segunda-feira, 2 de maio de 2011

ONDE ADOLESCENTE TRANSCENDE, por Vinícius Gouveia



Contrapor as séries de TV Skins (Canal E4) e Gossip Girl (Canal WC) não deve ser das tarefas mais difíceis. Após a exibição de um episódio de cada produto televisivo, fica clara a diferença entre eles. A britânica "Juventude à Flor da Pele" (tradução no Brasil para Skins) dá valor a uma fotografia sugestiva, trabalha a imagem e o som através de situações muito provavelmente criadas não apenas para o desenrolar da histórias, mas pela potência plástica que elas tem para encantar e encarar o espectador. Já a americana Gossip Girl vai pelo caminho inverso, abusa de uma estética realista, sem grandes maneirismos, e é preocupada com a fidelidade visual dos acontecimentos. Fácil confrontar estes seriados e encará-los como excludentes?

Uma trama adolescente contemporânea no que tange às tecnologias e referências pops, colocando em discussão problemáticas da juventude - que, por sinal, perpassam gerações. De qual série seria esta sinopse? Das duas. Surpreendentemente, Skins e Gossip Girl, tão diferentes da realização ao público, parecem ser baseadas no mesmo conceito. Ambas tampouco abrem mão de drogas, sexo e adolescentes em crise (ritos de passagem e novas experiências). Embora compartilhem premissas semelhantes, o desenrolar de cada seriado toma seu próprio rumo graças ao direcionamento dado por seus realizadores. Enquanto vemos vísceras, artifício e underground em Skins; Gossip Girl faz questão de zelar pelo realismo, assepsia e o mundo rico americano. Dessa forma, as matizes sobrepostas ao mesmo ponto de partida (a sinopse) colabora para a autenticidade de cada trabalho, afastando-o do outro. Dentre tantos aspectos de diferenciação, nos debruçaremos sobre a escolha da cidade de cada série: Bristol e Nova York.

No mundo rico e aparentemente perfeito de Gossip Girl, a Nova York que conhecemos é a dos cartões postais mais caros. O roteiro não economiza nos locais mais abastados do Upper East Side, situado em Manhanttan. Parte dos protagonistas vive no hotel The New York Palace da Madison Avenue, notoriamente conhecida pela proximidade com as grifes da 5ª Avenida. Restaurantes de diversas especialidades e casas noturnas figuram entre os cenários e podem até passar despercebidos pelo espectador, que mal deve saber a fortuna despendida pelos frequentadores para os serviços banais destes ambientes. Estar em Nova York, ou melhor, viver na área mais rica de Nova York não é para quem deseja ter um cotidiano comum. E, assim como quem escolhe uma roupa pela grife, decidir morar no Upper East Side é optar não apenas por conforto e uma boa vizinhança, mas também lidar com a imagem, a cultura e a dinâmica particulares daquele local.

Em Gossip Girl somos apresentado a um mundo de aparências, exigente de uma etiqueta e falsidade típica da era informacional. A trama se passa na contemporaneidade, esta que exige simpatia e atenção também no mundo online (as redes sociais) para manter uma boa aparência e um bom networking. Não por acaso, a série gira em torno de um blog de fofocas de uma anônima sob o pseudônimo Gossip Girl, que não tem dó de detratar os personagens principais. Talvez em outros tempos fosse utilizada a técnica de rear projection no seriado, tudo para forçar a verossimilhança, dar a cidade o efeito do real. Esta cidade, ou o microcosmo dela onde a série se desenrola, não é um pormenor supérfluo, pelo contrário, sua representação fiel ressalta ao espectador os ares de verdade da história.

Tal estética realista e asséptica da Big Apple se choca contra a podridão e hipocrisia do mundo dos milionários. E, curiosamente, os significados se complementam. Enquanto você vê beleza, dinheiro e harmonia no Upper East Side (parte objetiva, visível), há uma sujeira que cresce e se espalha no espírito mesquinho e egoísta da nata nova-iorquina e entre suas relações de interesses (subtexto). Há uma tensão entre o que é visto e o que há por baixo disto. A Nova York milionária de Gossip Girl é realista em nome de uma representação pura e simples do real, sim. Mas que não se julgue essa opção como a saída mais fácil. A representação objetiva dos prédios do Upper East Side fortalece a sensação de realidade das situações, mas confronta diretamente a degradação moral dos personagens, aspecto de âmbito mais subjetivo. É constante a tensão entre essa deterioração do caráter humano e a estética que privilegia a “beleza do senso comum” (dos personagens, das locações). É como se esta Nova York realista fosse uma bela Caixa de Pandora – a beleza palpável da embalagem ilude quanto ao seu teor nocivo e invisível aos olhos.

