quinta-feira, 4 de outubro de 2018

E se o rap fosse travesti?, por Lucas Xavier


BlasFêmea, artivismo e reinscrições identitárias na musicalidade periférica de Rosa Luz 


O rap, em sua epistemologia, consiste numa cultura de resistência contra a supremacia e opressão dos brancos. A travesti, em sua intersubjetividade, consiste numa identidade feminina que subverte o discurso do “gênero como reflexo do sexo”. O rap, a ferramenta do artivismo. A travesti, a voz da blasFêmea. Ambos, em suas peculiaridades e divergências, constituem o alvo na lógica da abjeção. Popularizado em 1970, o rythm and poetry (rap), consistia numa mescla entre poética e poesia, ritmado em narrativas longas – oriundas da tradição afro americana – circunscritas num processo reivindicatório de políticas humanitárias, que garantiriam a subsistência da população periférica estadunidense, em sua maioria migrantes afrolatinos e ameríndios, cuja as demandas imbuídas em sua pluralidade – étnica, racial, sexual e de gênero – ocasionaram movimentos artístico-politícos, tendo o rap como espada no artivismo. Em concomitância com esses movimentos, surge nesse contexto político e multicultural, os estudos queer, atentos às nuances identitárias, mas, sobretudo, às normas que os criam enquanto sujeitos da abjeção, isto é, corpos-identidades que subvertem a norma prevalecente, que não deveriam existir dentro de determinada matriz cultural, como pontua a filósofa norte-americana Judith Butler. Nessa conjuntura abjeta, intricada de política identitária e subversiva se sedimenta nos trópicos o artivismo, que unifica arte e ativismo — em especial dos corpos-identidades abjetas — na resistência e contra-hegemonia; no perspéctico latino americano, tal artivismo se personifica na travesti, a qual critica a marginalidade, abjeção e colonização grafadas em seu corpo-identidade através da arte periférica; assim sendo, reinscreve o status quo numa arte da periferia para o centro, visibilizando e emponderando corpos-identidades prepostos na lógica de abjeção. No EP Rosa Maria codinome Rosa Luz, a artista multimídia Rosa Luz faz reinscrições identitárias na musicalidade periférica. Ao se afirmar travesti e rainha afrolatina, ergue o rap como espada na luta contra o racismo e transfobia institucionais. Na primeira faixa, cujo título homônimo inicia seu manifesto, Rosa insere o rap num âmbito tradicional, ao mesclar ritmia e sons que se assemelham às percussões do maracatu pernambucano. Uma espécie de hibridismo, recheada pelas críticas a “normativa que um dia separou”. A proposta de Luz parece decolonial, ao expressar o colonialismo que construiu a desumanização dirigida aos subalternizados. Decolonizar seria entender a “mulher de peito e pau” em sua particularidades sexual e de gênero, a partir de proposições que colocam o gênero como constructo cultural e performativo, negligenciando uma heteronormatividade que insite em atribuir o masculino ao pênis e o feminino à vagina. Ao enfrentar e transformar as estruturas e instituições que têm como horizonte de suas práticas e relações sociais a racialização do mundo e a manutenção da colonialidade, visa criar um espaço “sem sargento, sem sargeta” no qual celas são queimadas e oportunidades criadas, com “liberdade para corpos marginalizados transcederem nessa porra de cidade”.
A língua de Luz é uma faca de dois gumes, tem o poder de incluir e denunciar; no De clandestina a puta, insere àrquetipos de matriz africana, a quem clama por proteção e força na luta, para si e para as “pretas”. Na imagem d’Oxum, orixá das águas doces, maternidade e beleza, constrói seu legado. Oxum venceu a guerra com um espelho, Rosa vencerá com o rap. Num limiar entre rap e prece, a composição situa o ouvinte na vivência trans e travesti, cujas feminilidades e corpos são institucionalmente direcionados à prostituição, pelo machismo e a misoginia – estruturas socias de ordem patriarcal na qual se objetifica e hiperssexualiza o feminino. Nessa circunstância, a rapper coloca o putafeminismo como uma proposta transversal do feminismo, suvertendo a lógica de opressão, na qual se incluem prostitutas como sujeitos potentes na luta pela equidade de gênero. O alvitre de Rosa, ao contrário do que se pensa, não deslegitima a lógica de opressão intriseca à prostituição, mas ressignifica o papel da prostituta, inserida enquanto persona do feminismo. Se o track que titula o álbum se apresenta como híbrido por retratar o rap sob o viés popular, a Afrotrapfunk se condiciona enquanto polifonia e polissemia musical, ao englobar tecno, punk e rap, ressaltando uma interculturalidade poética e ritmada, a tratar do feminino e, sobretudo, de mulheridades “negras, travestis, transsexuais, gordas, magras, diversidade”. A musicalidade que empondera femininos. O grito das blasFêmeas. A mesma polifonia se reinscreve em Periferia mas sob uma ótica de localidade, em parceria com Preto, Mic Dias, Natigresa, Prethaís, Pérolatina e Debrete, a sonora narra poetizações acerca do âmbito periférico, implicando em múltiplas visões de um mesmo local. Das entraves que normatizam feminino e masculino, Rosa Luz atenta ao falocentrismo ao afirmar “pinto de macho não é o centro do mundo”. Teorizada por Freud e perpetuada por Lacan, a lógica falocêntrica consiste num processo disciplinador e/ou heteronormativo que visa docilizar corpos pela ausência do falo, colocando tais corporeidades abaixo do “sexo biológico masculino”. Luz, em acordância com os propostos queer, em especial os de Butler, critica a colonização dos corpos sem falo, isto é, cuja relação sexo-gênero-desejo perpassam essa lógica falocentrista. Partindo disso, a rainha afrolatina junto ao seu Clã das mina preta–quebrada, rememora os processos colonizadores que violentaram e submeteram mulheres à escravidão sexual. A música, ao relembrar dessas violências critica sua perpetuação, convidando as mulheres, em suas multiplicidades, a denunciar o abuso. Luta pela equidade, segurança e resistência; pilares que prenunciam Bandida, finalizando o EP, mas não o manifesto da “preta, travesti, gatinha” cujas rimas e denúncias grafadas em seu corpo-identidade se trasmutam no cuspe que escorre sobre o rosto racista. Rosa Luz reescreve a história, o papel da mulher no rap e nos direciona para uma futura revolução, não somente musical, mas principalmente, travesti.

