quinta-feira, 4 de outubro de 2018

E se o rap fosse travesti?, por Lucas Xavier


BlasFêmea, artivismo e reinscrições identitárias na musicalidade periférica de Rosa Luz 


O rap, em sua epistemologia, consiste numa cultura de resistência contra a supremacia e opressão dos brancos. A travesti, em sua intersubjetividade, consiste numa identidade feminina que subverte o discurso do “gênero como reflexo do sexo”. O rap, a ferramenta do artivismo. A travesti, a voz da blasFêmea. Ambos, em suas peculiaridades e divergências, constituem o alvo na lógica da abjeção. Popularizado em 1970, o rythm and poetry (rap), consistia numa mescla entre poética e poesia, ritmado em narrativas longas – oriundas da tradição afro americana – circunscritas num processo reivindicatório de políticas humanitárias, que garantiriam a subsistência da população periférica estadunidense, em sua maioria migrantes afrolatinos e ameríndios, cuja as demandas imbuídas em sua pluralidade – étnica, racial, sexual e de gênero – ocasionaram movimentos artístico-politícos, tendo o rap como espada no artivismo. Em concomitância com esses movimentos, surge nesse contexto político e multicultural, os estudos queer, atentos às nuances identitárias, mas, sobretudo, às normas que os criam enquanto sujeitos da abjeção, isto é, corpos-identidades que subvertem a norma prevalecente, que não deveriam existir dentro de determinada matriz cultural, como pontua a filósofa norte-americana Judith Butler. Nessa conjuntura abjeta, intricada de política identitária e subversiva se sedimenta nos trópicos o artivismo, que unifica arte e ativismo — em especial dos corpos-identidades abjetas — na resistência e contra-hegemonia; no perspéctico latino americano, tal artivismo se personifica na travesti, a qual critica a marginalidade, abjeção e colonização grafadas em seu corpo-identidade através da arte periférica; assim sendo, reinscreve o status quo numa arte da periferia para o centro, visibilizando e emponderando corpos-identidades prepostos na lógica de abjeção. No EP Rosa Maria codinome Rosa Luz, a artista multimídia Rosa Luz faz reinscrições identitárias na musicalidade periférica. Ao se afirmar travesti e rainha afrolatina, ergue o rap como espada na luta contra o racismo e transfobia institucionais. Na primeira faixa, cujo título homônimo inicia seu manifesto, Rosa insere o rap num âmbito tradicional, ao mesclar ritmia e sons que se assemelham às percussões do maracatu pernambucano. Uma espécie de hibridismo, recheada pelas críticas a “normativa que um dia separou”. A proposta de Luz parece decolonial, ao expressar o colonialismo que construiu a desumanização dirigida aos subalternizados. Decolonizar seria entender a “mulher de peito e pau” em sua particularidades sexual e de gênero, a partir de proposições que colocam o gênero como constructo cultural e performativo, negligenciando uma heteronormatividade que insite em atribuir o masculino ao pênis e o feminino à vagina. Ao enfrentar e transformar as estruturas e instituições que têm como horizonte de suas práticas e relações sociais a racialização do mundo e a manutenção da colonialidade, visa criar um espaço “sem sargento, sem sargeta” no qual celas são queimadas e oportunidades criadas, com “liberdade para corpos marginalizados transcederem nessa porra de cidade”.
A língua de Luz é uma faca de dois gumes, tem o poder de incluir e denunciar; no De clandestina a puta, insere àrquetipos de matriz africana, a quem clama por proteção e força na luta, para si e para as “pretas”. Na imagem d’Oxum, orixá das águas doces, maternidade e beleza, constrói seu legado. Oxum venceu a guerra com um espelho, Rosa vencerá com o rap. Num limiar entre rap e prece, a composição situa o ouvinte na vivência trans e travesti, cujas feminilidades e corpos são institucionalmente direcionados à prostituição, pelo machismo e a misoginia – estruturas socias de ordem patriarcal na qual se objetifica e hiperssexualiza o feminino. Nessa circunstância, a rapper coloca o putafeminismo como uma proposta transversal do feminismo, suvertendo a lógica de opressão, na qual se incluem prostitutas como sujeitos potentes na luta pela equidade de gênero. O alvitre de Rosa, ao contrário do que se pensa, não deslegitima a lógica de opressão intriseca à prostituição, mas ressignifica o papel da prostituta, inserida enquanto persona do feminismo. Se o track que titula o álbum se apresenta como híbrido por retratar o rap sob o viés popular, a Afrotrapfunk se condiciona enquanto polifonia e polissemia musical, ao englobar tecno, punk e rap, ressaltando uma interculturalidade poética e ritmada, a tratar do feminino e, sobretudo, de mulheridades “negras, travestis, transsexuais, gordas, magras, diversidade”. A musicalidade que empondera femininos. O grito das blasFêmeas. A mesma polifonia se reinscreve em Periferia mas sob uma ótica de localidade, em parceria com Preto, Mic Dias, Natigresa, Prethaís, Pérolatina e Debrete, a sonora narra poetizações acerca do âmbito periférico, implicando em múltiplas visões de um mesmo local. Das entraves que normatizam feminino e masculino, Rosa Luz atenta ao falocentrismo ao afirmar “pinto de macho não é o centro do mundo”. Teorizada por Freud e perpetuada por Lacan, a lógica falocêntrica consiste num processo disciplinador e/ou heteronormativo que visa docilizar corpos pela ausência do falo, colocando tais corporeidades abaixo do “sexo biológico masculino”. Luz, em acordância com os propostos queer, em especial os de Butler, critica a colonização dos corpos sem falo, isto é, cuja relação sexo-gênero-desejo perpassam essa lógica falocentrista. Partindo disso, a rainha afrolatina junto ao seu Clã das mina preta–quebrada, rememora os processos colonizadores que violentaram e submeteram mulheres à escravidão sexual. A música, ao relembrar dessas violências critica sua perpetuação, convidando as mulheres, em suas multiplicidades, a denunciar o abuso. Luta pela equidade, segurança e resistência; pilares que prenunciam Bandida, finalizando o EP, mas não o manifesto da “preta, travesti, gatinha” cujas rimas e denúncias grafadas em seu corpo-identidade se trasmutam no cuspe que escorre sobre o rosto racista. Rosa Luz reescreve a história, o papel da mulher no rap e nos direciona para uma futura revolução, não somente musical, mas principalmente, travesti.

