Praticamente toda a arte nasce das
experiências do artista, mas Blonde (2016), do californiano Frank Ocean, traz a bagagem de vida do cantor
quase que de forma palpável. Embora nascido na costa oeste, Ocean,
aos cinco anos de idade, se mudou com a família para a cidade de Nova Orleans,
no sul dos Estados Unidos, um local marcado pelas culturas europeias,
latino-americanas e, principalmente, afro-americanas, além de ser conhecida
como um dos berços e principais polos do Jazz e do Rythm and Blues (R&B). É nesse ambiente
de uma negritude tão presente na cultura que Frank é criado.
De origem humilde, ele passou parte
de sua juventude trabalhando, fazendo “bicos” para os vizinhos, tudo para
custear alguns instantes dentro de um estúdio. Entretanto, com a passagem do
furacão Katrina em 2005, os estúdios de sua cidade foram destruídos, levando-o
a ter de se mudar temporariamente para Los Angeles a fim de concluir seu
trabalho, e é nesse meio-tempo que Ocean faz contatos, dentre eles Tyler, the
creator e seu grupo de hip-hop alternativo OFWGKTA.
Blonde (Boys Don’t Cry) é o seu segundo álbum de estúdio com 17 faixas que versam
sobre negritude, desigualdades sociais e também sobre desilusões amorosas.
Ocean abre o álbum com “Nikes”, cantando com a voz distorcida e uma
base de R&B sobre ganância. A faixa começa com uma crítica social falando
da ganância em relação ao dinheiro, para num momento posterior falar sobre
drogas e, por fim, sobre o valor que o próprio Frank teria para a pessoa para a
qual ele está se declarando.
O último refrão de Nikes termina com
os seguintes dizeres:
“I'll
mean something to you
You got a roommate he'll hear what we do
It's only awkward if you're fucking him too”
Esse trecho se conecta com a faixa
seguinte, “Ivy”, para falar da traição sofrida pelo
cantor, que assumiu em 2012, por meio de uma carta aberta no seu tumblr, que
seu primeiro amor e decepção amorosa foi com um homem. No documento, o cantor
ainda agradeceu o responsável por partir o seu coração, pois isso deu material
para produzir tais músicas.
Em “Ivy”, ele começa falando que parecia estar
sonhando quando conheceu e se apaixonou por um determinado alguém. Essa
sensação de estar sonhando pode ser interpretada como a ilusão de Ocean em não perceber que
estava sendo traído. Apesar da traição, a música deixa a entender que ainda há algum sentimento de
afeto pelo traidor. Esse resquício de amor é demonstrado em “Pink+white”, uma canção inteira sobre saudade,
sobre a experiências com esse alguém de quem está a se afastar.
Essa primeira sequência de músicas é
dotada de uma certa narrativa sobre amor, traição e desilusão, mas não somente
isso. Frank Ocean fala de uma relação homoafetiva, ele abre um espaço
importantíssimo para a comunidade LGBTQ no meio hip-hop, um ambiente que é tão
fortemente atravessado pelo machismo.
“Be Yourself”, a canção de número 4, abre um novo
bloco na narrativa do disco. Ela versa, muito provavelmente, sobre o breve
período do cantor na faculdade. A faixa é somente uma ligação de telefone da
mãe do eu lírico falando sobre ser você mesmo e sobre vício em drogas, exceto
pelas que tenham sido passadas por recomendação médica. “Be Yourself” é sobre aceitação de si mesmo e
sobre como estamos sempre performando de diferentes maneiras em meios sociais
distintos a fim de nos sentirmos incluídos.
Logo em seguida, também falando sobre
drogas, vem “Solo”, uma das músicas mais importantes do
álbum. Ela também fala de solidão e talvez da tentativa do eu lírico de
preencher o vazio deixado após sofrer a traição com drogas. Há uma dualidade na
palavra “solo”, que muitas vezes na música e pronunciada quase que como “so
low”, que podemos traduzir como sóbrio, daí pode se pensar que Ocean está a
todo momento tentando se manter “alto” (drogado) para compensar a solidão.
Após toda a intensidade de “Solo”, vem “Skyline To”, uma canção subestimada que muitos
dizem ser parada e chata. Mas a faixa é justamente sobre a passagem do tempo.
As primeiras linhas deixam claro que eu lírico ainda lida com as dores da
traição passada. Essa faixa está posicionada justamente entre as duas mais
importantes de todo o álbum e serve de conexão entre elas.
Por que logo depois vem “Self Control”, o momento mais importante do álbum
junto com “Solo”. A canção é um grande lamento pelo
término de um ou mais relacionamentos, não se sabe precisar a quem Ocean está
se referindo, mas uma coisa é certa, Frank aqui está perdendo seu autocontrole
e implora para ainda ter um espaço no coração da pessoa amada. Este também é um
dos momentos em que podemos testemunhar a potência vocal do cantor, que muitas
vezes é mascarada pelo constante uso de sintetizadores e efeitos de voz.
