1993 ele lançou Totally Fucked Up, o primeiro filme da triologia “Teenage Apocalypse Triology”. A segunda parte, The Doom Generation, ganhou as telas em 1995. Já Nowhere, o último capítulo, estreou em 1997. A tríade é bastante coerente com o título que as une. O fim do mundo – tanto em sua conotação moral quanto física – é presenciada nas obras. No fim da exibição de qualquer uma delas, podemos ver pais de família condenando o trabalho de Araki e chamando tudo aquilo de blasfêmia e apologia a inúmeras atividades ilícitas, enquanto outros condenariam os personagens e os utilizariam como mau exemplo para reprimir seus filhos. O diretor expôs a sociedade dos anos 1990 a ela mesma, remexendo o mundo dos jovens undergorunds e seus vícios, que cada vez mais tomavam as ruas e o resto do mundo.
A triologia utiliza o presente para olhar para o futuro. Os filmes estão sempre mostrando a falência do mundo, de seus valores, e a degradação humana, sendo inevitável perguntar-se: “Onde iremos parar nesse ritmo?”. Gregg Araki monta diante de nossos olhos o prólogo de um apocalipse, o fim dos dias. Não é à toa que a morte está sempre presente nesses filmes, e normalmente ela acontece de maneira banal e com fortes doses de humor negro. Todos os personagens, sempre adolescentes, não tem escapatória. Entretanto, a triologia não é distópica. Ao mesmo tempo que o diretor fala o quanto estamos nos afundando num hedonismo descabido de sexo, drogas e individualismo, ele nos mostra como é gostosa essa vida de prazeres e o quanto ela precisa ser experimentada. Deixando de lado os pais temerosos e seus filhos que vivem em função de carreiras de pó, os filmes da triologia se configuram numa pós-utopia que acredita que este presente está construindo o futuro, seja lá qual ele for. Gregg Araki sabe que agora o mundo está vivendo um colapso e o motor de tudo isso é a juventude. Mas ele não sabe o que vai ser do amanhã. Ele nos oferece uma polaróide, um retrato instantâneo, não uma previsão do futuro. O diretor nos poupa de pessimismos ou otimismos.
Entretanto, como defenderia Walter Benjamin, a história é um encontro das gerações precedentes com a nossa. Então, se Gregg Araki nos faz refletir sobre o presente, preocupado com o iminente apocalipse, talvez sem perceber ele nos questione como esse presente foi construído. A resposta está no passado.
Os acontecimentos são inspirados e incitados pelo os que aconteceram antes. A contravenção, as drogas, a violência e a lascividade sempre estiveram presentes em diversas sociedades. Tentar reprimir estas e outras transgressões não adiantou em nada para extingui-las. Elas sempre voltavam sob novos formatos, por este ou aquele motivo. Temos desde os ácidos dos hippies às drogas publicitárias do “sexo, drogas e rock’n’roll”. A violência incontrolável nos países subdesenvolvidos, incitada pelos ditos desenvolvidos. O sexo ainda é utilizado como catalisador de relações sociais. O que seria estado de exceção está mais para regra geral que dura até hoje.
A sociedade permanece numa constante busca pela plenitude e bem-estar idealizados. Um de seus caminhos é tentando limar seus vícios – a maioria deles presente na juventude. Por viver em função do progresso, de um amanhã melhor, a sociedade constrói um presente marcado por intolerâncias e limitações sobre grande parte da população mundial. E esse presente logo se torna passado. Os problemas aglutinam-se e são paulatinamente aprofundados em nome de um sonho, uma utopia que tanto restringe e dificulta a vida de muitos. O progresso olha fixamente para frente e não enxerga os problemas deixados para trás que acabam sufocando a própria sociedade.
A triologia do apocalipse adolescente, nesse panorama, nos faz olhar também para o passado. Os adolescentes dos filmes de Gregg Araki são os próximos personagens da história que teriam as vidas limitadas, os desejos negados. Mas desta vez é diferente. Esses jovens vão atrás do que querem com todas as forças e saem das casas da classe média que colaborou no processo de sufocar o pathos de outras gerações. E esses adolescentes querem sexo, drogas, violência e uma vida sem amarras - vida que foi negada a outras minorias (étnicas, religiosas, sexuais, etc), seus verdadeiros antepassados. Essa condição de oprimidos aproximam gays, judeus, jovens e outras figuras que em algum momento foram proibidos de fazer algo ou sofreram preconceito porque a sociedade não julgava correta suas condutas. Esse julgamento era imbuído de preceitos morais que condenavam (e ainda condenam) tais tipos por “atrapalharem” o alcance do objetivo principal: o progresso.
No final das contas, o progresso é uma desculpa que funciona como arma de controle social em função de uma minoria que faz prevalecer seus próprios valores e a intolerância. Contra essa utopia que fez inúmeras vítimas durante a história, os adolescentes de Gregg Araki são a vigança dos oprimidos que vieram antes. Esses adolescentes não baixam a cabeça e irão explodir essa sociedade que os criou e tentou sufocá-los.
É através da cultura pop dos anos 90, construindo o que poderia ser chamado de “Malhação underground numa viagem de ácido”, que Gregg Araki alardeia o tal apocalipse em sua triologia. Antes do fim do mundo, ele procura expor o presente numa verdade nua e crua para a sociedade. Felizmente, o diretor acaba criando uma discussão muito maior, do tipo “onde estamos, o que nos trouxe aqui, para onde iremos?”. Colocando os oprimidos em evidência, ele constroi seus filmes de maneira bastante visual - e assim as drogas alucinógenas chegam ao espectador. Nos levando por esse sonho, ou lombra, o diretor abre novas camadas de dimensão da imagem, ele cria conexões com a história dos oprimidos. Com Gregg Araki, a juventude é levada a sério e representada de maneira fiel. Ele mostra que uma hora a sujeira não pode mais ser escondida debaixo do tapete e tudo o que estava no passado volta reconfigurado e prestes a explodir. É o fim de um mundo, mas o início de outro.
Walter Benjamin
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"A política de Antonieta", por Matheus Costa Ferreira
Sofia Coppola ao gravar o filme Maria Antonieta (Marie Antoinette – 2006) não pretendia falar sobre política e sim mostrar a vida de uma adolescente vivendo em um ambiente completamente novo e opressivo, porém, para muitos, o simples fato de Coppola humanizar a tão odiada monarca francesa já gera um dissenso: quem era Maria Antonieta? Uma Rainha má e corrupta ou uma jovem tentando deixar sua vida mais leve? Como diria o filósofo francês Jacques Rancière, uma arte que gera dissenso é política, logo, este filme pode ter deixado de lado a situação social da França no período de sua Revolução, mas isso não o inibe seu fator político.
O filme começa quando Maria Antonieta (Kirsten Dunst) aos 14 anos, está saindo de seu país natal, a Áustria, para se casar com o futuro Rei Francês, Louis XVI (Jason Schwartzman) as vésperas da sangrenta Revolução Francesa. A partir daí vemos uma adolescente vivendo ao lado de um Rei indiferente, em uma corte tumultuada de escândalos e intrigas, além da enorme pressão exercida pela jovem para consumar o seu casamento com o ato sexual, que o Rei reluta em praticar, além da obrigação de dar um herdeiro ao trono. O filme termina quando a Revolução chega ao auge e os reis franceses fogem, porém o real fim da Rainha é a sua prisão durante esta fuga e sua condenação a morte pelo seu próprio povo. Nesse meio tempo, é clara a posição de Coppola ao lado da Rainha, mostrando um lado até então desconhecido de Maria Antonieta: uma jovem com sua vida completamente controlada, sob pressão de vários âmbitos sociais e vítima de fofocas e calúnias, isso fica claro quando a diretora faz questão de gravar uma cena em que a própria Antonieta nega ter dito a famosa frase: “se não tem pão, que comam brioches”.
Podemos perceber então pelo menos três dissensos causados pelo filme tem uma causa em comum: um deles trata-se do modo como Coppola conduz uma história que está presente não só no filme “Maria Antonieta” mas em todos os outros (“As Virgens Suicidas”, “Encontros e Desencontros” e “Um Lugar Qualquer”) e os outros dois tratam-se da trama do filme.
Temos o fato da direção ser de uma mulher que é conhecida por seus filmes silenciosos, com poucos diálogos e um ritmo lento, o qual incomoda muitas pessoas, principalmente aquelas acostumadas com os filmes com muitas coisas acontecendo a todo momento. A lentidão de seus filmes se deve ao fato de Sofia aprofundar-se no psicológico de seus personagens e não nos fatos ocorridos, em “Maria Antonieta” isso se torna óbvio por se tratar de uma história real com muitos e muitos fatos polêmicos ocorrendo simultaneamente à monarquia opressiva daquela época, enquanto isso ela foca em detalhes “insignificantes” no ponto de vista histórico. Pergunta-se, então, analisando muito minuciosamente os fatos: no que devemos prestar mais atenção em nossas vidas e no julgamento alheio? Ao que acontece internamente ou externamente às pessoas?
O outro dissenso trata-se da crítica à obra, onde reclama-se de não apresentar as cenas da condenação e morte da Monarca. Remetemos então a mesma teoria da psicologia da personagem versus os fatos ocorridos, neste caso, sua morte. Estas são as principais criticas negativa.