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Que se refere à cidade, por Letícia Barbosa


Em tempos de especulação imobiliária, ocupações em escolas, incêndios em prédios abandonados, Ocupe Estelita e Geju, creio que ter em dois dos principais equipamentos culturais da cidade exposições de arte que pensam o espaço urbano não é por acaso.
Além do tema tão político e nunca antes tão atual, as duas exposições apresentam, além de fotografias, videoarte, instalações e obras interativas, plataformas estetizadas para as obras. Esses suportes brincam com o tradicional espaço dos museus e galerias, ajudam a passar a mensagem da exposição e dinamizam o momento da visitação — mexendo com a visão, tato e audição do visitante.
A primeira parte do circuito foi na Caixa Cultural do Recife, localizada no cerne do centro histórico e cultural da cidade. O espaço está apresentando desde março a 2ª Mostra Bienal Caixa de Novos Artistas, que busca dar visibilidade a artistas emergentes e vai circular por oito capitais do país. Ao todo foram 616 inscritos e 30 escolhidos. As 37 obras selecionadas desses artistas podem ser conferidas até o dia 27 deste mês.
A mostra é dividida em temas que falam sobre campo, cidade, corpo e questões político sociais. Chamo atenção para as sessões de Espaço Natural e Espaço Construído e como a montagem da exposição contribuiu para dar força às obras.
Ao entrar na Caixa nos deparamos com um tipo de labirinto, todas as peças são dispostas em grandes trapézios brancos que circundam o salão principal do centro cultural e parecem simular a confusão de prédios das grandes cidades. O texto de curadoria e as fotos dos artistas são projetados em algumas dessas estruturas com efeitos que lembram as propostas do futurismo e da poesia concreta.
Nas obras é notável a ressignificação crítica que cada artista fez do seu lugar de origem. Há um exercício de imersão, reexame e catarse de questões como pobreza, raça, etnia, Direitos Humanos, meio ambiente, tempo, identidade, entre outros temas.
Neste primeiro momento da exposição, as obras do Espaço Natural e do Espaço Construído são colocadas lado a lado, frente a frente, uma contra a outra. Uma clara provocação que emula as disputas entre o lado de dentro e o de fora, o público e o privado, o natural e o artificial, o eu e o outro, o que é meu e o que é seu. O efeito da contraposição dessas peças é tocante, incomoda e faz refletir.
A curadoria da mostra foi aberta e sensível ao escolher obras que texturizam essas dicotomias a partir da transformação de materiais banais do dia a dia em arte. Assim, em meio a gravuras, colagens, desenhos, vídeos e fotos nos deparamos também com instalações feitas com estruturas metálicas, argila, concreto armado, areia, pedras, vergalhão e carvão.
A segunda exposição visitada se chama ExistenCidades e está alocada no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (MAMAM) até 29 de julho. A mostra também trata da problemática da urbanização e se apropria de materiais sucateados para dar suporte a narrativa proposta.
Beto Figueiroa é o artista que assina as 13 fotografias expostas em andaimes de construção. Grandes, coloridas e impressas em formato de lambe-lambe, as imagens mostram paisagens naturais ermas, objetos abandonados, trilhas, ruas, animais e pessoas centrados em sua rotina ou solitude. Novamente o cinza da cidade disputa espaço com o verde natural.
