BlasFêmea,
artivismo e reinscrições identitárias na musicalidade periférica de Rosa Luz
O rap, em sua epistemologia,
consiste numa cultura de resistência contra a supremacia e opressão dos
brancos. A travesti, em sua intersubjetividade, consiste numa identidade
feminina que subverte o discurso do “gênero como reflexo do sexo”. O rap,
a ferramenta do artivismo. A travesti, a voz da blasFêmea. Ambos, em suas
peculiaridades e divergências, constituem o alvo na lógica da abjeção.
Popularizado em 1970, o rythm and poetry (rap), consistia numa mescla
entre poética e poesia, ritmado em narrativas longas – oriundas da tradição
afro americana – circunscritas num processo reivindicatório de políticas
humanitárias, que garantiriam a subsistência da população periférica
estadunidense, em sua maioria migrantes afrolatinos e ameríndios, cuja as
demandas imbuídas em sua pluralidade – étnica, racial, sexual e de gênero –
ocasionaram movimentos artístico-politícos, tendo o rap como espada no
artivismo. Em concomitância com esses movimentos, surge nesse contexto político
e multicultural, os estudos queer, atentos às nuances identitárias, mas,
sobretudo, às normas que os criam enquanto sujeitos da abjeção, isto é,
corpos-identidades que subvertem a norma prevalecente, que não deveriam existir
dentro de determinada matriz cultural, como pontua a filósofa norte-americana
Judith Butler. Nessa conjuntura abjeta, intricada de política identitária e
subversiva se sedimenta nos trópicos o artivismo, que unifica arte e ativismo —
em especial dos corpos-identidades abjetas — na resistência e contra-hegemonia;
no perspéctico latino americano, tal artivismo se personifica na travesti, a
qual critica a marginalidade, abjeção e colonização grafadas em seu
corpo-identidade através da arte periférica; assim sendo, reinscreve o status
quo numa arte da periferia para o centro, visibilizando e emponderando
corpos-identidades prepostos na lógica de abjeção. No EP Rosa Maria codinome
Rosa Luz, a artista multimídia Rosa Luz faz reinscrições identitárias na
musicalidade periférica. Ao se afirmar travesti e rainha afrolatina, ergue o rap
como espada na luta contra o racismo e transfobia institucionais. Na
primeira faixa, cujo título homônimo inicia seu manifesto, Rosa insere o rap
num âmbito tradicional, ao mesclar ritmia e sons que se assemelham às
percussões do maracatu pernambucano. Uma espécie de hibridismo, recheada pelas
críticas a “normativa que um dia separou”. A proposta de Luz parece
decolonial, ao expressar o colonialismo que construiu a desumanização dirigida
aos subalternizados. Decolonizar seria entender a “mulher de peito e pau” em
sua particularidades sexual e de gênero, a partir de proposições que colocam o
gênero como constructo cultural e performativo, negligenciando uma
heteronormatividade que insite em atribuir o masculino ao pênis e o feminino à
vagina. Ao enfrentar e transformar as estruturas e instituições que têm como
horizonte de suas práticas e relações sociais a racialização do mundo e a
manutenção da colonialidade, visa criar um espaço “sem sargento, sem
sargeta” no qual celas são queimadas e oportunidades criadas, com “liberdade
para corpos marginalizados transcederem nessa porra de cidade”.
A
língua de Luz é uma faca de dois gumes, tem o poder de incluir e denunciar; no De
clandestina a puta, insere àrquetipos de matriz africana, a quem clama por
proteção e força na luta, para si e para as “pretas”. Na imagem d’Oxum,
orixá das águas doces, maternidade e beleza, constrói seu legado. Oxum venceu a
guerra com um espelho, Rosa vencerá com o rap. Num limiar entre rap e
prece, a composição situa o ouvinte na vivência trans e travesti, cujas
feminilidades e corpos são institucionalmente direcionados à prostituição, pelo
machismo e a misoginia – estruturas socias de ordem patriarcal na qual se
objetifica e hiperssexualiza o feminino. Nessa circunstância, a rapper coloca
o putafeminismo como uma proposta transversal do feminismo, suvertendo a lógica
de opressão, na qual se incluem prostitutas como sujeitos potentes na luta pela
equidade de gênero. O alvitre de Rosa, ao contrário do que se pensa, não
deslegitima a lógica de opressão intriseca à prostituição, mas ressignifica o
papel da prostituta, inserida enquanto persona do feminismo. Se o track que
titula o álbum se apresenta como híbrido por retratar o rap sob o viés
popular, a Afrotrapfunk se condiciona enquanto polifonia e polissemia
musical, ao englobar tecno, punk e rap, ressaltando uma
interculturalidade poética e ritmada, a tratar do feminino e, sobretudo, de
mulheridades “negras, travestis, transsexuais, gordas, magras, diversidade”.
A musicalidade que empondera femininos. O grito das blasFêmeas. A mesma
polifonia se reinscreve em Periferia mas sob uma ótica de localidade, em
parceria com Preto, Mic Dias, Natigresa, Prethaís, Pérolatina e Debrete, a
sonora narra poetizações acerca do âmbito periférico, implicando em múltiplas
visões de um mesmo local. Das entraves que normatizam feminino e masculino,
Rosa Luz atenta ao falocentrismo ao afirmar “pinto de macho não é o centro
do mundo”. Teorizada por Freud e perpetuada por Lacan, a lógica
falocêntrica consiste num processo disciplinador e/ou heteronormativo que visa
docilizar corpos pela ausência do falo, colocando tais corporeidades abaixo do
“sexo biológico masculino”. Luz, em acordância com os propostos queer,
em especial os de Butler, critica a colonização dos corpos sem falo, isto é,
cuja relação sexo-gênero-desejo perpassam essa lógica falocentrista. Partindo disso,
a rainha afrolatina junto ao seu Clã das mina preta–quebrada, rememora
os processos colonizadores que violentaram e submeteram mulheres à escravidão
sexual. A música, ao relembrar dessas violências critica sua perpetuação,
convidando as mulheres, em suas multiplicidades, a denunciar o abuso. Luta pela
equidade, segurança e resistência; pilares que prenunciam Bandida,
finalizando o EP, mas não o manifesto da “preta, travesti, gatinha” cujas
rimas e denúncias grafadas em seu corpo-identidade se trasmutam no cuspe que
escorre sobre o rosto racista. Rosa Luz reescreve a história, o papel da mulher
no rap e nos direciona para uma futura revolução, não somente musical,
mas principalmente, travesti.