“Good Guy”, 8° faixa, abre a questão da
homossexualidade de Frank num meio tão marcado por estereótipos de
masculinidade como o hip-hop. A canção começa falando de um encontro cego num
bar gay, no qual o eu lírico se decepciona, já que eu seu par não se parece
nada com o que ele aparentava ser através de mensagens. Ele esperava, ao mesmo tempo, encontrar um novo amor, mas seu parceiro está somente em busca de
uma noite de sexo. E aí a canção muda para um diálogo entre o eu lírico e um
amigo falando sobre se relacionarem com mulheres. Enquanto esse amigo hétero se
mostra frustrado por ter o coração quebrado pelas mulheres, o eu lírico fala, após
um longo período de pausa em desconforto, “Sim, eu não tenho mais vadias”.
“Nights” é a faixa que marca exatamente o
meio do álbum. Com 5:07 minutos de duração, a faixa, que começa falando sobre a tristeza
e fracassos do dia a dia, muda
completamente de ritmo aos 3:30, o exato momento em que o álbum chega aos seus
30 minutos. Entrando, aqui, num clima mais melancólico.
“Solo (reprise)”, é faixa de número dez e a primeira
após a virada dos 30 minutos em “Nights”. A canção também fala de sobriedade, tal qual sua contrapartida no
início do álbum, mas desta vez se trata de um rap agressivo, um torrente de
palavras despejando toda a raiva acumulada ao longo de todo esse período de
melancolia.
E então vem “Pretty Sweet”, também com um rap agressivo, desta
vez falando sobre autodestruição e com algumas referências religiosas (“This is the blood, the body, the life
right now”). A canção é
talvez a revolta do cantor em ter passado tanto tempo do armário. A música é
uma cacofonia paranoica e agressiva, é um grande conflito de ideias, é um apelo
por aceitação (“To the fathers of the Earth be kind”). Em discussões no Reddit alguns apontam que toda essa
paranoia é causada pelo uso de drogas, que, ao invés de trazerem um estado de torpor, intensificam a
tempestade de sentimentos. A música se encerra em um momento de calma, com um coro de crianças
Em 12° vem “Facebook Story”, uma canção que talvez conte como
Frank descobriu ter sido traído. Esse é mais um diálogo na voz de outra pessoa,
dessa vez falando de uma garota que disse estar sendo traída por não ter sido
aceita no Facebook pelo seu amado, ao passo que este alega que está com ela
pessoalmente todos os dias. “Close To You” é uma das faixas mais curtas e talvez a que menos teve significância
para mim. A letra aparente falar dos vestígios que ainda mantém o eu lírico
preso ao seu amor passado
A última parte do álbum é a mais
confusa de toda a obra. “White Ferrari”, “Siegfried” e “Godspeed” giram em torno da aceitação do
término do relacionamento. “White Ferrari” é sobre a percepção de como o relacionamento foi morrendo, e de como
Ocean pensava que manter a relação em seus princípios primários (sexo), poderia
sustentá-la. Ao mesmo tempo em que a relação está presa num mesmo nível, sem
progressão, e o parceiro dele enfrenta uma insegurança que o impede se entregar.
“Siegfried” é o encontro com esse amor que se
foi e que agora está vivendo uma nova vida. Frank se questiona logo de início
se deveria enveredar numa vida mais pacata, constituir família. Para depois vir
numa das últimas estrofes afirmando seu estilo de vida e se negando a mudar:
Spin this flammable
paper on the film's that my life
High flights, inhale
the vapor, exhale once and think twice
Eat some shrooms, maybe
have a good cry, about you
See some colors, light
hangglide off the moon
“Godspeed” é um complemento dessa aceitação.
Ocean, aqui, deixa seu amor ir, mas também fala que sempre vai amar este
alguém.
I let go of my claim on
you, it's a free world
You look down on where
you came from sometimes
But you'll have this
place to call home, always
“Futura Free”, com pouco mais de 9 minutos encerra
o álbum. A faixa compila tudo que foi dito ao longo do álbum. Fala de seu
sucesso enquanto artista, se refere à mãe e também ao amor que se foi. Mas,
devido a sua extensão, a canção mais difícil de toda a obra, é difícil perceber
todas as camadas colocadas por Ocean.
Com 17 faixas o álbum é um tanto
difícil de ser consumido, é preciso tempo para digeri-lo, principalmente por
causa do uso excessivo de sintetização e efeitos na voz, o que pode, em alguns
momentos, ser irritante, e até mesmo monótono. Blonde é um álbum difícil, mas isso é uma
de suas melhores qualidades. Frank Ocean traz inúmeras referências artísticas,
históricas e culturais em suas músicas, falando com maestria de questões
ligadas à família, sexualidade, abuso de drogas e o fim de um amor. É uma obra
para ser ouvida com carinho e paciência, da mesma maneira que se constrói uma
relação amorosa.