Por outro lado, encontramos um filme muito colorido, vencedor do Oscar pelo seu belo figurino, com uma modernidade incrível, quase inédito nos filmes de época, isso fica evidente com sua trilha sonora composta principalmente por baladas rock e pop dos anos 80. O mais interessante é o modo como a imagem temporal é transmitida pelo olhar da diretora: o passado está de volta só que de outra forma (provavelmente com muito mais cor e vida). A memória de algo já contado é recontado é visto de forma muito original de modo muito especifico em sua falta de amplitude: são 23 anos de história passados em duas horas sem se perceber a mudança temporal no plano narrativo onde se trata da consciência humana da personagem.
As polêmicas em torno do filme são muitas; e polêmica gera dissenso, que gera política. Sofia criou arte sem querer criar política, e acabou que criou política junto com a sua arte.
Jacques Rancière
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"La Cicatrice intérieure” por Alan Campos Araújo
Filme produzido numa era "pós Nouvelle Vague", “La cicatrice intérieure” de Philippe Garrel nos mostra um lugar indefinido onde a memória parece persistir. No inicio da década de 70 muito do idealismo e da sensação de “poder mudar o mundo” que caracterizaram os principais movi-mentos artisticos da década anterior havia se dissipado. Entre os intelectuais da época existia um sentimento de que as ideias dos anos 60 não haviam vinguado: A guerra do Vietnã continuava, os confrontos entre estudadantes e a polícia se intesificaram, a geração “paz e amor” estava morta. Nessa época foram produzidos filmes com um realismo nunca visto antes como “Laranja Mecanica” e “Sob dominio do medo”, filmes violentos q refletiram bem seu tempo e foi nessa era conturbada e confusa que Philipe Garrel produziu e atuou em “La Cicatrice intérieure”.
Utilizando belas paisagens e com trilha sonora de Nico, modelo e ex Velvet Underground que tambem atua no filme, o filme é cercado por simbolismos e alegorias. Garrel parece estar em constante procura por algo em seu filme enquanto é atormentado por seu passado. Nunca é dito ao espectador exatamente o que o pertuba. O fato de ser pouco narrativo só aumenta a subjetividade e o leque de interpretações para compreender a obra.
O filme é feito com longas sequências que pouco, ou quase nada, se conectam entre si. Pode-se relacionar o longa ao conceito de “semelhença extra sensível” de Walter Benjamin. Particularmente senti essa relação, especialmente em duas cenas: a primeira é quando a personagem de Nico permanece sentada chorando e Garrel fica rodeando o cenário ate que finalmente para no mesmo local de onde saiu; a segunda é o navegador num mar gelado, a procura de algo e encontra por fim um bebê, alegorias a um messias para o fim daquele apocalipse?
Há uma sensação desoladora durante toda obra, não sabemos a origem das personagens, não temos ideia do local onde estão, apesar de sentimos que é um futuro pós-apocaliptico. O tema da “procura” é constante nos personagens sejam eles Garrel ou o homem montado no cavalo que ao encontrar uma tocha, com fogo, num ambiente gelado, parece encontrar o que procurava. O filme é bastante aberto para o espectador colocar suas experiências e é dificil reconhecer a verdadeira intenção de Garrel por trás das imagens mostradas. Há sempre algo mais profundo, como uma comparação histórica ou um estado de espirito remetendo a teoria de “Imagem aberta” do filosofo Henri Bergson. Tanto que Garrel sugeriu no lançamento do filme que o próprio deveria ser visto sem legendas, pois não afetaria em nada a experiência, as imagens que são as falas, que dialogam com o espectador.
Analisando o filme 40 anos depois, é facil vê-lo como reflexo da sociedade da época: confuso, inquietante, assustado. A loucura que a corrida espacial havia se tornado, Vietnã, governos ditatoriais na America Latina, morte de ícones pacifistas como Martin Luther king contribuiram para deixar o mundo com medo do futuro, do que poderia vir a acontecer. Acredito que Garrel nos mostra esse futuro através do filme.
Philippe Garrel
"Notas sobre Estrada Perdida", por Álvaro Brito
É como uma revelação que parece soar a última frase de A Estrada Perdida, pronunciada pelo personagem Fred Medison (Bill Pullman): “Dick Laurent is dead”. Não é somente o desfecho de uma trama que se entretece através de encontros de personagens e seus duplos, de elementos e personagens que de alguma forma se ligam aos protagonistas, em inflexões esquizofrênicas da narrativa etc. Não é nem mesmo um desfecho, na medida em que a frase só completa um labirinto cíclico indecifrável. A frase é pronunciada nas primeiras sequências do filme e quem a escuta, através do interfone de sua casa, é o próprio Fred Medison. Essa frase, que conecta dois espaços diferentes (o lado de dentro e o lado de fora da casa), também conecta o começo ao fim; e é uma revelação, não apenas para Fred Medison de dentro (que nem desconfia do que se trata a revelação), mas para o espectador: não se trata do encontro do mesmo personagem em espaços diferentes, não somente, mas também, e principalmente, do encontro de dois tempos diferentes: passado e futuro. Não é que Fred Medison tenha se duplicado, pois isso pressupõe um axioma newtoniano (dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço) e um espaço euclidiano (de coordenadas e pontos definidos). David Lynch, nesse caso, subverte e transforma a lei newtoniana, que podemos expressar nestes termos: dois corpos idênticos podem ocupar espaços diferentes. Mas como já disse, não se trata do espaço, ou somente do espaço, mas do tempo.
Se David Lynch consegue amarrar o fim ao começo, numa trama construída a partir de curtos-circuitos no tempo, de modo a torná-lo cíclico, então não há sentido em usar termos como passado e futuro. Podemos falar de Bergson que, numa radicalidade extrema de suas teorias, chegou a abolir essas instâncias; mas em Estrada Perdida, passado e futuro são tempos que se apagam na relatividade dos acontecimentos, posto que se ordenam de forma cíclica e pressupõem uma repetição. Mesmo que esses acontecimentos fossem ordenados de forma simples, ainda assim não seria possível estabelecer passado e futuro, causa e efeito, já que um implica no outro e vice-versa. Mas em Estrada Perdida há muitas lacunas e muitos curtos-circuitos (por isso a recorrência de lâmpadas e seus ruídos durante o filme). No mais estranho dos casos, temos Fred Medison transformado em Peter Dayton, em sua cela, no corredor da morte. São pessoas diferentes, mas que se conectam através de alguns elementos (Dick Laurent, Renee Medison/Alice Wakefield, as crises esquizofrênicas dos personagens etc).
O espaço deixa de ser euclidiano em Lynch porque se configura como um problema, pois não segue os princípios de economia dos quais falava Deleuze. No espaço euclidiano, como nos fala Deleuze, os elementos que provocam tensão são facilmente localizáveis; tal espaço mantém suas coordenadas de maneira a evitar qualquer descontinuidade. Mas em Estrada Perdida, não temos apenas uma descontinuidade, mas uma exacerbação da tensão pelo mistério. Desconhecemos os personagens, não sabemos do que são capazes nem quais serão seus próximos passos; a todo momento uma trilha sonora vibra dissonante, exacerbando esse clima de tensão. Não são pólos opostos, no entanto, que provocam tensão, mas a indefinição desses pólos, que nos desconcertam, que minam nossos pontos de segurança. Os inimigos não são facilmente localizáveis. As situações e o espaço sofrem uma espécie de desnaturalização, pois tudo é passível de driblar nossas expectativas. Mesmo o espaço que supostamente oferece mais segurança, o lar dos Medison, abriga uma atmosfera estranha, seja pelo relacionamento duvidoso entre marido e mulher, seja pelos vídeos estranhos de sua casa.
Para ilustrar melhor o que falo sobre a experiência do tempo em Estrada Perdida, cabe lembrar uma passagem do conto O jardim dos caminhos que se bifurcam, de Jorge Luis Borges, quando o sinólogo Stephem Albert explica ao fugitivo chinês o inextricável romance de Ts’ui Pen, seu antepassado:
“Em todas as ficções, cada vez que um homem se drefronta com diversas alternativas opta por uma e elimina as outras; na do quase inextricável Ts’ui Pen, opta – simultaneamente – por todas. Cria assim diversos futuros, diversos tempos, que também proliferam e se bifurcam.”
Deleuze também se refere a essa proliferação de tempos no capítulo 6, As potências do falso, de Imagem-tempo. Nele, assim como no resto do livro, ele trabalha as novas narrativas que negam o movimento sensório-motor em detrimento das potências do falso, de possibilidades na ficção. Ou seja, a narrativa não se sucede através de causas e consequências, e seus personagens não se submetem a ela (à maneira de um discurso); mas são as situações que se moldam aos personagens. Por exemplo, em Estrada Perdida, o homem misterioso que ameaça Fred Medison é o mesmo que o ajuda na luta contra o gangster. Fred Medison é condenado à morte por assassinar sua esposa, mas no corredor da morte outra pessoa é encontrada em sua cela. Fred escapa a um destino fatal para reaparecer mais tarde, fugindo por sua vida. Essas situações sugerem o encontro entre realidades paralelas (o que já é uma contradição), entre tempos que tomam outros caminhos e que, afinal, acabam por completar um movimento circular, no qual passado se torna futuro e vice-versa.