A reflexão sobre alteridade, políticas públicas e cidadania são latentes e agravadas pela sensação que os andaimes dão de se estar em um lugar em construção. Atravessar a mostra ExistenCidades é se embrenhar pelas brechas de lugares esquecido ou até desconhecidos, sempre com o cuidado de olhar bem por onde pisa, pois está tudo em obras, inacabado. O MAMAM se transformou em uma pequena maquete do nosso país em “desenvolvimento”.
A imersão do visitante se completa com o som de uma videoarte que ecoa por todo o salão da exposição. Produzida pelo músico Jr. Black, o vídeo é um timelapse mostrando prédios durante a noite com uma voz masculina de fundo narrando cinco textos, escritos em primeira pessoa, que contam histórias inventadas para os personagens das fotografias.
Ao final dessa aventura penso que ter artistas que fazem política com materiais artísticos clássicos e não clássicos e, em movimento reverso, fazem da arte uma forma didática e poética de apreender questões políticas, remete a outros tempos, talvez tão sombrios quanto o atual, em que a arte era o último suspiro, o manifesto derradeiro.
As mostras, além de expressar uma estética, correspondem a certa cobrança moral atual de imprimir mensagens e reflexões. Aproveitando essa onda, deve-se atentar para a sobrevivência dessas janelas de ar fresco perante o caos, ocupá-las para que resistam e acima de tudo democratizar esses espaços para que a experiência e o debate não morram em círculos restritos. Pois, diante dos retrocessos que vislumbramos, viradas políticas dignas de telenovela e das eleições que estão por vir, visitar exposições desse tipo pode ser revigorante, inspirador e em certo ponto necessário.

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

"Blonde", por Lúcio Souza





Praticamente toda a arte nasce das experiências do artista, mas Blonde (2016), do californiano Frank Ocean, traz a bagagem de vida do cantor quase que de forma palpável. Embora nascido na costa oeste, Ocean, aos cinco anos de idade, se mudou com a família para a cidade de Nova Orleans, no sul dos Estados Unidos, um local marcado pelas culturas europeias, latino-americanas e, principalmente, afro-americanas, além de ser conhecida como um dos berços e principais polos do Jazz e do Rythm and Blues (R&B). É nesse ambiente de uma negritude tão presente na cultura que Frank é criado.

De origem humilde, ele passou parte de sua juventude trabalhando, fazendo “bicos” para os vizinhos, tudo para custear alguns instantes dentro de um estúdio. Entretanto, com a passagem do furacão Katrina em 2005, os estúdios de sua cidade foram destruídos, levando-o a ter de se mudar temporariamente para Los Angeles a fim de concluir seu trabalho, e é nesse meio-tempo que Ocean faz contatos, dentre eles Tyler, the creator e seu grupo de hip-hop alternativo OFWGKTA.

Blonde (Boys Don’t Cry) é o seu segundo álbum de estúdio com 17 faixas que versam sobre negritude, desigualdades sociais e também sobre desilusões amorosas.

Ocean abre o álbum com Nikes, cantando com a voz distorcida e uma base de R&B sobre ganância. A faixa começa com uma crítica social falando da ganância em relação ao dinheiro, para num momento posterior falar sobre drogas e, por fim, sobre o valor que o próprio Frank teria para a pessoa para a qual ele está se declarando.

