domingo, 1 de maio de 2011

A perversa cidade de Nova York criada por Fritz Lang, por Leandro Gantois


Poucos gêneros têm a cidade como personagem central como o noir. Se, obviamente, for deixado de lado a própria dificuldade de enquadrar aqueles filmes policiais americanos da década de 40 como um gênero. A construção da trama nessas obras vai além do anti-herói sendo levado a ruínas pela femme fatale. No caso de “Almas Perversas” (Scarlet Street, 1945) do cineasta austríaco Fritz Lang, os personagens não são corrompidos apenas por desvios de comportamentos, mas são encurralados por situações ao acaso criadas pela cidade de Nova York. A metrópole não exerce apenas o papel de testemunha dos acontecimentos, mas de verdadeiro algoz de suas figuras urbanas perdidas na multidão.

A Nova York fotografada por Milton R Krasner toma o conceito da cidade como vicio. A contraposição entre claro e escuro, próprio do noir, cria a noção existencial da metrópole, uma briga entre o bem e o mal, entre o belo e o feio. No filme, Nova York durante o dia é mostrada como um lugar ensolarado, com crianças e mulheres de família desfilando pelas ruas. À noite, entretanto, as avenidas são tomadas pelas sombras e os personagens passam a ser o anti-herói infiel, a femme fatale, o gigolô, o policial, o barman. É interessante notar a diferença como é mostrado o boêmio bairro de Greenwich Village, com lofts luxuosos e o periférico bairro do Brooklyn com pequenos e apertados apartamentos.

Fritz Lang, então, cria um desfile de tipos suburbanos em sua caótica visão noir da cidade grande. O anti-herói, Chris, interpretado por Edward G Robinson, é um tipo comum, um caixa de banco, casado com uma megera, que passa os dias a reclamar da vida sem luxo e que costuma escutar radionovelas na casa da vizinha. Chris é levado ao crime pela sedutora Kitty (Joan Bennet) e pelo gigolô Johnny (Dan Duryea). Lang, aqui, repete o trio central de sua obra anterior, o também noir “Um Retrato de Uma Mulher (1944). Após a desgraça moralizadora de Kitty e Johnny, Chris consegue se livrar da punição na justiça, mas é levado à loucura pelos fantasmas de seus crimes. Lang condena o protagonista a vagar, sozinho e atormentado, pelas ruas frias e sombrias de Nova York.

Outro ponto essencial em “Almas Perversas” está no embate entre gêneros proposto no filme: o anti-herói é encurralado por duas figuras femininas; no casamento, pela autoritária esposa dona-de-casa e na rua pela mítica figura da femme fatale. O conflito entre o masculino e o feminino simboliza a nova formação social do pós-guerra. Como propõe o teórico Fernando Mascarello, “os proponentes do noir afirmam ter sido ele veículo para a representação de um dos elementos centrais da ‘cultura da desconfiança’ do pós-guerra: a intensa rivalidade entre o masculino e o feminino. Esta resultava, por um lado, da modificação dos papéis sexuais em decorrência da mobilização militar e, por outro lado, da disputa do mercado de trabalho entre os contingentes retornados do front e a mão-de-obra feminina treinada para substituí-los durante o conflito” (MASCARELLO, 2006, p. 182).

A metrópole no noir se constrói, desta forma, como a personagem central, condenando seus vis personagens. Ao mesmo tempo em que a cidade parece levar seus habitantes ao pecado, o espaço urbano caótico tenta moralizar e purificar os andarilhos que vagam pela noite. Além de propor um conflito pela nova ordem de trabalho; o papel social da mulher na cidade muda e com ele o conflito do herói masculino americano. E é assim que Fritz Lang representa a Nova York da década de 40, características que podem ser encontradas em outros representantes do gênero e até mesmo na literatura policial moderna, como é o caso do escritor James Ellroy, autor de “Tablóide Americano”, “LA – Cidade Proibida” e “Dália Negra”. Na obra de Ellroy, Los Angeles, assim como a Nova York de Fritz Lang, se transforma em personagem essencial na trama.

“Almas Perversas”, em sua representação do espaço urbano do pós-guerra, se torna um exemplar film-noir. Mais do que ressaltar o já tão conhecido talento de Fritz Lang, seja na fase expressionista ou na americana, o filme repensa a idéia iluminista da cidade como fonte da razão e do conhecimento. A metrópole, então, passa a ser o local onde desfilam tipos invisíveis e marginais movidos por instinto e ambições efêmeras, substituindo o conceito do espaço urbano seguro e desenvolvido. Dentro da filmografia de Lang, talvez esteja abaixo do preciosismo estilístico do autor, encontrado em películas como “Metropolis” (1927) e “M – O Vampiro de Dusseldorf” (1933), mas certamente é um dos trabalhos mais maduros do cineasta em Hollywood.

Referências Bibliográficas:
MASCARELLO, Fernando. História do Cinema Mundial. 4.ed. São Paulo. Editora Papirus, 2006

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