Gilles Deleuze
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“Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo”, por Amanda Beça
Um canal no Rio São Francisco vai ser construído no sertão árido para que toda uma população interiorana do Nordeste possa suprir carências básicas. José Renato, então, é mandado numa viagem no intuito de estudar a geologia local por quase um mês. Mas em menos de dez minutos de filme, percebemos que o protagonista está tão carente quanto as pessoas que moram ali. A princípio, o que parecia ser apenas uma grande saudade de casa, se mostra, na verdade, uma saudade nostálgica e melancólica de uma vida que ele teve que deixar pra trás. Depois de ver um cartaz colado na parede escrito “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo”, Renato transborda suas sensações e faz do espectador um diário de bordo e da viagem uma terapia. Montanhas, relevos e rochas são trocados por “galega”, casamento e flores. Ele sofre de amor e nos confidencia suas maiores angústias, lembranças e sentimentos, de modo que conhecemos Renato inteiro, por mais que nunca vamos vir a saber como é seu rosto.
Com nome retirado daquele cartaz, o filme de Karim Ainouz e Marcelo Gomes resume uma década em setenta e cinco minutos. As gravações são datadas entre os períodos de 1999 a 2009, numa mistura de digital com analógico. Dentro da narrativa, os dez anos se transformam em 53 dias na vida de José Renato, que parecem durar muito mais sempre que ele pensa em Joana e todo o tempo que passaram juntos. “Duração” e “Afecção” são as constantes do filme, tanto em forma quanto em conteúdo. Estética e temática estão tão bem harmonizados, que é impossível falar de um sem comentar o outro. A mistura de formatos e de linguagens (documental e ficcional) ressignificam as imagens, dialogando com a própria ressignificação da essência do personagem. Se Bergson diz que o presente é tudo o que fomos no passado para poder agir pro futuro, e que isso interfere na maneira como interpretamos as coisas, não existe alguém mais imerso nisso tudo do que Renato. Embora este seja um momento de vazio e de dúvidas em que ele precisa reembaralhar tudo pra trazer ele mesmo de volta a si.
A dor constante da lembrança altera toda a sua percepção do ao redor. José Renato muito provavelmente já era acostumado a ver o árido nordestino, mas nesta viagem a paisagem se confunde com o sensível e ele consegue ver ali outras coisas. A solidão das pessoas, a beleza do sertão, a fé do povo, as prostitutas na beira da estrada, ele percebe as coisas dentro de um sensível que o permite sair das camadas superficiais das imagens para ir mais além. Sempre com o seu passado – melhor intitulado Joana – na memória, a complexidade e diversidade do sertão floresce dentro dele.
Mas é justamente do passado que o faz transcender, que Renato quer se desprender. Uma coisa leva a outra: por causa de doloridas memórias-virtuais tão presentes quanto a própria memória-usual, Renato entra num dissenso com si mesmo e se torna capaz de suspender seu “eu” e viver num momento de anarquia pessoal, num vazio, para poder descobrir um novo sentido de si e se transformar. Pra isso, sua viagem tem função sine qua non. Primeiro repudiada, aquela vontade doida de voltar pra casa, Renato conta os dias pra ir embora. Mas o que era pra ser uma viagem de 27 dias termina o dobro disso. Através do seu sensível à flor da pele, ele consegue imergir naquela realidade aparentemente vazia e descobre naquele povo simples, uma grande complexidade. Seu estudo sobre a geografia local se perde e ele termina aprendendo muito mais sobre aquela atmosfera do que poderia aprender observando a composição das rochas. A câmera sempre subjetiva e a narração constante do personagem faz com que vejamos o Nordeste que ele vê, e assim percebemos aquelas imagens literalmente no mundo idealista.
O público, além de assistir ao dissenso do personagem, também vive um. O sertão é tema saturado no cinema brasileiro e possui um estereótipo desgastado para o espectador alfabetizado pelo cinema estrangeiro. Para dificultar, a estética “câmera-olho” do filme é dura de engolir e causa estranhamento pra quem pensa o audiovisual como quem vê apenas simplicidade no sertão. Tudo isso se resume em um advérbio: a princípio. Porque com o passar do tempo, o público é embalado pelo sensível junto com Renato e a mesma sensação que ele tem para com o fim da viagem é a nossa quando o filme termina: transcendência.
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"8 ½ de Frederico Fellini", por Pedro Augusto Souza Bezerra de Melo
O filme 8 ½ de Frederico Fellini conta a uma jornada de um cineasta, Guido Anselmi, dentro da sua própria consciência. Inquieto diante da insegurança sobre o tema do seu novo filme ele entra em um momento de crise de inspiração somado ao fato de ele se sentir fisicamente esgotado faz com que ele se interne em uma espécie de spa onde ele mergulha em sua própria vida. Essa situação de cansaço físico e intensa pressão profissional faz com que Alsemi adentre sua consciência investigando seus sonhos e fantasias, passando por seus dilemas e memórias confusas, o levando de volta também a sua infância.
O filme é permeado de momentos com tons oníricos e fantasiosos, algumas vezes em forma de sonho e outras apenas como um momento em que o personagem se perde em seus devaneios imaginários. Como por exemplo, a cena inicial em que o protagonista sonha que está em um carro trancado, preso no trânsito dentro de um túnel; Depois de um grande esforço, consegue sair do carro e começa a voar por entre os automóveis até chegar ao oceano, quando percebe que está preso a uma corda pelo tornozelo.
Diante desse filme em que tudo tem um viés imaginário, fantástico e há uma intensa ebulição de ideias, imagens e sentimentos com conteúdos interessantemente conflitantes, é possível fazer uma leitura das cenas contemplando o conceito Bergsoniano de durée, que é essencialmente um novo conceito de análise do tempo. O tempo usualmente é considerado geral e aplicável igualmente a todas as situações e pessoas, porém esse conceito defende a particularização do tempo como uma dimensão pessoal e subjetiva. Segundo Bergson, quando se adentra a durée, o tempo cronológico não é mais usado com o mesmo valor que teria como referência para a sociedade, pois a durée é um estado psicológico, que logicamente considera estritamente a atividade psicológica como referencial. Ideias e sensações formam o modo como o sujeito se transforma diante da experiência
Há uma cena no filme, onde o protagonista revê todas as mulheres da sua vida, juntas. Essa cena pode ser relacionada intimamente com o livro Matéria e Memória de Bergson, no sentido de que é possível inferir do texto uma ideia de que os corpos ao redor do sujeito refletem as possíveis ações do sujeito sobre eles. A cena citada aqui mostra nitidamente uma diferença no modo do sujeito tratar cada objeto, no caso, as mulheres que passaram por sua vida, de acordo muitas vezes com o tratamento que ele recebia dos objetos o que remonta a outro pensamento do mesmo livro, que mostra como mudando os objetos, de lugar que seja, a relação dos mesmos com o sujeito vai ser modificada também. Há também uma relação dos objetos (as mulheres) entre si, modificando assim umas as outras. É também importante fazer a ligação dessa cena, que é um devaneio onírico, com a relação Idealismo versus Realismo, exposta no livro, até por ser um sonho fica mais fácil de provar uma ideia do livro, que diz que não há percepção que não esteja impregnada de lembranças, e a evidência mais simples do emprego dessa ideia no filme é o fato de todas as mulheres nessa cena foram em algum momento personagem na vida de Guido Anselmi.
"A estrada perdida", por Rayssa Costa
O longa-metragem A Estrada Perdida de David Lynch é um filme que até em seu gênero abre espaço para multiplicidade quando mistura drama, suspense e inclusive um pouco de terror. Fred Madison (interpretado por Bill Pullman) é acusado pela morte de sua esposa Renee (Patrícia Arquette), mas não se sabe exatamente como isso aconteceu e, a fim de não clarear as idéias do espectador, a história de desenrola na transformação de Fred em outro homem e vivendo uma nova vida – agora ele é Pete Dayton. No corpo desse segundo homem, o personagem principal dessa trama passa por experiências também misteriosas, o que leva o público, ao fim da exibição, a não conseguir assimilar o que viu de maneira completamente consciente.
Isso (a imagem não assimilada de forma completa ou hermética) pode ser claramente relacionado ao dual conceito de imagem de Bergson – filósofo francês –, quando ele fala de resumo e abertura. O que foi visto é apenas o resumo da película e, sendo o mundo um conjunto de imagens e de partículas em expansão, a imagem fílmica abre-se para o imaginário do homem. A partir disso, busca-se na memória argumentos e situações que de alguma maneira clarifiquem o filme; faz-se, ao mesmo tempo daquilo que foi assistido, memória para o que ainda está por vir.
Um parêntese apenas para discutir sobre uma possível classificação do Cinema. Seria ele, o audiovisual, um ótimo exemplo de resumo e abertura? Mesmo com o som, já que de algum tempo para cá esta arte é tida também como uma experiência sonora, o filme pode aderir e exemplificar este conceito? Não adentrarei no longo e complexo conflito do que é mais importante e do que se sobrepõe: o que é visto ou o que é escutado. Até onde o filme resume uma história e se faz abertura no imaginário do espectador? Talvez, seja o cinema um modelo que capte apenas parte de determinado universo e, a partir da visão do espectador, se transforme em um todo – incomensurável – não visível ou não classificável para o outro, que não ele mesmo ou aqueles que compartilham da sua visão e opinião.