O último refrão de Nikes termina com os seguintes dizeres:
I'll mean something to you
You got a roommate he'll hear what we do
It's only awkward if you're fucking him too”

Esse trecho se conecta com a faixa seguinte, Ivy, para falar da traição sofrida pelo cantor, que assumiu em 2012, por meio de uma carta aberta no seu tumblr, que seu primeiro amor e decepção amorosa foi com um homem. No documento, o cantor ainda agradeceu o responsável por partir o seu coração, pois isso deu material para produzir tais músicas.

Em “Ivy”, ele começa falando que parecia estar sonhando quando conheceu e se apaixonou por um determinado alguém. Essa sensação de estar sonhando pode ser interpretada como a ilusão de Ocean em não perceber que estava sendo traído. Apesar da traição, a música deixa a entender que ainda há algum sentimento de afeto pelo traidor. Esse resquício de amor é demonstrado em Pink+white, uma canção inteira sobre saudade, sobre a experiências com esse alguém de quem está a se afastar.

Essa primeira sequência de músicas é dotada de uma certa narrativa sobre amor, traição e desilusão, mas não somente isso. Frank Ocean fala de uma relação homoafetiva, ele abre um espaço importantíssimo para a comunidade LGBTQ no meio hip-hop, um ambiente que é tão fortemente atravessado pelo machismo.

Be Yourself, a canção de número 4, abre um novo bloco na narrativa do disco. Ela versa, muito provavelmente, sobre o breve período do cantor na faculdade. A faixa é somente uma ligação de telefone da mãe do eu lírico falando sobre ser você mesmo e sobre vício em drogas, exceto pelas que tenham sido passadas por recomendação médica. Be Yourself é sobre aceitação de si mesmo e sobre como estamos sempre performando de diferentes maneiras em meios sociais distintos a fim de nos sentirmos incluídos.

Logo em seguida, também falando sobre drogas, vem Solo, uma das músicas mais importantes do álbum. Ela também fala de solidão e talvez da tentativa do eu lírico de preencher o vazio deixado após sofrer a traição com drogas. Há uma dualidade na palavra “solo”, que muitas vezes na música e pronunciada quase que como “so low”, que podemos traduzir como sóbrio, daí pode se pensar que Ocean está a todo momento tentando se manter “alto” (drogado) para compensar a solidão.

Após toda a intensidade de Solo, vem Skyline To, uma canção subestimada que muitos dizem ser parada e chata. Mas a faixa é justamente sobre a passagem do tempo. As primeiras linhas deixam claro que eu lírico ainda lida com as dores da traição passada. Essa faixa está posicionada justamente entre as duas mais importantes de todo o álbum e serve de conexão entre elas.

Por que logo depois vem Self Control, o momento mais importante do álbum junto com Solo. A canção é um grande lamento pelo término de um ou mais relacionamentos, não se sabe precisar a quem Ocean está se referindo, mas uma coisa é certa, Frank aqui está perdendo seu autocontrole e implora para ainda ter um espaço no coração da pessoa amada. Este também é um dos momentos em que podemos testemunhar a potência vocal do cantor, que muitas vezes é mascarada pelo constante uso de sintetizadores e efeitos de voz.

Good Guy, 8° faixa, abre a questão da homossexualidade de Frank num meio tão marcado por estereótipos de masculinidade como o hip-hop. A canção começa falando de um encontro cego num bar gay, no qual o eu lírico se decepciona, já que eu seu par não se parece nada com o que ele aparentava ser através de mensagens. Ele esperava, ao mesmo tempo, encontrar um novo amor, mas seu parceiro está somente em busca de uma noite de sexo. E aí a canção muda para um diálogo entre o eu lírico e um amigo falando sobre se relacionarem com mulheres. Enquanto esse amigo hétero se mostra frustrado por ter o coração quebrado pelas mulheres, o eu lírico fala, após um longo período de pausa em desconforto, “Sim, eu não tenho mais vadias”.

Nights é a faixa que marca exatamente o meio do álbum. Com 5:07 minutos de duração, a faixa, que começa falando sobre a tristeza e fracassos do dia a dia, muda completamente de ritmo aos 3:30, o exato momento em que o álbum chega aos seus 30 minutos. Entrando, aqui, num clima mais melancólico.

Solo (reprise), é faixa de número dez e a primeira após a virada dos 30 minutos em Nights. A canção também fala de sobriedade, tal qual sua contrapartida no início do álbum, mas desta vez se trata de um rap agressivo, um torrente de palavras despejando toda a raiva acumulada ao longo de todo esse período de melancolia.