Skins retrata a história de um grupo de adolescentes que procuram a emoção de estarem vivos, são hedonistas e preocupam-se tanto com o futuro quanto com a droga que logo consumirão. De fato, eles querem sentir a vida pulsar. Mas, ao contrário de Gossip Girl, Skins utiliza a cidade de maneira bem particular se comparado ao que é comumente visto na TV. Gravado em Bristol, a série britânica opta por sair das grandes metrópoles e utiliza uma cidade estranha à audiência. Esse desconhecimnto por parte do espectador oferece aos realizadores mais poder na invenção de uma urbanidade para a cidade, afinal aproximar locações geograficamente distantes e criar uma nova roupagem às mesmas ruas e paisagens cotidianas pode ser feito de maneira menos cuidadosa que em Nova York ou Londres. Mesmo que a organização da cidade não fique tão clara na cabeça de quem assiste, sabe-se que ela está lá e o peso que ela imprime e recebe nos/dos seus habitantes.

Numa metrópole não seria possível possuir a liberdade (em vários aspectos) que os jovens do seriado gozam, nem o despreendimento (não total) à imagem on e off line. Entretanto, a cidade não é fator limitante, mas ponto de partida. Ela vai além do bem e do mal, afastando-se de interpretações rasteiras – não se pode em Skins definir o adolescente apenas pelo meio. Repleta de vicissitudes, esta Bristol também tem seu lirismo e escapismo. Ela abraça os jovens com o seu melhor e seu pior, eles podem trilhar o próprio caminho nesse emaranhado de vícios e virtudes.

Assim como em Gossip Girl, a cidade é utilizada para fortalecer o conceito da série. A Bristol de Skins tem cores carregadas, é caracterizada pelo artifício. Existe uma poesia nessa escolha. O efeito de realidade é ausente nessa cidade, mas não chega a uma sublimação total. Paredes, estradas e coisas existem fisicamente, mas a artificialização visual parece nos colocar diante de um sonho torto, meio realista. Essa plasticidade cuidadosamente colorida é voltada à imaginação e sensibilidade de quem assiste. A fruição espectatorial é imprescindível, ela evita (enfraquece, pelo menos) interpretações lógicas e valoriza aquelas que são sentidas, são sensíveis aos dramas da série. Por isso, além de alegórica e artificial, a cidade em Skins também é underground, visceral e poética. Embora carregada visualmente, a Bristol do seriado tem a impessoalidade das cidades contemporâneas, ela abriga todos, mas não pertence a ninguém. De uma beleza urbana periférica, a cidade em Skins, como tantas outras, possui uma dinâmica supersônica e hipermodernista próprias do século XXI. Esta cidade não julga, mas também não poupa.

Calcada nos sentidos, a representação da cidade e seus caminhos labirínticos alça a corriqueira Bristol a uma espécie de País das Maravilhas cheio de locais e figuras desconhecidas e misteriosas. Transcender é a palavra de ordem. Aqueles muros não estão lá para limitar, mas para serem transpostos no sentido figurado. Os limites físicos da cidade são desimportantes, eles podem ser ultrapassados rapidamente. O concreto e as demais construções urbanas pesam não pelo o que são verdadeiramente, mas pelo o que representam: barreiras. O que incomoda é a acepção conotativa da palavra.

Se Gossip Girl e Skins partem do mesmo princípio, fica claro que ele não é trabalhado da mesma maneira. Vários aspectos de diferenciação não aprofundados aqui (estética, técnicas de atuação, direção, entre outros) afasta qualquer semelhança entre os dois seriados, que chegam a ser vistos como antagônicos pelo público. Gossip Girl trilha o caminho do mainstream enquanto Skins traz referêcias e jovens mais rebeldes, embora ambos almejem repercusão e boa audiência. As cidades onde as histórias se passam tem papel fundamental no fortalecimento do conceito de cada série e são representadas de forma totalmente diferente em cada produto. Não vemos simulacros, afinal as cidades ainda estão na tela, mas visualizamos microcosmos de urbanidades buriladas. A Nova York e Bristol podem significar tantas outras coisas sob outras lentes, mas, em Gossip Girl e Skins, elas tem seus significados pensados e construídos pelo conceito de cada seriado.

2 comentários:

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