Voltando para as impressões do filme e aplicando as mesmas ainda a conceitos de importantes personalidades cinematográficas, outra alusão importante que se pode fazer é a respeito de lembranças. Quando se fala em abertura (imagem), a fim de se fincar relações para elucidar o conteúdo assistido, pode-se pensar na memória. Em Matéria e Memória, Bergson destaca importantes conceitos que potencializam as análises sobre o audiovisual e seus diversos discursos: a memória e sua relação com as imagens. Para pensar a memória como agente possível na criação de subjetividades é preciso que se observem as funções do corpo e suas potencialidades em relação às imagens que lhe são exteriores. Com o corpo construímos, de forma subjetiva, os objetos e as relações com o mundo. Imagem, então, é também memória, pois é a partir daquela que extraímos os fatos e os acontecimentos que configuram formas de relação em sociedade ou com outros objetos, portanto a ação sobre as coisas identificando-as como imagem-lembrança ou remidiatizando-as como imagem-ação (esta só depois de existir uma percepção consciente).
Portanto, é por meio das imagens-lembrança que nasce o reconhecimento dos objetos: sua comunicabilidade. Por ela [imagem-lembrança] se tornaria possível o reconhecimento inteligente, ou melhor, intelectual, de uma percepção já experimentada; nela nos refugiaríamos todas as vezes que remontamos, para buscar aí certa imagem, a encosta de nossa vida passada (página 62 de Matéria e Memória). É essa mesma imagem, então, que se faz como uma maneira de mediação entre o mundo e o homem.
Henri Bergson
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"A morte anunciada", por Igor Calado
Sobre seu filme de estreia, O Pântano (La Ciénaga, 2001), a diretora e roteirista Lucrecia Martel disse em entrevista: “Para mim, não é um filme realista. É algo estranho, meio esquisito. É o tipo de filme onde você consegue dizer o que vai acontecer, e eu queria que a audiência ficasse bem incomodada desde o começo” . Isso sintetiza bem a fórmula que a obra emprega.
Da razoável quantidade de personagens da película, a maioria são mulheres, sobre as quais recai a ênfase da narrativa. Dentre os personagens masculinos, há Luciano (Sebastián Montagna), apelidado Luchi, de 11 anos, cuja primeira aparição no filme é com um corte na perna. Apesar do ferimento não parecer grave, sua mãe Tali (Mercedes Morán) leva-o ao médico, onde recebe pontos. No mesmo hospital está a amiga de longa data de Tali, Mecha (Graciela Borges), que, bêbada, caiu sobre copos e também sofreu cortes de gravidade maior. Essa coincidência levará as famílias a uma série de encontros, muito bem explorados por Martel, que combina acurada análise de relações familiares e interpessoais da classe média decadente do norte da Argentina com uma mise-en-scène e história “estranhas”, muito além de um olhar unicamente social.
Muitas personagens femininas de Martel apresentam agouros de uma velhice com problemas de saúde, entre outras más notícias. No entanto, nenhum personagem tem seu destino tão fatalmente marcado quanto Luchi. Mobilizando desde artifícios narrativos até a montagem, o filme reforça repetidas vezes o caráter lúgubre do personagem, cuja morte parece ser anunciada diversas vezes até sua efetiva realização ao final do filme.
Das várias construções “proféticas”, destaco três, por sua maior relevância: numa das visitas à casa de Mecha, brincando à beira da piscina suja com as crianças da casa, Luchi escuta de Vero (Leonora Balcarce) uma história um pouco aterrorizante: uma senhora leva para casa um cão desprotegido, mas no dia seguinte todos seus gatos desapareceram e o cão está ensangüentado; a senhora leva-o ao veterinário, ele parte o animal ao meio com um machado, revelando vários dentes, e diz que não é um cachorro, mas uma “rata africana” – traduzido nas legendas como “rato-do-banhado”. Luchi passará a associar os cães à rata africana, tendo deles medo – e, no caso do cachorro de seu vizinho, mais medo do que já tinha.
Mais adiante, Luchi acompanha os filhos de Mecha numa caçada na serra. O grupo se depara com um boi atolado num lamaçal, do qual Luchi se aproxima. Os dois garotos mais velhos levantam as armas e as apontam na direção do animal e de Luchi, que as olha sem parecer compreender, enquanto eles pedem que ele saia da frente. A cena, construída de forma tensa, termina com um plano geral da serra onde ouvimos um disparo. Só na cena seguinte temos confirmação de que Luchi está vivo.
Um último caso: depois de uma briga numa festa de Carnaval, José (um dos filhos de Mecha, interpretado por Juan Cruz Bordeu), está caído no chão, machucado, sendo aparado por seus amigos; um corte seco muda o ambiente para o quarto de Luchi, onde o pai ajeita na cama a criança adormecida. O corte seco é um match cut, criando associação visual direta entre o corpo machucado de José e o de Luciano.
No primeiro caso, os recursos manipulados dizem respeito estritamente à narrativa: a história da rata africana retornará para assustar Luchi em diversos momentos da história. Pode ainda ser traçado um paralelo entre a história da rata africana e da própria vida de Luchi: está nascendo um dente a mais em sua boca e, no final de cada história, Luchi e o rato morrem.
Essa interpretação é reforçada por uma cena onde Tali e seu marido observam intrigados uma radiografia dos dentes de Luciano, ao lado de uma construção que faz um barulho desagradável. O ruído parece fazer um mal especial ao ouvidos de Tali; um plano de Luchi mexendo a boca faz parecer que ele está emitindo os sons, semelhantes aos de um animal estranho.
Já a cena do boi atolado é feita com suspense deliberado, com closes em rostos tensos e planos ameaçadores, culminando com o disparo assustador. Toda a mise-en-scène é explorada de modo a fazer crer na morte do garoto, desde os avisos anteriores de Mecha sobre os perigos da serra à tensão da montagem, mas essa expectativa será frustrada já no próximo plano. Fica patente para o espectador o descompasso entre a operação estética da cena e os fatos narrativos que nela acontecem, descompasso esse que, claramente, não parece querer ser lido como simples frustração da expectativa.
Por fim, a associação imagética entre os dois corpos, um maltratado de adulto, outro adormecido de criança, é um dos mais simples. O match cut sobrepõe diretamente um corpo a outro e, neste caso, é investido de especial valor semântico.
▪ ▪ ▪
No cinema de gênero, as expectativas são parte constitutiva do processo de recepção do filme e se baseiam em regras que delimitam o raio de ação do gênero. Qualquer filme que se proponha participante ou pretenda qualquer relação com determinado gênero irá, portanto, se relacionar de maneira negociada com o leque de opções e regras desse respectivo gênero, que é mutável.
Eventualmente, regras de um gênero transbordam para filmes fora desse gênero ou que não se pretendem de gênero. Assim, quando aparece um close solitário de uma faca em Violência Gratuita (Michael Haneke, 2007), o espectador, através de seu repertório, compreende que aquele objeto provavelmente terá importância em parte futura da narrativa – o filme se propõe precisamente a brincar com esse tipo de expectativa.
Ao longo de O Pântano, a expectativa da morte de Luchi é criada explorando-se recursos cinematográficos e narrativos diversos. É precisamente na forma original como se dão essas associações, que quase nunca se relacionam com os clichês e regras da cinematografia convencional e clássica, que reside um dos pontos mais interessantes do filme.
Na primeira meia hora de filme, já fomos apresentados ao medo que Luciano tem do cão do outro lado da parede – que não vemos; também somos apresentados à escada que a mãe usa e seu perigo. Esses artifícios são usados de maneira bastante convencional e sua leitura, para o espectador médio, não causaria estranheza.
Dali em diante, as associações irão operar de forma distinta. Enquanto que o artifício anterior é lido necessariamente em relação ao clichê hollywoodiano, a falta de referências para as outras operações associativas é precisamente o que lhes confere esse ar incômodo e sobrenatural – e a originalidade do projeto.
Em seu texto “A doutrina das semelhanças” , Walter Benjamin elabora uma teoria da linguagem e da comunicação que postula, grosso modo, que o ato de ler refere-se à capacidade de compreender as semelhanças, como um astrólogo lê as estrelas. Diz que, ao longo do tempo, a humanidade passou a deslocar suas habilidades de leitura para campos cada vez mais racionais e restritos e que, hoje em dia, privilegia-se a língua. Para Benjamin, a leitura da língua (falada e escrita) se baseia, em menor medida que nas ciências ocultas, em “semelhanças extra-sensíveis”, relações aparentemente mágicas, de modo que a passagem do significante para o significado exige certa operação mística para concretizar-se. Tais semelhanças permitiriam acesso a camadas e saberes ocultos da natureza, de caráter sobrenatural – estando implícito que tais camadas não seriam acessíveis pelos métodos racionais.