E então vem Pretty Sweet, também com um rap agressivo, desta vez falando sobre autodestruição e com algumas referências religiosas (“This is the blood, the body, the life right now”). A canção é talvez a revolta do cantor em ter passado tanto tempo do armário. A música é uma cacofonia paranoica e agressiva, é um grande conflito de ideias, é um apelo por aceitação (To the fathers of the Earth be kind). Em discussões no Reddit alguns apontam que toda essa paranoia é causada pelo uso de drogas, que, ao invés de trazerem um estado de torpor, intensificam a tempestade de sentimentos. A música se encerra em um momento de calma, com um coro de crianças

Em 12° vem Facebook Story, uma canção que talvez conte como Frank descobriu ter sido traído. Esse é mais um diálogo na voz de outra pessoa, dessa vez falando de uma garota que disse estar sendo traída por não ter sido aceita no Facebook pelo seu amado, ao passo que este alega que está com ela pessoalmente todos os dias.Close To You é uma das faixas mais curtas e talvez a que menos teve significância para mim. A letra aparente falar dos vestígios que ainda mantém o eu lírico preso ao seu amor passado

A última parte do álbum é a mais confusa de toda a obra. White Ferrari, Siegfried e Godspeed giram em torno da aceitação do término do relacionamento.White Ferrari é sobre a percepção de como o relacionamento foi morrendo, e de como Ocean pensava que manter a relação em seus princípios primários (sexo), poderia sustentá-la. Ao mesmo tempo em que a relação está presa num mesmo nível, sem progressão, e o parceiro dele enfrenta uma insegurança que o impede se entregar.

Siegfried é o encontro com esse amor que se foi e que agora está vivendo uma nova vida. Frank se questiona logo de início se deveria enveredar numa vida mais pacata, constituir família. Para depois vir numa das últimas estrofes afirmando seu estilo de vida e se negando a mudar:

Spin this flammable paper on the film's that my life
High flights, inhale the vapor, exhale once and think twice
Eat some shrooms, maybe have a good cry, about you
See some colors, light hangglide off the moon

Godspeed é um complemento dessa aceitação. Ocean, aqui, deixa seu amor ir, mas também fala que sempre vai amar este alguém.

I let go of my claim on you, it's a free world
You look down on where you came from sometimes
But you'll have this place to call home, always

Futura Free, com pouco mais de 9 minutos encerra o álbum. A faixa compila tudo que foi dito ao longo do álbum. Fala de seu sucesso enquanto artista, se refere à mãe e também ao amor que se foi. Mas, devido a sua extensão, a canção mais difícil de toda a obra, é difícil perceber todas as camadas colocadas por Ocean.

Com 17 faixas o álbum é um tanto difícil de ser consumido, é preciso tempo para digeri-lo, principalmente por causa do uso excessivo de sintetização e efeitos na voz, o que pode, em alguns momentos, ser irritante, e até mesmo monótono. Blonde é um álbum difícil, mas isso é uma de suas melhores qualidades. Frank Ocean traz inúmeras referências artísticas, históricas e culturais em suas músicas, falando com maestria de questões ligadas à família, sexualidade, abuso de drogas e o fim de um amor. É uma obra para ser ouvida com carinho e paciência, da mesma maneira que se constrói uma relação amorosa.

