quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Que se refere à cidade, por Letícia Barbosa


Em tempos de especulação imobiliária, ocupações em escolas, incêndios em prédios abandonados, Ocupe Estelita e Geju, creio que ter em dois dos principais equipamentos culturais da cidade exposições de arte que pensam o espaço urbano não é por acaso.
Além do tema tão político e nunca antes tão atual, as duas exposições apresentam, além de fotografias, videoarte, instalações e obras interativas, plataformas estetizadas para as obras. Esses suportes brincam com o tradicional espaço dos museus e galerias, ajudam a passar a mensagem da exposição e dinamizam o momento da visitação — mexendo com a visão, tato e audição do visitante.
A primeira parte do circuito foi na Caixa Cultural do Recife, localizada no cerne do centro histórico e cultural da cidade. O espaço está apresentando desde março a 2ª Mostra Bienal Caixa de Novos Artistas, que busca dar visibilidade a artistas emergentes e vai circular por oito capitais do país. Ao todo foram 616 inscritos e 30 escolhidos. As 37 obras selecionadas desses artistas podem ser conferidas até o dia 27 deste mês.
A mostra é dividida em temas que falam sobre campo, cidade, corpo e questões político sociais. Chamo atenção para as sessões de Espaço Natural e Espaço Construído e como a montagem da exposição contribuiu para dar força às obras.
Ao entrar na Caixa nos deparamos com um tipo de labirinto, todas as peças são dispostas em grandes trapézios brancos que circundam o salão principal do centro cultural e parecem simular a confusão de prédios das grandes cidades. O texto de curadoria e as fotos dos artistas são projetados em algumas dessas estruturas com efeitos que lembram as propostas do futurismo e da poesia concreta.
Nas obras é notável a ressignificação crítica que cada artista fez do seu lugar de origem. Há um exercício de imersão, reexame e catarse de questões como pobreza, raça, etnia, Direitos Humanos, meio ambiente, tempo, identidade, entre outros temas.
Neste primeiro momento da exposição, as obras do Espaço Natural e do Espaço Construído são colocadas lado a lado, frente a frente, uma contra a outra. Uma clara provocação que emula as disputas entre o lado de dentro e o de fora, o público e o privado, o natural e o artificial, o eu e o outro, o que é meu e o que é seu. O efeito da contraposição dessas peças é tocante, incomoda e faz refletir.
A curadoria da mostra foi aberta e sensível ao escolher obras que texturizam essas dicotomias a partir da transformação de materiais banais do dia a dia em arte. Assim, em meio a gravuras, colagens, desenhos, vídeos e fotos nos deparamos também com instalações feitas com estruturas metálicas, argila, concreto armado, areia, pedras, vergalhão e carvão.
A segunda exposição visitada se chama ExistenCidades e está alocada no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (MAMAM) até 29 de julho. A mostra também trata da problemática da urbanização e se apropria de materiais sucateados para dar suporte a narrativa proposta.
Beto Figueiroa é o artista que assina as 13 fotografias expostas em andaimes de construção. Grandes, coloridas e impressas em formato de lambe-lambe, as imagens mostram paisagens naturais ermas, objetos abandonados, trilhas, ruas, animais e pessoas centrados em sua rotina ou solitude. Novamente o cinza da cidade disputa espaço com o verde natural.
A reflexão sobre alteridade, políticas públicas e cidadania são latentes e agravadas pela sensação que os andaimes dão de se estar em um lugar em construção. Atravessar a mostra ExistenCidades é se embrenhar pelas brechas de lugares esquecido ou até desconhecidos, sempre com o cuidado de olhar bem por onde pisa, pois está tudo em obras, inacabado. O MAMAM se transformou em uma pequena maquete do nosso país em “desenvolvimento”.
A imersão do visitante se completa com o som de uma videoarte que ecoa por todo o salão da exposição. Produzida pelo músico Jr. Black, o vídeo é um timelapse mostrando prédios durante a noite com uma voz masculina de fundo narrando cinco textos, escritos em primeira pessoa, que contam histórias inventadas para os personagens das fotografias.
Ao final dessa aventura penso que ter artistas que fazem política com materiais artísticos clássicos e não clássicos e, em movimento reverso, fazem da arte uma forma didática e poética de apreender questões políticas, remete a outros tempos, talvez tão sombrios quanto o atual, em que a arte era o último suspiro, o manifesto derradeiro.
As mostras, além de expressar uma estética, correspondem a certa cobrança moral atual de imprimir mensagens e reflexões. Aproveitando essa onda, deve-se atentar para a sobrevivência dessas janelas de ar fresco perante o caos, ocupá-las para que resistam e acima de tudo democratizar esses espaços para que a experiência e o debate não morram em círculos restritos. Pois, diante dos retrocessos que vislumbramos, viradas políticas dignas de telenovela e das eleições que estão por vir, visitar exposições desse tipo pode ser revigorante, inspirador e em certo ponto necessário.

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