A filmografia recente de David Lynch tem sido primorosa na exploração de interligações narrativas “supostas” entre diversas histórias de vida aparentemente desconexas, como testemunham Inland Empire (2006) e Lost Highway (1997). O emprego desse artifício pelo autor americano é bastante benjaminiano: eventos na vida de personagens diferentes parecem ter paralelos, semelhanças extra-sensíveis, mas ligações causais dificilmente podem ser estabelecidas.
Exemplo disso são as várias e diferentes referências a coisas e pessoas da Polônia ou do Leste Europeu em Inland Empire, aparentemente sem relação entre si. Neste filme, aos personagens não lhes parece ser dada a oportunidade de realizar essas leituras extra-sensíveis, pelo menos na grande maioria dos casos. Mas ao espectador lhe é oferecida esta alternativa, o que altera completamente a recepção da obra.
O mesmo pode-se dizer d’O Pântano de Martel: a natureza parece abundar de sinais gratuitos, estranhos, cuja compreensão de sua real dimensão, a visão ou intuição de outras camadas de conhecimento, só se realiza para o espectador, enquanto permanecem ocultas aos que habitam a história.
Suponhamos uma alteração do projeto de Martel, onde os personagens se tornariam capazes de efetuar a leitura dessas semelhanças extra-sensíveis. Enquanto que muitos dos signos que permitem essa leitura já habitam o mundo diegético, a leitura em si, não é nele realizada; quando efetuamos a modificação citada, o valor semântico dessas “coincidências” passaria ao mundo diegético e perderiam completamente sua aura sobrenatural, pois esta reside obrigatoriamente na sensação facultada ao espectador de poder ler esse mundo, a posição privilegiada de clarividência, enquanto que esta é negada aos seus próprios habitantes, criando-se a desconfortável impressão de obviedade e fatalidade, enquanto os personagens permanecem alienados.
É interessante notar que, a medida que os artifícios cinematográficos que engendram semelhanças se aproximam cada vez mais da técnica e menos da narrativa, menos “sobrenaturais” soam os artifícios. O match cut dos corpos, por exemplo, atrai muito mais atenção para o meio e para o caráter construído do discurso que a história da rata africana, pois a narrativa verossimilhante desfavorece a auto-reflexividade. Assim, quanto mais técnicos, os artifícios parecem cair menos na leitura extra-sensível benjaminiana e mais no campo racional da semiótica – onde, a bem da verdade, estará tudo incluso, caso compreendamos o projeto místico de Walter Benjamin como inadequado para a compreensão do fenômeno da linguagem hoje em dia.
O texto de Benjamin data de 1933, bem posterior, portanto, à publicação do seminal Curso de Linguística Geral de Ferdinand de Saussure, ocorrida em 1916. O alemão cita nominalmente a semiótica (àquela época ainda baseada no estruturalismo saussuriano), tentando equacionar sua abordagem mística com o racionalismo desse campo: “Essa dimensão – mágica, se se quiser – da linguagem e da escrita não se desenvolve isoladamente da outra dimensão, a semiótica” . Entretanto, a tentativa me parece bastante inadequada, visto que a arbitrariedade da relação entre significante e significado é um dos postulados de base da pesquisa de Saussure, ao passo que Benjamin ainda acredita numa relação intrínseca entre os dois, o que claramente não se aplica aos sistemas escritos que visam representar o significante (os símbolos que representam, como próprio Alemão, de onde o autor tira o exemplo, em oposição, por exemplo, ao sistema ideogramático).
Apesar de talvez não ser interessante enquanto proposta de ciência da linguagem, o texto de Benjamin ainda pode ser produtivo por sua elaboração do conceito de “semelhança extra-sensível”, mesmo que de forma diferente da prevista pelo autor. O que ele compreende como a capacidade dos “antigos” de ler os signos da natureza pode ser tida como um transbordamento do princípio humano da procura do sentido, em especialmente, pela narrativa – mesmo que teleológica.
Aplicado especificamente à arte, a idea de semelhança extra-sensível cai como uma luva para descrever regimes de leitura particulares, especialmente os empregados por David Lynch e, em menor medida, por Lucrecia Martel. Esses artifícios provavelmente continuarão criando impacto somente enquanto não se disseminarem e forem absorvidos pelo repertório canônico da linguagem do cinema, perdendo aí sua originalidade primordial, essas dos filmes de Lynch e Martel, para virar uma referência tanto na prática quanto na recepção, os efeitos então sendo produzidos em relação com o artifício.
Esse extra-sensível benjaminiano parece habitar especialmente os artifícios narrativos, a história da rata africana mais que o match cut, porque se baseia na leitura dos signos dentro do universo diegético, enquanto que o corte e a manipulação da mise-en-scène existem de forma mais clara para o espectador fora deste mundo diegético, não reproduzindo assim esse “dom da apreensão mimética”, da interpretação das correspondências extra-sensíveis que Walter Benjamin admira nos “antigos”.
Referências bibliográficas
Entrevista com Lucrecia Martel no The Telegraph, http://www.telegraph.co.uk/culture/4725891/Great-pool-of-talent.html (em Inglês, tradução livre).
Walter Benjamin, "Obras Escolhidas, vol 1 – Magia e Técnica, Arte e Política" (Ed. Brasiliense, 3ª edição).
"Aborder la linguistique", de Dominique Maingueneau (Éditions du Seuil, 2009).
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"Registro de um certo tempo: Marker, Godard e Ujica", por Heitor Dutra
Walter Benjamin, na nona tese de Sobre o Conceito da História fala de uma pintura de Paul Klee. Um anjo que encara algo fixamente, e tem os olhos esbugalhados pelo que vê. Ele tenta se afastar mas não consegue. Benjamin diz acreditar que este anjo olha para o passado e abre as asas tentando fugir, tentando de alguma maneira escapar. Mas parece que ele não é feliz na sua tentativa. O que dizer de Chris Marker ao fazer um especial para a televisão francesa sobre um velho cineasta russo esquecido, e praticamente ignorado até nos círculos mais intelectualizados de cinéfilos? E de Andrei Ujica, que na década de noventa lança em parceria com Harun Farocki uma revisão da revolução romena, que pôs fim a ditadura de Nicolae Ceasescu em 1989?
Falamos, no caso de um filme que se volta três anos no passado, um acontecimento (que, imagine, se hoje ainda têm suas sequelas que povoam a mente dos romenos, avalie em 1992) fresco nas mentes de todos. Fresco na mente de todos também devem ser as imagens da invasão da tv romena, com os manifestantes deixando o povo que estava em casa por dentro de tudo que acontecia no país naquele momento, naquele estado de exceção. Para o mundo isso não estava assim tão evidente. Ao pôr isso num filme Ujica e Farocki deixam circular uma história particular, vivida num pequeno país europeu, e mais intensamente ainda em sua capital, Bucareste, mas que diz respeito a toda década de oitenta e noventa, com o desmembramento dos países do leste europeu. Com sua intenção de não adotar nenhuma entrevista com pessoas ligadas ao acontecimento, Ujica nos confidencia uma vontade: a de mostrar, não os bastidores do acontecimento de maneira geral (apenas se isso tenha sido registrado pelos cinegrafistas da época), mas os registros daquele momento. Ele conta a história daquele inverno romeno, mas não se interessa se você, que assiste ao filme, sabe alguma coisa sobre a Romênia. As imagens nos contam tudo que devemos saber, é a história sendo escrita só com os registros em vídeo das pessoas que documentaram o evento, e o nome do filme já deixa isso bem claro: Videogramas de uma Revolução. Ujica adota essa mesma "técnica" em seu filme de 2010, Autobiografia de Nicolae Ceasescu, onde durante três horas são rodadas imagens do ex-ditador romeno desde que assume o poder, até seu julgamento improvisado.
O caso de Chris Marker em Elegia a Alexandre é semelhante. Há toda a tomada de imagens de arquivo, mas elas não são a totalidade: há imagens gravadas exclusivamente para o filme também. Há entrevistas com pessoas ligadas diretamente a Alexandre, o cineasta em questão. Mas, creio, é importante no filme de Marker a vontade de retomar algo esquecido, nós lembramos e estudamos muito Einseinstein, Pudovkin, Kuleshov, enfim. Mas o que nos leva a esquecer alguém, ao desinteresse completo; que fatores levam uma personalidade a desaparecer do cenário dos estudos sobre cinema? Creio também numa certa saudade, uma nostalgia, no sentido próprio da palavra, no filme, apesar de ser francês o realizador, e de não ter vivido diretamente os fatos que acometeram o cineasta russo, há um interesse, uma investigação presente e evidente no filme de mostrar, não como era maravilhoso, ou como era verde o vale. Mas como se vivia, o que se fazia, um homem que fazia seus filmes, a tentativa da mudança com a revolução, e de como isso foi fundamental para toda uma geração de artistas, (de todas as pessoas). E ao mesmo tempo como isso foi passando e se dissolvendo, até chegar no ponto em que o país acaba, surge a nova Rússia, uma Rússia que Alexandre não viu, portanto, é questionável para Marker se ela importa ou não para ele, em seu filme.