terça-feira, 25 de setembro de 2018

"Batuk Freak", por Manuela Andrade



Batuk Freak é o nome do primeiro álbum lançado pela rapper curitibana Karoline dos Santos Oliveira, popularmente conhecida como Karol Conká. Karol começou sua carreira por volta de 2004, mas só obteve alguma notoriedade, a nível nacional, por volta de 2011 quando lançou alguns videoclipes de faixas que viriam a compor seu primeiro CD anos mais tarde. Sua presença tornou-se mais forte na cena hip-hop quando se juntou a nomes como Projota e Luiz Melodia em participações conhecidas como feat, em 2012.
Mulher, negra, vinda da periferia numa adolescência com poder aquisitivo limitado, o rap esteve presente desde muito cedo na vida de Karol. Quando ganhou seu primeiro festival aos 16 anos decidiu investir na carreira, vendo no estilo musical uma maneira de não perder sua identidade, ganhar dinheiro e lutar pelo que sempre acreditou: igualdade, seja racial ou de gênero. O álbum surge num momento complicado no rap nacional, quando o que vendia e fazia sucesso eram os MCs majoritariamente brancos, de classe média, fazendo um som que vendia em festas caras, levando letras vazias, cheias de machismo e outros preconceitos, em sua maioria reproduzindo um estilo de rap vendido pela indústria fonográfica americana, mas que, além disso, fugia completamente do rap old school brasileiro, que sempre buscava politizar, conscientizar e abrir os olhos da população para as injustiças sociais presentes nas periferias. Desse modo, a inserção do seu trabalho foi de uma cautela e estudo muito precisos, tanto que o resultado foi o sucesso nacional da artista.
Deixando de lado o contexto em que o disco foi lançado e já abordando sua produção, é inegável o preparo de toda a equipe envolvida nos trabalhos — da área técnica a de marketing — pois foram cerca de quatro anos do início da criação até seu lançamento, trazendo  no produto final um misto de rap, ritmos africanos, pop e emboladas, com apelo para públicos de diferentes nichos. O álbum foi lançado para colocar a artista no hype, em evidência na mídia, e cada elemento presente no Batuk Freak salienta isso.
Com produção de Nave, já conhecido por produzir rappers como Marcelo D2 e Emicida, os beats possuem uma ampla variação na construção dos samples, criando um mix de culturas num único som, essa característica acaba por ser evidenciado no título do álbum Batuk. A intenção do disco não é politizar, como fizera sabotage nos anos 2000 ou Emicida (sucesso contemporâneo ao Batuk Freak) — pelo menos, não a grosso modo —, o produto final acaba por se encaixar no rap feito para dançar, para festa, mesmo que tenha um pouco de sua militância — trazida de maneira branda, um tanto quanto festiva. Isso acontece para que o Batuk não deixe de atingir o público que mais consumia rap em meados de 2013, um público de certo modo elitizado, que frequentava festivais. Os beats são para dançar e mesmo que em “Gandaia” ela afirme “desbancando as piriguetes que mal sabem rebolar”, quem passou a consumir o hit, também, foram elas, as piriguetes ou, no caso, outras mulheres. Neste ponto se dá uma das contradições mais fortes do álbum, afinal, Karol se colocou na mídia como feminista e assim sendo, um dos seus “deveres” é não incitar a competição feminina, mas o faz para cair nas graças do público.
A narrativa do CD pode ser lida como metáforas, mas não possui uma ordem cronológica, não é necessariamente uma história — mesmo que a primeira faixa, “Corre, Corre Erê”, refira-se a crianças. O disco começa com um pedido, quase uma súplica de que as crianças corram, se movimentem, façam as coisas começarem a mudar em sua realidade na periferia. Ao passo de ser um pedido, é também como se a cantora pudesse se ver criança e pedir para ela mesma que continue correndo, se dedicando. Na sequência ela adentra num pensamento de luxo na favela, descaracteriza a ideia de periferia pobre e sofrida, afirmando que o luxo nasceu para o gueto, para o preto e reafirmando que é possível vencer as dificuldades encontradas na vida periférica. Mesmo cantando sobre a possibilidade de sucesso saindo de áreas pobres, Karol Conká não omite as dificuldades, salientando que o esforço para vencer tem que ser redobrado. “Vô lá” é o mais perto que ela chega de um discurso forte, característica esperada de quem tem poder e lugar de fala na cena rap nacional, e é neste ponto que, reforço, se concentra a maior parte da contradição entre seu trabalho e sua colocação na mídia.
Após as três primeiras faixas, o disco se resume a frases de efeito encaixadas com ideias e ideais que se assemelham aos de uma luta, talvez, feminista de mulheres vindas de classes econômicas favorecidas que necessitam muito mais de “Gandaia” do que de conquistas a direitos básicos. Claro que toda e qualquer mulher tem que ser livre, se divertir, rebolar, curtir o lado festivo da vida, mas restringir um espaço tão importante de representatividade a uma atividade sexual regada a orgasmos, por exemplo, é seguir omitindo o acesso do povo periférico, em especial às mulheres — a quem poderia ser direcionado seu disco — às discussões primordiais para uma verdadeira transformação intelectual ou, simplesmente, ao empoderamento que a artista tanto repete na frente das câmeras.
Com uma produção instrumental tão plural e digna de reconhecimento, o Batuk Freak é uma contradição discursiva, mas carrega consigo uma fidelidade ao título que, talvez, muitos álbuns não consigam alcançar.