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Que se refere à cidade, por Letícia Barbosa


Em tempos de especulação imobiliária, ocupações em escolas, incêndios em prédios abandonados, Ocupe Estelita e Geju, creio que ter em dois dos principais equipamentos culturais da cidade exposições de arte que pensam o espaço urbano não é por acaso.
Além do tema tão político e nunca antes tão atual, as duas exposições apresentam, além de fotografias, videoarte, instalações e obras interativas, plataformas estetizadas para as obras. Esses suportes brincam com o tradicional espaço dos museus e galerias, ajudam a passar a mensagem da exposição e dinamizam o momento da visitação — mexendo com a visão, tato e audição do visitante.
A primeira parte do circuito foi na Caixa Cultural do Recife, localizada no cerne do centro histórico e cultural da cidade. O espaço está apresentando desde março a 2ª Mostra Bienal Caixa de Novos Artistas, que busca dar visibilidade a artistas emergentes e vai circular por oito capitais do país. Ao todo foram 616 inscritos e 30 escolhidos. As 37 obras selecionadas desses artistas podem ser conferidas até o dia 27 deste mês.
A mostra é dividida em temas que falam sobre campo, cidade, corpo e questões político sociais. Chamo atenção para as sessões de Espaço Natural e Espaço Construído e como a montagem da exposição contribuiu para dar força às obras.
Ao entrar na Caixa nos deparamos com um tipo de labirinto, todas as peças são dispostas em grandes trapézios brancos que circundam o salão principal do centro cultural e parecem simular a confusão de prédios das grandes cidades. O texto de curadoria e as fotos dos artistas são projetados em algumas dessas estruturas com efeitos que lembram as propostas do futurismo e da poesia concreta.
Nas obras é notável a ressignificação crítica que cada artista fez do seu lugar de origem. Há um exercício de imersão, reexame e catarse de questões como pobreza, raça, etnia, Direitos Humanos, meio ambiente, tempo, identidade, entre outros temas.
Neste primeiro momento da exposição, as obras do Espaço Natural e do Espaço Construído são colocadas lado a lado, frente a frente, uma contra a outra. Uma clara provocação que emula as disputas entre o lado de dentro e o de fora, o público e o privado, o natural e o artificial, o eu e o outro, o que é meu e o que é seu. O efeito da contraposição dessas peças é tocante, incomoda e faz refletir.
A curadoria da mostra foi aberta e sensível ao escolher obras que texturizam essas dicotomias a partir da transformação de materiais banais do dia a dia em arte. Assim, em meio a gravuras, colagens, desenhos, vídeos e fotos nos deparamos também com instalações feitas com estruturas metálicas, argila, concreto armado, areia, pedras, vergalhão e carvão.
A segunda exposição visitada se chama ExistenCidades e está alocada no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (MAMAM) até 29 de julho. A mostra também trata da problemática da urbanização e se apropria de materiais sucateados para dar suporte a narrativa proposta.
Beto Figueiroa é o artista que assina as 13 fotografias expostas em andaimes de construção. Grandes, coloridas e impressas em formato de lambe-lambe, as imagens mostram paisagens naturais ermas, objetos abandonados, trilhas, ruas, animais e pessoas centrados em sua rotina ou solitude. Novamente o cinza da cidade disputa espaço com o verde natural.
A reflexão sobre alteridade, políticas públicas e cidadania são latentes e agravadas pela sensação que os andaimes dão de se estar em um lugar em construção. Atravessar a mostra ExistenCidades é se embrenhar pelas brechas de lugares esquecido ou até desconhecidos, sempre com o cuidado de olhar bem por onde pisa, pois está tudo em obras, inacabado. O MAMAM se transformou em uma pequena maquete do nosso país em “desenvolvimento”.
A imersão do visitante se completa com o som de uma videoarte que ecoa por todo o salão da exposição. Produzida pelo músico Jr. Black, o vídeo é um timelapse mostrando prédios durante a noite com uma voz masculina de fundo narrando cinco textos, escritos em primeira pessoa, que contam histórias inventadas para os personagens das fotografias.
Ao final dessa aventura penso que ter artistas que fazem política com materiais artísticos clássicos e não clássicos e, em movimento reverso, fazem da arte uma forma didática e poética de apreender questões políticas, remete a outros tempos, talvez tão sombrios quanto o atual, em que a arte era o último suspiro, o manifesto derradeiro.
As mostras, além de expressar uma estética, correspondem a certa cobrança moral atual de imprimir mensagens e reflexões. Aproveitando essa onda, deve-se atentar para a sobrevivência dessas janelas de ar fresco perante o caos, ocupá-las para que resistam e acima de tudo democratizar esses espaços para que a experiência e o debate não morram em círculos restritos. Pois, diante dos retrocessos que vislumbramos, viradas políticas dignas de telenovela e das eleições que estão por vir, visitar exposições desse tipo pode ser revigorante, inspirador e em certo ponto necessário.