Acredito que em Godard a coisa acontece de maneira um pouco diferente, durante dez anos ele trabalha numa série para a televisão francesa (A tv francesa realmente me surpreende), Histoire(s) du Cinéma, em oito episódios o projeto tenta de sua maneira própria contar um século de cinema, contar a história do cinema como nunca se fez antes, com imagens. Godard não faz como Ujica em "Videogramas", ou na "Autobiografia de Nicolae Ceasescu", ele não pega as imagens e simplesmente as edita. As imagens estão lá, trechos curtíssimos de filmes, pinturas, fotografias e músicas. Pode se pensar também na imagem que é evocada pela voz do próprio Godard com suas frases de efeito, ora completamente incompreensíveis, ora tão próximas, e mesmo aquelas que não se pode entender de maneira evidente, às vezes nos toca de alguma forma, num lugar que não é atingido facilmente. Há também as legendas, que são fundamentais para lançar certos "conceitos" (com grandes aspas) que serão de certa forma trabalhados, não são óbvias, Godard faz questão de não ser.
Interessante é pensar que Godard já com certa idade, quando começa a série tem quase cinquenta anos, e quando termina quase sessenta, tenha se lançado nessa empreitada, num projeto desse tamanho: contar a história de algo que ele participou de maneira tão marcante, e de forma única. Há um trecho do primeiro episódio que é muito interessante para exemplificar, se for possível, a forma como ele trabalha a idéia de história e do que acontece no cinema no século XX: Intercalando a imagem de Gilda dançando, e a da senhora que é lançada na fogueira em "Dias de Ira", Godard questiona a bruxaria, o feitiço no cinema, quem pratica, de certa maneira, esse encanto, mas não é encantadora, talvez mereça ser queimada, não sei. As duas são bruxas, ou talvez apenas Gilda, quem sabe.
Benjamin fala em determinado momento sobre o historiador, citando Coulanges, o que tem tudo a ver com todos esses três cineastas: Marker com seu retorno a Alexandre, Godard com seu século a trabalhar e Ujica com a vida do ditador a contar sem nenhum comentário por parte de narrador: "Ao historiador interessado em ressuscitar uma época, esqueça tudo o que sabe sobre fases posteriores da história" Benjamin pregava uma história diferenciada, que não fosse tão burocrática e amontoada de fatos. Talvez para Godard isso não seja tão notável, mas eu acredito, que ao se debruçar sobre cada momento ele tenha prestado atenção a tudo que se passava, e ao olhar pra trás, em seu caminho, certamente o passado mais recente ficou evidente. O que com certeza caberia aos três: "Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminescência, tal como ela relampeja no momento de um perigo".
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"Superstar: The Karen Carpenter Story", por Maria Cecília Shamá
Johnny Carson, The Tonight Show, 1973, em entrevista aos e ao Carpenters:
- Eu poderia fazer uma pergunta boba? Com todo o sucesso que vocês estão tendo, vocês estão mais felizes agora do que quando começaram? Entendem o que quero dizer?
Karen: Claro! Apenas tão ocupados quanto mais felizes. Mais Felizes?
Estocolmo, Suécia, 1969:
Entrevistador: - Seus pais lhe encorajavam a cantar?
- Janis Joplin: Não, não, não. Eles queriam que eu fosse uma professora, sabe como todos os pais querem para seus filhos. Mas comecei a cantar por volta dos dezessete anos, e ouvia muita música e um dia comecei a cantar e gostava de cantar.
A boneca barbie desde 1959. Os padrões de beleza desde sempre. Para cada estrela apenas uma vez, e, portanto, uma existência enquanto intensa ao mesmo tempo curta. Se a música não precisa de forma para existir, enquanto Amy nos deixa, Janis se retira, Karen lutava contra si própria, a indústria cultural ao todo, enquanto tudo e do tudo para o nada.
Tal como narra Todd Haynes em seu filme, a fama cantada, vivida, fotografada, filmada e estrelada por e para Karen Carpenter em seu caso de amor mal sucedido com a perfeição. A música no intermédio das dores e fantasmas internos de seus cantores, denúncia da sociedade, do passado e do presente cultural agridoce da cinematografia de Haynes e da voz de Karen em forma de música aos olhos do cinema.
A princípio pode parecer estranho a forma pela qual Todd Haynes resolveu captar a essência dos problemas de aparência de Karen Carpenter; construir uma narrativa em forma de Era uma vez... ambientada em uma casa de bonecas onde barbies circulam em cores e formatos diferentes a fim de captar a essência da anorexia nervosa de sua protagonista, gera um estranhamento curioso, do tipo corriqueiro em biografias, a licença de olharmos por entre o buraco da fechadura para fatos públicos com pessoas públicas, em vidas públicas. Fica a sensação da ironia que Haynes não pôde deixar de contestar num mundo ligado à aparência, aos rótulos e ao desgastes dos invólucros superficiais da matéria corpórea:
“ Arte é objetivação da vontade numa coisa ou numa representação, e a provocação ou estimulação da vontade. Do ponto de vista do artista, é a objetivação encontrada de uma volição; do ponto de vista do espectador, é a criação de um cenário imaginário para a vontade”, Susan Sontag – Contra a Interpretação.
Natural que escolha bonecas com o ideário de perfeição física dos EUA, loiras, magras e de olhos azuis, de plástico, irreais, inalcançáveis, deformadas pelo desenho simétrico das lojas de brinquedos. E tal simetria ganha um ar macabro quando passa a ser violada através de deformações no corpo e rostos das bonecas ao longo do filme. Quanto mais Karen emagrece, mais suas bonecas vão se desgastando e a cantora some em meio à sua doença.
A violência simbólica é amplificada na mente de Karen e na lente de Haynes. Os espelhos, a voz melodiosa de Karen, os vidros de laxante, a comida desejada e repudiada ao mesmo tempo, a silhueta perfeita a ser alcançada, os gritos, a dor, as barbies, as instituições familiares falidas, o casamento, as roupas, o divórcio, as apresentações públicas para a construção do perfeito produto a ser vendido para os lares. Os irmãos interioranos talentosos musicalmente, e o ideário de pureza visual e musical que Karen canta para vender discos e imagem. Uma imagem falha, que liga e desliga a todo o tempo, de plano para plano, como um número musical inacabado, uma voz que continuou a ser ouvida apesar do corpo e da ausência física. Os Carpenters viram lenda pop, pela tragédia, pela morte, pela imperfeição, pelas notas musicais, por nós. Menos por eles mesmos. E por Karen.
Longe do paraíso mais uma vez, o diretor celebra e critica a forma como construímos nossos ídolos e como os colocamos na desconfortável posição de exemplo a ser seguido. A trilha do filme, permeada pelas canções da dupla desferem a razão de ser de seu filme. Uma biografia com pinceladas de realismo fantástico e imediatismo, onde forjamos nossos ídolos e eles a si próprios, num jogo visual arbitrário, em um cenário musical feito de grandes talentos absortos em seus problemas pessoais e na intervenção midiática necessitada de grandes estrelas por minuto. Cabe aos próprios ídolos forjarem a si mesmos, e a nós continuar seu legado através dos discos de canções nunca gravadas, de músicas interpretadas por outras bandas, dos especiais de televisão sobre suas vidas e das biografias cinematográficas. Do corpo humano que cede a pressão ter de ser representativo, diante do ser humano, com suas segundas-feiras e dias chuvosos.
- Eu poderia fazer uma pergunta boba? Com todo o sucesso que vocês estão tendo, vocês estão mais felizes agora do que quando começaram? Entendem o que quero dizer?
Karen: Claro! Apenas tão ocupados quanto mais felizes. Mais Felizes?
Estocolmo, Suécia, 1969:
Entrevistador: - Seus pais lhe encorajavam a cantar?
- Janis Joplin: Não, não, não. Eles queriam que eu fosse uma professora, sabe como todos os pais querem para seus filhos. Mas comecei a cantar por volta dos dezessete anos, e ouvia muita música e um dia comecei a cantar e gostava de cantar.
A boneca barbie desde 1959. Os padrões de beleza desde sempre. Para cada estrela apenas uma vez, e, portanto, uma existência enquanto intensa ao mesmo tempo curta. Se a música não precisa de forma para existir, enquanto Amy nos deixa, Janis se retira, Karen lutava contra si própria, a indústria cultural ao todo, enquanto tudo e do tudo para o nada.
Tal como narra Todd Haynes em seu filme, a fama cantada, vivida, fotografada, filmada e estrelada por e para Karen Carpenter em seu caso de amor mal sucedido com a perfeição. A música no intermédio das dores e fantasmas internos de seus cantores, denúncia da sociedade, do passado e do presente cultural agridoce da cinematografia de Haynes e da voz de Karen em forma de música aos olhos do cinema.
A princípio pode parecer estranho a forma pela qual Todd Haynes resolveu captar a essência dos problemas de aparência de Karen Carpenter; construir uma narrativa em forma de Era uma vez... ambientada em uma casa de bonecas onde barbies circulam em cores e formatos diferentes a fim de captar a essência da anorexia nervosa de sua protagonista, gera um estranhamento curioso, do tipo corriqueiro em biografias, a licença de olharmos por entre o buraco da fechadura para fatos públicos com pessoas públicas, em vidas públicas. Fica a sensação da ironia que Haynes não pôde deixar de contestar num mundo ligado à aparência, aos rótulos e ao desgastes dos invólucros superficiais da matéria corpórea:
“ Arte é objetivação da vontade numa coisa ou numa representação, e a provocação ou estimulação da vontade. Do ponto de vista do artista, é a objetivação encontrada de uma volição; do ponto de vista do espectador, é a criação de um cenário imaginário para a vontade”, Susan Sontag – Contra a Interpretação.
Natural que escolha bonecas com o ideário de perfeição física dos EUA, loiras, magras e de olhos azuis, de plástico, irreais, inalcançáveis, deformadas pelo desenho simétrico das lojas de brinquedos. E tal simetria ganha um ar macabro quando passa a ser violada através de deformações no corpo e rostos das bonecas ao longo do filme. Quanto mais Karen emagrece, mais suas bonecas vão se desgastando e a cantora some em meio à sua doença.
A violência simbólica é amplificada na mente de Karen e na lente de Haynes. Os espelhos, a voz melodiosa de Karen, os vidros de laxante, a comida desejada e repudiada ao mesmo tempo, a silhueta perfeita a ser alcançada, os gritos, a dor, as barbies, as instituições familiares falidas, o casamento, as roupas, o divórcio, as apresentações públicas para a construção do perfeito produto a ser vendido para os lares. Os irmãos interioranos talentosos musicalmente, e o ideário de pureza visual e musical que Karen canta para vender discos e imagem. Uma imagem falha, que liga e desliga a todo o tempo, de plano para plano, como um número musical inacabado, uma voz que continuou a ser ouvida apesar do corpo e da ausência física. Os Carpenters viram lenda pop, pela tragédia, pela morte, pela imperfeição, pelas notas musicais, por nós. Menos por eles mesmos. E por Karen.
Longe do paraíso mais uma vez, o diretor celebra e critica a forma como construímos nossos ídolos e como os colocamos na desconfortável posição de exemplo a ser seguido. A trilha do filme, permeada pelas canções da dupla desferem a razão de ser de seu filme. Uma biografia com pinceladas de realismo fantástico e imediatismo, onde forjamos nossos ídolos e eles a si próprios, num jogo visual arbitrário, em um cenário musical feito de grandes talentos absortos em seus problemas pessoais e na intervenção midiática necessitada de grandes estrelas por minuto. Cabe aos próprios ídolos forjarem a si mesmos, e a nós continuar seu legado através dos discos de canções nunca gravadas, de músicas interpretadas por outras bandas, dos especiais de televisão sobre suas vidas e das biografias cinematográficas. Do corpo humano que cede a pressão ter de ser representativo, diante do ser humano, com suas segundas-feiras e dias chuvosos.
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"A estrada perdida", por Lorena Arouche
Logo no início do filme A Estrada Perdida – Lost Highway – de David Lynch, percebe-se a imagem de um carro em movimento numa auto-estrada, aparentemente qualquer, à noite. Entretanto o que sinto ao ver essa imagem é a condução do olhar adentrando o universo da psique humana, ou especificamente, o universo extra-sensorial e metafísico das personagens principais da trama Fred x Pete e toda uma gama de “semelhanças” entre si que se desdobram a partir dessa abertura imagética bergsoniana. Tal concepção de Bergson se contrapõe à concepção de imagem como resumo, como síntese do real, de forma que a abertura proporciona “ir além do que se vê” que, conseqüentemente, incute gerar leituras e construções individuais diversas. Ao mesmo tempo em que David Lynch convida, ele também adverte, como se dissesse: “Abra sua mente para uma nova dimensão”. Essa imagem se repete várias vezes, aproximadamente na metade do filme, a fim de pontuar a transição para a segunda parte, quando a personagem de Pete é apresentada, e, mais adiante, nas proximidades da conclusão e ainda pela última vez ao final, todas as vezes com funções sempre bem específicas de imagem-semelhança (passado) ou imagem-ação (presente).
Lynch, propositalmente, dilui a noção espaço-tempo da mesma forma como dilui suas personagens por uma força da “semelhança” extra-sensível, entendida a partir da concepção de Walter Benjamin; na medida em que elas se afastam bilateralmente se integram e se confundem numa alusão a um possível alter-ego que vem à tona nos momentos de tensão e cujo ego reprime, sublimando a memória, a imagem-lembrança ao esquecimento.
A maneira como os planos são montados, os cortes, o silêncio vazio, a escuridão, somados à eminente perturbação, tensão das personagens, tudo gera uma estranheza que constitui um fio condutor à ambientação de uma realidade fantástica, que beira à atmosfera onírica, muito particular, paralela, características dos filmes de Lynch. Há nessas características, algo que pude correlacionar, outra vez, ao conceito de imagem-ação bergsoniano, ativo na construção subjetiva do que seria o momento presente na trama; além disso, uma interdependência extrema entre os fatos que compõem a trama, perceptíveis através do texto que se repete, de personagens chave (Laurent, Andy) e da exposição prévia de algumas imagens em sobreposição ou em montagem paralela. Em determinados momentos, não se sabe ao certo se a imagem que se vê é uma memória, imagem-lembrança, ou se é uma imagem-ação atuante no presente, como se o filme todo evocasse do começo ao fim o processo de duração conceituado por Bergson, em outras palavras, as imagens-lembrança estão eternamente se redimensionado em imagem-ação, modificando a matéria fílmica. No filme, a imagem todo tempo se reforça como memória, como, por exemplo, no solo do sax tenor executado na primeira parte do filme por Fred e que, na segunda parte, volta soando do rádio na oficina, perturbando Pete, os nos diálogos de Fred e Pete com o homem desconhecido, a cabana pegando fogo, o quarto 26, etc. A imagem ou é memória ou está na iminência de sê-la.
O portal da memória ou pra outra dimensão fica ainda mais evidente com o recurso da cortina cênica que brinca com a idéia do revelar e esconder, o acesso à memória mais fácil, sinestésica, ou à mais difícil.
No decorrer da trama, as personagens de Pete e Fred se fundem, confundem, parecem ser uma só pessoa, uma vez que suas memórias e ações se misturam, se correlacionam. Mais adiante, o homem desconhecido parece compor com os dois uma trindade de egos. São tão semelhantes que fica extremamente difícil dissociá-los, assim como acontece com Renée e Alice que são duas faces bipolares da mesma pessoa, seja no plano real, ou em algum lugar, na estrada perdida da mente de Fred.
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"A cicatriz interior", por Douglas Deó Ribeiro
Há uma diferença clara entre as caminhadas no deserto do adulto e da criança em A cicatriz interior (Garrel, 1972). Para ilustrar, no plano em que o próprio Garrel larga Nico suplicante e parte numa marcha para a esquerda, acompanhada por um travelling correspondente, ele acaba retornando duas vezes para a mesma mulher em prantos no chão, numa circularidade evidente, como um retorno ao passado curto daquele próprio plano. Na caminhada da criança, o menino, diante, também, de Nico – esta, montada num cavalo e cercada por um círculo de fogo –, parte numa marcha incessante, à semelhança do adulto, porém em direção oposta, para a direita, e sem nunca retornar ao ponto de onde partiu. Um ano antes, numa discussão sobre o roteiro de Macbeth (Polanski, 1971), o diretor franco-polonês decidiu filmar a marcha do exército inglês, vitorioso, da esquerda para a direita. A explicação: no ocidente, o movimento para a direita é percebido como mais fluente e o para a esquerda, como antinatural, dificultoso – a escrita ocidental se faz da esquerda para direita e até em animações infantis, observou Polanski, a subida de uma montanha íngreme é frequentemente posta da direita da esquerda, reverberando o esforço do alpinista.
Subentende-se, assim, que Garrel tenha optado pelas direções do movimento de seus personagens fundamentado nesse princípio? Talvez sim, talvez não. De fato, há sentido na observação de Polanski. E as escolhas do diretor francês em seu filme podem, de fato, ter partido desses signos do ocidente. Mas diversos outros signos estão dispersos pelo filme, sem uma conexão estrutural(ista) evidente: as vestes medievais; a música e a própria Nico, ícones da época; o deserto (paisagem utilizada igualmente como não-lugar, ou lugar mítico, em tantos outros, como Jodorowski, Antonioni, Pasolini); as oposições entre fogo e água (gelo); as alusões cristãs (as ovelhas e o nu cristiforme). Símbolos do passado (distante ou até próximo, quase imediato) que se unem, abertos às mais diversas interpretações e dificilmente cabíveis numa leitura única, linear, progressivamente discursiva.
Nessa soma ou sobreposição de símbolos, a diegese do filme parece sem futuro: tanto pela não-narratividade, estrutura que, naturalmente, não impele o espectador para o que haverá depois do filme com aqueles personagens; quanto pela elaboração daquelas próprias imagens - planos longos que, estáticos ou com movimentos monótonos, depois de algum tempo de fruição não parecem ter futuro porque nada acontece além do que já está acontecendo e o que sobrevive são os signos do plano e os movimentos anteriores que o geraram, ou seja, seu passado. Tal perspectiva acaba por ser reflexo, imagem e condensação do mundo (daquele tempo), que, principalmente a Europa, sofria com algumas dolorosas mortes recentes: Barthes “matara” o autor em 68 e a utopia agonizava mais ou menos naquela época.
Por isso, talvez, os movimentos opostos do homem feito e do homem por fazer (criança): o menino anda numa direção fácil e fluida, tem futuro, ou, pelo menos, imagina ter, tanto que não retorna ao círculo de fogo do princípio, não sofre da circularidade paralisante (o fogo envolve e aprisiona a mulher), do eterno retorno nietzscheano do qual padece o adulto; este último segue, em seu plano, andando pesadamente para a esquerda, numa dificuldade simbólica que sempre retorna ao passado que tenta deixar para trás. Talvez Garrel esteja chamando os utópicos da geração precedente de infantis, por acreditarem num futuro melhor, talvez queira mostrar que a maturidade leva à consciência da paralisação inexorável da existência, mas essas interpretações soam um tanto limitadoras e estruturalistas para um filme que, já se disse, se mostra tão aberto quanto (e para) o mundo.
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Utopia
"Uma viagem com Martin Scorsese pelo cinema americano", por Thaizy Isabelly
Após uma pequena cena de “Assim estava escrito”, vemos um Scorsese sentado com um livro no colo. O livro é “Uma historia do cinema em imagens” de Deems Taylor. O primeiro livro que ele teve acesso sobre cinema, logo nos anos 40 e 50. Na época, ele lembra, não existiam muitos escritos sobre cinema, então pegava-o repetidamente na biblioteca pública, o único lugar onde ele pôde achar o livro, já que não tinha dinheiro para comprar. E ele confessa que duas ou três vezes, cedeu à tentação de rasgar fotos para ele. Esse livro é tão importante para Scorsese, assim como o chá para Proust. Ao prová-lo, Scorsese relembra e conta memórias de sua infância, relacionadas ao cinema.
“Uma viagem com Martin Scorsese pelo cinema americano” poderia ser só mais um documentário sobre cinema, mas ele não o é. Ou uma tentativa de reproduzir a historia cinematográfica americana com todos os seus pormenores. O filme é na verdade, uma maneira de recontar uma parte do passado desse menino. A parte que o fez escolher sua profissão e provavelmente a parte que gastou mais tempo da sua vida. Como ele diz, esse filme é como um “museu imaginário”, e nesse museu ele só fala do que o comoveu e o influenciou de alguma maneira. O filme é seu relato como espectador, como ele mesmo o diz: “Vou falar-vos de alguns dos filmes que coloriram os meus sonhos, que alteraram minhas percepção e nalguns casos até minha vida.”. Uma observação interessante seria que o documentário seria quase como uma porta para algo maior – a historia do cinema mundial “na íntrega”. Nós vemos o que ele nos conta, mas existe todo um cinema por trás disso. Mas vale ressaltar que Scorsese não fica só no “cinemão” de Hollywood, já que de acordo com ele, os filmes que ele via não eram apenas os culturalmente corretos, ele cita alguns americanos desconhecidos como “Beijo amargo” ou “Pânico na cidade”, que como ele diz, são filmes que talvez alguns nunca ouviram falar.
O documentário utiliza filmes de um período histórico relativamente pequeno, principalmente se considerar o fato que o cinema surgiu no final do século dezenove. Ele fala apenas dos filmes dos anos quarenta e cinquenta, chegando até os anos sessenta, quando ele começou a fazer filmes. Ele não cita filmes nesse período, já que seria injusto com os outros cineastas. Mesmo faltando, alguns diretores que ele admira. E claro, ele sempre acaba citando filmes anteriores a esse e até europeus, como “Cabiria”, um filme italiano que influenciou Griffith. Mas ele sempre ressalta que claro, não viu esse filme no cinema quando ele era criança.
O filme é divido em três partes, que dá no total 225 minutos. Ele conta tudo nisso, mas não de forma inteiramente cronológica. Já que às vezes, ele volta e lembra de uma coisa aqui outra acolá. Mesmo as três partes, não são completamente cronológicas. Ele usa a figura do diretor, o que não impede de um diretor que está em um episodio estar em outro. Na primeira ele fala sobre o diretor como contador de historias. E fala um pouco sobre os filmes de gêneros. Ele fala dos filmes de gangue, e é notável como os olhos deles brilham. Ele também fala de maneira quase que melancólica sobre o dilema do diretor, especialmente o de Hollywood. “Fazer um filme para eles e outro para nós?”. Scorsese também faz uma analise um pouco mais histórica, especialmente nos musicais. “Até o musical mais convencional se referia ao mal-estar do pós-guerra’’ Para ele, o cinema é algo mais refinado, e não só mais um entretenimento de massa. Para ele, filmes de westerns e gangsters são também meio de arte ou de política. No capitulo posterior, Scorsese analisa um pouco sobre o diretor como ilusionista. E analisa, um pouco sobre a linguagem cinematográfica e alguns truques que alguns diretores usavam. O capitulo vai até o advento do som, das cores e dos efeitos especiais no cinema. No terceiro e ultimo capitulo, Scorsese fala sobre o cineasta como contrabandista e iconoclasta. E fala um pouco sobre temáticas sociais.
Scorsese é por vezes considerado hollywoodiano demais. Ou talvez não ganhe muito destaque como diretor. Mas é possível ver nele uma coerência. Para ele, o cinema deve ser feito por pessoas que o conheçam. Para ele, dessa forma só assim, é possível verdadeiramente aprender, vendo os filmes, tendo contato com eles. E ele mostra isso na maneira que ele fala. Mesmo que para alguns radicais alguns tipos de cinema sejam considerados inferiores, provavelmente eles crie um tipo de dissenso, já que seu documentário é mais sobre o tipo de efeito que os filmes causaram nele do que verdadeiramente uma analise sobre política ou historia. Vale lembrar que Scorsese aparece em vários documentários sobre cinema, inclusive um sobre Rossellini, que é uma verdadeira influencia para ele. Ele conhece quase todos os tipos de cinema, se não todos. Diz a lenda que ele viu mais de doze mil filmes. Ele não é um tipo de conhecedor apenas do cinema americano. A razão desse documentário é mais uma viagem pessoal pelo cinema, para relembrar os filmes que viu na infância e até adolescência. Para compartilhar suas lembranças. Para que nós, de alguma forma, também achemos que vimos “Assim estava escrito” na adolescência, dentro de uma telona no cinema. Até porque não tem como saber o ele viu realmente na infância, ou o que ele viu depois e apenas na sua memória ele viu. Como a citação de Frank Capra, “O cinema é uma doença, quando nos infecta o sangue passa a ser o hormônio dominante representa o lago da nossa psique, como para a heroína, o antídoto para o cinema é mais cinema”. O filme é sobre um menino infectado sobre cinema, falando sobre cinema, já que esse é o único antídoto.
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“Meus Pequenos Amores”, por Evan Diniz
A julgar pelo título do filme de Jean Eustache, percebe-se a sensibilidade em contato direto com o tema da obra. “Mes Petites amoureses” traz a história de Daniel, 13 anos, que vive aos cuidados de sua avó numa pacata vila na França. O dia-a-dia de Daniel entre escola e brincadeiras com seus amigos trazem o olhar qual se demonstra mais puro. Como uma linha constante, a vida de Daniel na sua vila é despreocupada, até mesmo previsível de certa forma. Seus amigos, em especial uma menina que dentre eles o desperta um interesse incomum fazem parte de seus sonhos, compartilhando com ele a fase inocente de sua vida. Algum tempo depois sua mãe retorna e decide levar Daniel consigo para viver com ela no apartamento que mora com seu recente namorado na cidade grande. A partir desse ponto a vida de Daniel muda drasticamente, lá não há amigos, não há dinheiro para escola e sua mãe arranja um trabalho de ajudante numa oficina. Sem nenhuma referência de como crescer e olhar para o futuro, para as pessoas ao seu redor, para a cidade, começa então um processo de amadurecimento e o contato mais intenso com uma nova forma de olhar para o mundo perdendo cada vez mais a lente da inocência configurada em sua infância.
Desejos e curiosidades cercam o protagonista em sua pré-adolescência. De início temos um Daniel observador, atento e de certa forma relutante às imposições que lhes são ordenadas. Mas de outro lado temos o Daniel que se deixa levar por essas novas sensações e inquietações, como quando Daniel vai ao cinema e observa um adolescente flertando com uma menina, arrancando-lhe um beijo. Ele imita o modo como o outro consegue o beijo, conseguindo também logo após. Também na oficina à noite, quando observa os casais se encontrando na calada da noite. Após algum tempo Daniel conhece alguns rapazes que se encontram em um bar perto de onde mora. São rapazes mais velhos desinteressados, que compartilham um mesmo tipo de estagnação na vida, onde Daniel encontra um tipo de identificação. Essa estagnação reflete a falta de expectativa dos jovens com a própria vida. Se relacionar com alguma garota é a grande conquista para Daniel e seus amigos, para Daniel mais que uma conquista ainda, uma descoberta.
O recorte da vida de Daniel feita por Eustache para o filme se baseia nas descobertas do personagem. Daniel descobre uma nova vida, muito diferente da que tinha na sua pacata vila. Uma nova cidade, um novo estilo de vida, um novo sentimento de estar vivo e o contato com a sexualidade. “Meus Pequenos Amores” recria o olhar de Daniel para o mundo em um primeiro momento, e o transforma em outro. A partir do uso tão sensível da memória é possível se distanciar da forma de olhar o passado com as retinas do futuro.
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